Eriki Aleixo, Diplo Brasil, 26 de agosto de 2020
No passado, na igreja aprendíamos que dançar era errado, coisa de gente que não era correta, de gente sem uma boa. Vejo uma corrida por almas nas aldeias indígenas, ainda em 2020.
Meu amigo, no que este país está se transformando? Todo dia uma notícia ruim. Uma notícia nova e, ao mesmo tempo, velha, que faz meu coração acelerar de tanta revolta e raiva. Recentemente, a Fundação Nacional do Índio (Funai) divulgou a criação de um curso de pós-graduação (especialização) em Antropologia para seus servidores, tendo no quadro de docentes alguns cristãos fundamentalistas e pessoas que tem relações com o agronegócio, como Ricardo Lopes Dias, atual coordenador-geral de Índios Isolados e de Recente Contato, escalado como coordenador do curso.
Mesmo que os povos indígenas e seus territórios tenham sido historicamente alvos da ganância por parte dos colonizadores, cada dia fica pior. Falas e práticas violentas ficaram mais comuns entre parlamentares brasileiros nos últimos anos como, por exemplo, “Pena que a cavalaria brasileira não tenha sido tão eficiente quanto a americana, que exterminou os índios”, ou ainda, “Vamos integrá-los à sociedade”, “Não vai ter um centímetro demarcado para reserva indígena ou para quilombola”, todas elas vindas do atual poder executivo brasileiro. Falas como essas tornaram-se parte do nosso cotidiano, uma violência simbólica que se materializa na morte e na evangelização dos nossos parentes, denominados de “isolados” e de “recente contato”.
O plano de realizar uma especialização em Antropologia, sob a coordenação do missionário Ricardo Lopes Dias, expressa essa violência. Querem continuar nos evangelizando, roubando nossos territórios, nossas serras, nossas florestas, nossos lavrados.
Vejo uma corrida por almas nas aldeias indígenas, ainda em 2020. Os missionários acadêmicos estão criando pós-graduações para formar ladrões de nossas sombras e almas, o que me fez lembrar de quando iam na minha comunidade, na Serra do Truarú, no estado de Roraima. Sempre era um grande evento. Embora minha finada avó dissesse para nós não irmos nas igrejas e nem nas escolas, que era para morremos “burros” (sem estudar nas escolas dos Karaiowá – o branco, não indígena), morrer falando nossa língua e não o português, eu, meus primos e primas, íamos, a convite dos pastores que apareciam, insistentemente, em casa.
Na igreja tudo era sempre muito festivo e nós crianças aprendíamos sobre o pecado e sobre punição. Sobre o céu e sobre o inferno. Nosso mundo era reduzido e os seres que viviam nos lavrados de Roraima não tinham vez. Todos os encantados que protegiam o lavrado de nós mesmos, humanos, iam sumindo, se transformando em espíritos malignos.
Nas igrejas nós aprendíamos as aleluias e, com isso, nosso parichara, as danças tradicionais, foram sendo esquecidas. Eu sei que antes nossos parentes dançavam parichara nas estradas de chão de barro, com os pés cinzentos de sujeira, com as tabocas soando tão altas que dava para ouvir do outro lado da serra. Mas eu vivi isso apenas por tabela, porque só ouvi falar.
Na igreja aprendíamos que dançar era errado, coisa de gente que não era correta, de gente sem uma boa índole, e hoje eu não sei nem dar um passo para a frente ao ritmo de uma canção sem tombar e me desequilibrar, porque os missionários nos diziam ser errado. Ainda na igreja, nós assistíamos filmes. Os missionários levavam TV, um aparelho que eles colocam uma caixinha de filme e um motor de energia elétrica. Os filmes eram sobre o fim dos tempos, sobre o que eles chamavam de apocalipse. E eu ficava muito assustado e queria aprender o que era “correto” para que nos “fins dos tempos” eu fosse para o céu. Era assustador ver o rosto do demônio nos filmes. Depois de aprender tudo isso, eu e meus primos íamos para casa.
Num certo domingo, quando estávamos saindo da igreja, antes de terminar o culto, que é como eles chamam o ritual religioso que praticam, uma missionária loira, coberta de uma pasta branca (acho que era protetor solar), viu a gente saindo da igreja e gritou para nós: Ei, vocês já estão indo? Nós respondemos: Sim, nós já vamos, porque a gente ainda vai para a casa do Jame (meu primo), que fica ali no igarapé Bakuparuau, a gente vai tomar banho. Ela surpresa, nos disse: Tudo bem, mas antes de vocês irem eu tenho um presente para vocês aqui no carro. Venham.
Eu não lembro direito, mas acho que éramos só eu e o Jame. Talvez nossa prima Erivana estivesse conosco, não lembro mais. O Jame e eu estávamos na porteira e fomos até o carro da missionária que nos esperava com a carroceria aberta. Na carroceria tinha um grande isopor e foi dele que ela retirou pacotes de bombons e entregou um para cada. Nossos olhos brilharam. Eu pensei: esse pessoal deve ser santo, nunca ganhei tanto bombom e ainda mais bombons de chocolates. Pensei logo em ir para casa levar pra mamãe e partilhar esse doce tão especial. Nós agradecemos e muito felizes fomos pra casa do meu primo, que ficava do outro lado do igarapé.
Quando chegamos o Jame tratou logo de abrir o pacote. Ele tinha uma família enorme. Meu tio (pai dele) e irmão da minha mãe tinha uns dez filhos. Embora grande parte deles tivessem suas famílias e não morassem mais ali, ainda restavam muitos curumins e cunhatãs. E todos ficaram muito curiosos olhando aqueles pacotes com bolinhas tão bem enfeitadas e brilhantes. Então a mãe do Jame pegou o pacote dele e abriu para dividir entre seus filhos. Cada um pegou pelo menos dois chocolates. O meu ainda estava debaixo do braço, totalmente protegido, pra chegar certinho em casa pra mamãe.
Quando os irmãos e irmãs do Jame abriram os pacotes ficamos surpresos, nossos olhos arregalados e tristes vislumbraram uma coisa entre os pedaços esfarelados dos chocolates, eram larvas, aqueles vermes que conhecemos como tapuru, que aparecem nas coisas estragadas. Os chocolates estavam com esses bichinhos que já tinham comido quase todo o doce. Meu coração imediatamente se encheu de tristeza, mas ainda restava esperança de que o meu poderia estar bom, não estar vencido. Acho que tem mais chocolate que o do Jame, pensei.
E na mesma hora meu tio pediu para eu abrir o pacote. Estava tudo igual. Tudo podre, tudo estragado. Os missionários tinham dado chocolates estragados para nós. Foi uma decepção tão grande. Não com os missionários. Com os chocolates.
Hoje fico me perguntando quem levaria chocolate estragado para as comunidades indígenas e encheria crianças de esperança e felicidade por comer um doce nunca visto antes? Quem seria capaz de nos dar um alimento que levaríamos para partilhar com os parentes e que provavelmente nos mataria? Quem?
Quando vejo notícias como essa, de missionários entrando em terras indígenas, cursos sendo feitos para formar ladrões de sombras e almas, a única memória que vem à cabeça é a de que querem matar nossos parentes assim como quase nos mataram.
Os missionários fizeram um “belo trabalho” na minha comunidade, tem uns vinte anos. Atualmente, na Serra do Truarú são apenas 250 Wapichana e Macuxi, mas existem sete igrejas diferentes, ainda disputando suas almas.
É uma dor quando volto para casa, porque em vez de ouvir as tabocas no ritmo do parichara, a gente ouve os gritos dos pastores nas igrejas. É como diz um amigo “uma tragédia na tragédia”.
Minha avó dizia que o mundo ia acabar um dia e nós tínhamos que guardar muitos sacos de farinha (Ui’) para poder passar por isso, guardar nas nossas casas de palhas. Mas ela dizia que antes de acabar a farinha, nós íamos voltar a viver de novo. Eu ainda não entendi o que é isso, mas me dá esperança, apesar de todo o medo que sinto neste momento, porque mesmo com tudo que está acontecendo não acredito que seja exatamente um fim, pode ser um recomeço, pois continuamos resistindo.
Apesar da entrada dos missionários nas nossas comunidades e todas as violências praticadas e as mazelas trazida por eles, como a ideia do pecado, a pregação de que dançar o parichara é coisa errada, ainda assim, há força e resistência entre nossos povos. Minha irmã que vive em nossa comunidade na Serra do Truarú sabe dançar muito bem, e continua ensinando suas filhas a dançar, e continua ensinando o parichara a suas filhas.
Agradeço a Fernanda Silva, colega de doutorado na UFAM, que sugeriu mudanças na versão final deste texto. Eriki Aleixo é indígena Wapichana da comunidade Serra do Truaru, estado de Roraima, doutorando em Antropologia Social pela UFAM, membro do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia e Membro da Articulação Brasileira dos Indígenas Antropóloges (Abia).