Ronilson Pacheco, The Intercept Brasil, 18 de agosto de 2020
A EXEMPLO DO nacionalismo cristão nos Estados Unidos e dos evangélicos brancos apoiadores de Trump, os evangélicos bolsonaristas e fundamentalistas brasileiros têm se empenhado em atacar o movimento Black Lives Matter e sua importância na história norte-americana. Tornou-se uma missão criar o clima de rivalidade entre a igreja e o BLM, desmerecendo a luta contra o racismo e a violência policial.
Em 11 de junho, o Mass Resistance, uma das mais ativas organizações ultra-conservadoras dos EUA, que se autodeclara “pró-família”, publicou um artigo que deturpava completamente o texto fixo na página do BLM em que o movimento apresenta o “em que nós acreditamos”. No texto, o BLM conta sua história: desde a mobilização após o assassinato, em 2012 do adolescente negro Trayvon Martin pelo vigilante branco George Zimmerman (absolvido em 2013) e como o movimento cresce, age coletivamente e inclui a si mesmo em “uma família negra global”. A certa altura, o texto do BLM literalmente diz: “Rompemos com o requisito de estrutura familiar nuclear prescrito pelo Ocidente, apoiando-se como famílias ampliadas e ‘aldeias’ que cuidam coletivamente um do outro, especialmente de nossos filhos, na medida em que mães, pais e filhos se sentem confortáveis”.
O Mass Resistance destacou o trecho “rompemos com o requisito de estrutura familiar nuclear” (e só este trecho) para disseminar a ideia de que o BLM é contra a família. Somado a isso, passou a compartilhar também uma parte de uma entrevista de 2015 dada por Patrisse Cullors, uma das fundadoras do BLM. Na ocasião, Cullors diz, entre outras coisas, que ela e as amigas fundadoras eram “marxistas treinadas”. Com a parte da resposta de Cullors, tirada do contexto e incompleta, somada à manipulação da ideia do movimento ser contra a família nuclear (leia-se “tradicional”), os cristãos conservadores construíram uma narrativa falsa para enfrentar a força do BLM justamente no momento em que o movimento se destaca como principal referência da luta antirracista após o brutal assassinato de George Floyd, em Minneapolis, no fim de maio.
A versão do Mass Resistance associando BLM como anti-família passou a ser, quase que imediatamente, compartilhada pelos cristãos conservadores no Brasil. Muitos deles, sobretudo os de orientação teológica calvinista, são vinculados a organizações, igrejas e seminários teológicos que possuem fortes relações com instituições cristãs do sul dos EUA, que apoiaram o regime escravocrata no passado. Bastaria uma leitura rápida no texto completo do BLM, com honestidade, para saber que não é razoável qualquer margem para se inferir um projeto de destruição da família.
O pastor Tiago Santos fez um longo texto em sua página no Facebook sobre o BLM e concluiu que “o cristão não precisa aderir a um movimento violento, de filosofia estranha à fé cristã e alienante como o BLM”. Santos é pastor da Igreja Batista da Graça e um dos diretores do Martin Bucer, um dos mais conservadores seminários teológicos brasileiros, cujo principal diretor, Franklin Ferreira, é hoje um dos calvinistas mais agressivos nas redes sociais. Também pastor, Franklin corrobora em texto que o BLM é “um grupo revolucionário marxista” que deseja “acabar com a família nuclear”. Não deixa de ser curioso que, segundo seu site, o Seminário Martin Bucer tenha apenas uma mulher e nenhum negro em seu corpo docente de 14 professores.
Chama atenção o BLM ser apontado como um “movimento violento” por uma organização que, nos EUA, está entre as mais agressivas. Faz ameaças contra a comunidade LGBTQ, em especial, e é simpática a supremacistas brancos. O responsável pela unidade do Mass Resistance na Califórnia, Arthur Scharper, já foi inclusive advertido pelo Partido Republicano, ao qual é filiado, por suas “atividades inadequadas”, que consiste em ações violentas e insultos extremistas. Scharper xingou a deputada democrata Maxin Waters, uma mulher negra e idosa, mandando ela “ir ao inferno” em frente ao escritório da parlamentar.
O pastor Steven Anderson, do Arizona, conhecido por declarações do tipo “gays devem morrer”, já fez parte do grupo. No massacre de uma boate gay em Orlando, em 2016, o pastor Anderson celebrou as mortes como “50 pedófilos a menos no mundo”. Em 2019, Anderson foi proibido de entrar na Irlanda por seu discurso de ódio.
O deputado Carlos Jordy, do PSL, foi um entre as dezenas de conservadores cristãos que usou sua página no Facebook para compartilhar a imagem de um protesto em Portland, no dia 31 de julho, em que os manifestantes queimaram uma bandeira americana e uma Bíblia. No texto, o deputado usa a legenda: “Black Lives Matter, a intolerância e vandalismo travestidas de combate ao preconceito”. Como imagem, usou a manchete extraída de um texto do veículo Renova Mídia” que diz: “Bíblias são queimadas em atos do Black Lives Matter”. Portland tem passado por protestos contra a violência policial desde a morte de Floyd. O movimento perdia força, até que, no início de julho, surgiram relatos de que os agentes federais estavam sequestrando manifestantes. Desde então, os protestos se intensificaram novamente.
No protesto citado pelo deputado, foram queimadas uma bandeira americana e uma Bíblia, não “Bíblias”, por manifestantes aleatórios não ligados ao BLM. É evidente que o uso do plural “Bíblias” visa forçar a ideia de uma “cruzada” do BLM contra valores cristãos e o seu maior símbolo. Jordy chega a falar em “uma pilha de Bíblias trazidas para queimar”, citando o ativista pró-Trump Ian Miles Cheong, que não conseguiu comprovar essa informação. Não há registro sobre “pilhas de Bíblias”, e o próprio Renova Mídia atualizou a sua página, mudando o título do plural para o singular. A foto de Jordy, no entanto, não foi mudada.
Sobre o mesmo episódio, pastor Renato Vargens, da Igreja Cristã da Aliança, em Niterói, no Rio, disse que eram “ativistas de esquerda queimando Bíblias”. O pastor repete a mesma informação inverídica compartilhada por Carlos Jordy, falando em “pilha de Bíblias”, quando no próprio vídeo que ele compartilha não é possível ver pilha alguma.
Um trecho do texto de Vargens chama atenção: “Tenho dito que o Ocidente, que até então vivia em paz com o cristianismo, começa a sofrer perseguição por parte de esquerdistas”. Uma grande questão seria descobrir quando foi esse tempo em que o Ocidente “viveu em paz com o cristianismo”, já que, ao menos nas Américas, o cristianismo como instituição foi parte fundamental do processo de colonização, escravidão dos africanos e destruição da cultura indígena. Será que o período de paz com o cristianismo que o pastor se refere à escravidão do sul dos Estados Unidos com seus pastores e evangélicos brancos e senhores de escravos?
Queimar uma Bíblia no contexto de um protesto não parece ser a melhor das situações para se referir a uma perseguição aos cristãos. Seria perseguição aos cristãos se os negros escravizados no sul dos EUA queimassem Bíblias que os senhores brancos usavam para citar versículos que legitimavam sua condição de escravizados, seu açoite, seu linchamento? Não é bom ver uma Bíblia ser queimada, mas, talvez, fosse necessário perguntar antes o que levaria alguém ou um grupo a transferir para a Bíblia sua insatisfação e indignação com algo estrutural que lhe afeta.
Para além de uma tentativa de desqualificar o movimento, dentro ou fora do Brasil, a perseguição ao BLM revela que a pauta racial, sobretudo a partir do assassinato de Floyd, se impôs. Assumiu tamanha importância que negacionistas e racistas cristãos se veem agora na obrigação de desqualificar o principal movimento antirracista atual.
A estratégia demonstra também haver uma crescente insatisfação. Cada vez mais jovens negros e negras cristãos exigem que o racismo assuma relevância dentro de suas igrejas e paróquias. A julgar pelo apego dos fundamentalistas evangélicos pelo status quo, esses ataques devem aumentar. Parece ser mais fácil usar argumentos falaciosos e mentiras do que encarar uma questão tão difícil.