O aparentemente tão esperado fim do capitalismo pode ser apenas o começo de algo muito pior
Evgeny Morozov, A terra é redonda, 8 de maio de 2022
Primeiro as boas notícias. A moratória de imaginar o fim do capitalismo, apresentada na década de 1990 por Fredric Jameson, finalmente expirou. A recessão de décadas da imaginação progressista acabou. Aparentemente, a tarefa de vislumbrar alternativas sistêmicas tornou-se muito mais fácil agora, pois podemos trabalhar com opções distópicas – eis que o aparentemente tão esperado fim do capitalismo poderia ser apenas o começo de algo muito pior.
O capitalismo tardio certamente é ruim o suficiente, com seu coquetel explosivo de mudanças climáticas, desigualdade, brutalidade policial e a pandemia mortal. Mas, tendo tornado a distopia grande novamente, alguns da esquerda se moveram silenciosamente para revisar o adagio de Jameson: hoje, é mais fácil imaginar o fim do mundo do que a continuação do capitalismo tal como o conhecemos.
A notícia não tão boa é que, ao empreender esse exercício especulativo de planejamento de cenários apocalípticos, a esquerda tem dificuldade em se diferenciar da direita. De fato, os dois polos ideológicos praticamente convergiram para uma descrição compartilhada da nova realidade. Para muitos, em ambos os campos, o fim do capitalismo realmente existente não significa mais o advento de um dia melhor, seja o socialismo democrático, o anarco-sindicalismo ou o liberalismo clássico “puro”. Em vez disso, o consenso emergente é que o novo regime é nada menos que uma espécie nova de feudalismo – um “ismo” com muitos poucos amigos respeitáveis.
É verdade que o neofeudalismo de hoje chega com slogans cativantes, com aplicativos móveis elegantes e até com a promessa de felicidade virtual eterna no domínio sem fronteiras do metaverso de Zuckerberg. Seus vassalos trocaram seus trajes medievais pelas elegantes camisetas de Brunello Cucinelli e tênis de Golden Goose. Muitos adeptos da tese do neofeudalismo afirmam que sua ascensão é concomitante à do Vale do Silício. Assim, termos como “tecno-feudalismo”, “feudalismo digital” e “feudalismo da informação” são frequentemente usados. O “feudalismo inteligente” ainda não ganhou muita força na mídia, mas isto pode não estar longe.
À direita, o proponente mais vocal da tese do “retorno ao feudalismo” foi o teórico conservador Joel Kotkin, que visou o poder dos tecno-oligarcas “ligados” em The Coming of Neo-Feudalism (2020). Enquanto Kotkin optou por “neo”, Glen Weyl e Eric Posner, pensadores mais jovens de cunho mais neoliberal, optaram pelo prefixo “techno” em seu tão discutido Radical Markets (2018). O “tecno-feudalismo”, escrevem eles, “atrapalha o desenvolvimento pessoal, assim como o antigo feudalismo atrasava a aquisição de educação ou o investimento na melhoria da terra”.
Para os liberais clássicos, é claro, o capitalismo, corroído pela política, está sempre à beira de recair no feudalismo. No entanto, alguns da direita radical veem o neofeudalismo como um projeto a ser adotado politicamente. Sob rótulos como “neo-reação” ou “iluminação das trevas”, muitos estão próximos do investidor bilionário Peter Thiel. Entre eles está o tecnólogo e intelectual neo-reacionário Curtis Yarvin, que levantou a hipótese de um mecanismo de busca neofeudal, que ele carinhosamente chamou de Feud-1, já em 2010.
À esquerda, a lista de pessoas que flertaram com conceitos “feudalistas” é longa e crescente: Yanis Varoufakis, Mariana Mazzucato, Jodi Dean, Robert Kuttner, Wolfgang Streeck, Michael Hudson e, ironicamente, até Robert Brenner (o nome principal do Debate Brenner sobre a transição do feudalismo para o capitalismo). Para crédito deles, nenhum deles chega a afirmar que o capitalismo está completamente extinto ou que estamos de volta à Idade Média.
Os mais cuidadosos deles, como Brenner, sugerem que as características do atual sistema capitalista – estagnação prolongada, redistribuição de riqueza politicamente impulsionada, consumo ostensivo pelas elites combinado com crescente empobrecimento das massas – lembram aspectos de seu predecessor feudal, mesmo que seja o capitalismo aquele que governa o dia-a-dia. No entanto, apesar de todos esses avisos, muitos da esquerda descobriram que chamar o Vale do Silício ou Wall Street de “feudal” é simplesmente irresistível, assim como muitos especialistas não conseguem resistir em chamar Trump ou Orbán de “fascistas”.
A conexão real com o fascismo histórico ou com o feudalismo pode ser tênue, mas a aposta é que há valor de choque suficiente nesse tipo de proclamação que visa sobretudo despertar o público soporífero em sua complacência. Além disso, dá bons memes. As multidões famintas no Reddit e no Twitter adoram: um vídeo do YouTube que apresenta uma discussão sobre tecno-feudalismo de Varoufakis e Slavoj Žižek obteve mais de 300.000 visualizações em apenas três semanas.
No caso de figuras conhecidas como Varoufakis e Mazzucato, atormentar seu público com invocações do glamour feudal pode fornecer uma maneira amigável da mídia de reciclar argumentos que eles haviam feito anteriormente. No caso de Varoufakis, o tecno-feudalismo parece ser principalmente sobre os efeitos macroeconômicos perversos da flexibilização quantitativa. Para Mazzucato, o “feudalismo digital” refere-se à renda imerecida gerada pelas plataformas de tecnologia. O neofeudalismo é frequentemente proposto como uma forma de trazer clareza conceitual sobre os setores mais avançados da economia digital. Entretanto, aí, as mentes mais brilhantes da esquerda ainda se encontram bem no escuro.
O Google e a Amazon são capitalistas? Eles são rentistas, como sugere Brett Christophers em Rentier Capitalism? E o Uber? É apenas um intermediário, uma plataforma de cobrança de serviço que se inseriu entre motoristas e passageiros? Ou está produzindo e vendendo um serviço de transporte? Essas questões não são isentas de consequências para a forma como pensamos o próprio capitalismo contemporâneo, fortemente dominado por empresas de tecnologia.
A ideia de que o feudalismo está voltando também é coerente com os críticos de esquerda que condenam o capitalismo como extrativista. Se os capitalistas de hoje são meros rentistas ociosos que nada contribuem para o processo de produção, eles não merecem ser rebaixados à condição de senhores feudais? Essa adoção de imagens feudais por figuras da intelligentsia de esquerda amigas da mídia e dos memes não mostra sinais de cessar.
Em última análise, porém, a popularidade da linguagem feudal é uma prova de fraqueza intelectual, em vez de sinal de conhecimento da mídia. É como se o arcabouço teórico da esquerda não pudesse mais dar sentido ao capitalismo sem mobilizar a linguagem moral da corrupção e da perversão.
No que se segue, aprofundo alguns debates marcantes sobre as características distintivas que diferenciam o capitalismo de formas econômicas anteriores – e aquelas que definem as operações político-econômicas na nova economia digital – na esperança de que uma crítica da razão tecno-feudal possa lançar uma nova luz sobre o mundo em que ainda podemos viver.
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Atualmente, a única maneira de encaixar exploração e expropriação em um único modelo é argumentar que precisamos de uma concepção expandida do próprio capitalismo – como Nancy Fraser tem feito, com algum sucesso. Resta saber se o relato de Fraser, que ainda está sendo elaborado, terá êxito em dar conta de considerações geopolíticas e militares mais amplas. Mas o sentido geral do argumento que desenvolve parece correto.
Enquanto na década de 1970 pode ter sido interessante pensar o trabalho não-livre, a dominação racial e de gênero e o uso gratuito do transporte público – bem como os termos de troca desiguais que resultaram da aquisição pelo centro de mercadorias baratas produzidas na periferia, supondo tudo isso como externo ao capitalismo baseado na exploração, atualmente tudo isso se tornou mais difícil. Tais argumentos têm sido cada vez mais questionados por alguns dos trabalhos empíricos excepcionais feitos por historiadores que trabalham nos temas de gênero, clima, colonialismo, consumo e escravidão. A expropriação recebeu um tratamento mais adequado e isso complicou significativamente a pureza analítica com a qual as leis do movimento do capital poderiam ser formuladas.
Jason Moore – um aluno de Wallerstein e Giovanni Arrighi – pode ter chegado a um novo consenso quando escreveu que “o capitalismo prospera quando ilhas de produção e troca de mercadorias podem se apropriar de oceanos formados por porções de natureza potencialmente baratas – fora do circuito do capital, mas essenciais para sua operação”. Essa consideração, é claro, vale não apenas para “porções de natureza baratas” – existem muitas outras atividades e processos que podem ser apropriados – eis que tais “oceanos” ocupam mais espaço do que sugere Moore.
Uma grande concessão que o marxismo político provavelmente teria que fazer é abandonar sua concepção de capitalismo como um sistema marcado pela separação funcional entre o econômico e o político. É certo que “a necessidade econômica fornece por si só a compulsão imediata que obriga o trabalhador a transferir o trabalho excedente para o capitalista” e que isso está em contraste com a fusão do econômico com o político que ocorre sob o feudalismo. Certamente havia boas razões para apontar que o avanço da democracia parou nos portões das fábricas; esses direitos concedidos na arena política não eliminavam necessariamente o despotismo na esfera econômica.
É claro que muitos pontos nessa suposta separação eram falsos: como Ellen Meiksins Wood argumentou em seu artigo seminal sobre o assunto (The Separation of the Economic and Political in Capitalism), foi a teoria econômica burguesa que abstraiu “a economia” de seus aspectos sociais e de seu envoltório político. Foi o próprio capitalismo que criou a cunha que desloca as questões essencialmente políticas da arena política para colocá-la na esfera do econômico. Um exemplo disso é o poder “de controlar a produção e apropriação, ou seja, a alocação do trabalho social”. A verdadeira emancipação socialista exigiria também uma plena consciência de que a separação entre essas duas esferas é bem artificial.
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Os marxistas fariam bem em reconhecer que a desapropriação e a expropriação foram constitutivas da acumulação ao longo da história. Talvez o “luxo” de empregar apenas os meios econômicos de extração de valor no núcleo “propriamente” capitalista tenha sido sempre possível devido ao uso extensivo de meios extraeconômicos de extração de valor na periferia não capitalista.
Uma vez dado esse salto analítico, não precisamos mais nos preocupar com invocações do feudalismo. O capitalismo está se movendo na mesma direção de sempre, alavancando quaisquer recursos que possa mobilizar – e, nesse aspecto, quanto mais barato, melhor.
Nesse sentido, a antiga descrição de Braudel do capitalismo como “infinitamente adaptável” não é a pior perspectiva a ser adotada. Mas ele nem sempre se adapta continuamente; quando o faz, entretanto, não é certo que as tendências redistributivas para cima da pirâmide vençam as que concernem a produção. Pode ser que seja exatamente assim o que acontece, atualmente, com a economia digital. Isso, é claro, não é razão para acreditar que o tecno-capitalismo seja de alguma forma um regime mais agradável, aconchegante e progressivo do que o tecno-feudalismo. Contudo, invocando em vão o último, corremos o risco de branquear a reputação do primeiro.
*Evgeny Morozov é escritor e jornalista. Autor, entre outros livros, de Big Tech: A ascensão dos dados e a morte da política (Ubu). Tradução: Eleutério Prado. Excertos selecionados pelo tradutor do artigo Critique of Techno-feudal reason publicado originalmente na New Left Review.