Tony Costa, Agoridades, 1 de dezembro de 2020
Em relação às eleições municipais no Brasil, ainda estamos tentando compreender várias coisas, que não me arrisco a responder, mas vou citá-las:
– Se realmente o PT perdeu força em termos permanentes ou se, associado a isso, o lulismo ainda é a bola da vez, num contexto de aparecimento/consolidação de novas lideranças “médias” como Boulos e Manuela…
– Se o PSOL a médio e longo prazo vai substituir o PT, dentro de novos grupos de tendência mais à esquerda…
– Ou ainda, se o Bolsonaro vai virar suco e o bolsonarismo vai se pulverizar mais cedo ou mais tarde na tendência de fortalecimento dos partidos e grupos de centro e centro direita…
O caso de Belém do Pará pode ser interessante para pensarmos mais em complexidades do que em respostas acabadas.
Do ponto de vista das classes sociais distribuídas no espaço urbano, como mostraram Saint-Clair Trindade Jr. e Estêvão José Barbosa, ficou mais ou menos claro que os setores populares não aceitaram o discurso elitista e de defesa descarada do mercado feitas pelo candidato bolsonarista de fato, o Delegado Federal Eguchi (Patriotas).
A cidade periférica, a hipermargem, das “baixadas”, sobretudo os bairros de periferia mais antiga como Guamá, Jurunas, Terra Firme e Tapanã/Icoaraci etc. tenderam a votar no candidato do PSOL, Edmilson Rodrigues. E os bairros de centro, tais como Marco, Nazaré, Umarizal etc. tenderam a votar no candidato de extrema-direita.
Porém, essa divisão mostra apenas uma tendência geral, que carece de maior aprofundamento analítico, como deixam evidente os próprios autores que citei acima.
Se entrarmos nesses bairros da periferia de Belém, onde habita a maior parte da população, o que provavelmente veremos é uma disputa acentuada, com muitas variáveis que teremos que refletir por muito tempo ainda.
Dessas, quero colocar algumas rápidas questões:
1. Todos os bairros de periferia têm forte presença evangélica, tanto onde a esquerda ganhou quanto nas áreas que perdeu. Na Terra Firme, por exemplo, onde Edmilson ganhou, há quase uma igreja neopentecostal em cada esquina.
Não podemos partir do princípio apriorístico que diz que os evangélicos votam necessariamente na direita. Muitos evangélicos, inclusive, declararam voto em Edmilson nessas eleições.
Porém, eis a questão: as igrejas evangélicas são hoje na periferia de Belém o que foram antes os clubes de mães, as comunidades de base, os centros comunitários, os sindicatos, os espaços de sociabilidade de jovens, territórios onde o sentimento comunitário (de pertencimento) mantém-se vivo em bairros de extrema desigualdade e violência. Claro que elas não são as únicas entidades a desempenharem esse papel, mas o desempenham cada vez mais, concorrendo com outras formas de sociabilidade popular e com os movimentos sociais “tradicionais”.
Essas igrejas são, portanto, o próprio “movimento do social” nesses bairros, num contexto de crise de representatividade política, desemprego e subemprego, violência urbana e ataque ideológico sistemático a qualquer tradição política que se associe à “esquerda” etc.
Apesar da importância política crescente desse setor religioso, ele continua sendo um completo desconhecido para a maior parte da militância de esquerda.
2. Toda a periferia de Belém vive a utopia da redenção por via do mercado e do consumo. Essa utopia foi e está sendo disseminada pelos meios de comunicação de massa a décadas e nos últimos anos tem se fortalecido pela ideia do empreendedorismo popular ou neoliberalismo popular. A ideia de que qualquer pessoa que “trabalhe duro”, que seja um “empreendedor” (em oposição aos “vagabundos” ou aqueles que “dependem do Estado”) vai se dar bem na vida.
Conversei muito com ubers e trabalhadores informais durante as eleições e posso dizer que esse é um discurso corrente e muito forte.
Não é à toa que, mesmo que o delegado tenha perdido a eleição, muitas pessoas da periferia de Belém votaram no seu projeto de administração “empresarial” da cidade. Não foi uma vitória folgada e nem podemos dizer que mostra uma tendência consolidada até 2022 (em se tratando estritamente a termos eleitorais).
3. As novas sociabilidades populares do mundo virtual, configuradas nas comunidades de bairros, de times de futebol, de família, etc. no WhatsApp ou Facebook.
Muito militantes que adentraram aos grupos de bairro nas redes sociais, para ganhar votos nas eleições, perceberam que lá existe um mundo à parte (fora da bolha). Discursos de ódio e soluções de força têm ampla aceitação nas culturas populares periféricas (“bandido bom é bandido morto”, “delegado X ladrão”, “esquerdopatas” e “vagabundos” etc.).
É possível sugerir que esses discurso de ódio e de soluções de força atuais encontrem eco nas antigas estruturas de “justiça popular”, de linchamentos públicos, de fazer a justiça pelas próprias mãos, em resolver logo as coisas sem esperar uma justiça que nunca chega aos pobres, etc.
Essas estruturas se fortalecem reciprocamente em uma sociedade despedaçada, sem saídas coletivas, desconfiada dos políticos, com pessoas que vivem na rua, na informalidade, de transporte público precário, vitimada pela pandemia, sem perspectivas utópicas para além de um “Deus” vingativo e justiceiro e da utopia de ascensão individual por via mercado etc.
No que diz respeito a esta questão, é importante que se diga que se trata não apenas “dos meios”, mas “das mediações”. Os “novos” meios apenas amplificam e aceleram a circulação de visões de mundo conservadoras antigas, somadas às ideologias de força, discursos religiosos e discursos de ódio, todos estes trepidados e sacudidos pela crise global que gera medo, desesperança e desespero universalmente.
4. A crise é maior que os ganhos meramente eleitorais locais. Parece haver um consenso nas análises da esquerda sobre os motivos, digamos, fundamentais da adesão às soluções de força e violência para resolver os problemas sociais dentro do capitalismo.
Os projetos de força, geralmente auto caracterizados como outsiders, fascistas ou neofascistas, surgem da crise generalizada, fundamentalmente a crise econômica aguda (a crise do próprio sistema) associada a crises na representação política burguesa liberal. Contemporaneamente essas crises ainda se complexificam pela sua proporção civilizatória e ambiental, e também pela existência de “novos” e “velozes” meios de informação, como a internet, as redes sociais etc.
Fato é que na crise do próprio capitalismo os capitalistas não querem perder a margem de lucro e por isso propõem como solução a superexploração do trabalho. Soma-se a isso o fato de os governos, sobretudo os periféricos, também não quererem/poderem manter certos benefícios sociais (aquelas migalhas que o sistema deixa cair sobre os mais pobres), pressionados pelos próprios capitalistas.
O resultado da crise é mais crise: cada um por si e o Deus-Mercado contra todos. Daí aparece um Trump ou Bolsonaro da vida, diz que vai fazer e acontecer e na verdade beneficia mais ainda os de cima, criando mais e mais desesperança.
Esse é o pano de fundo estrutural, no qual Belém está imersa, como periferia da periferia, como margem da margem. Inclusive margem da margem frente às geopolíticas nacionais e o colonialismo interno, inclusive o colonialismo interno das esquerdas sudestinas difusoras de projetos de nação que quase nunca consideram as especificidades locais e regionais (da Amazônia, por exemplo).
E qual é a alternativa em termos estruturais que a esquerda apresenta? Qual a alternativa em termos de novo comunitarismo e economia moral e justiça popular que a esquerda deu e dá a essa ampla parcela da população das margens de Belém e do Brasil?
Certamente os anos de burocratização e parlamentarização das lutas da esquerda não ajudaram em nada para mudar esse cenário. A esquerda parlamentar e eleitoral é um Outro declarado do povo das periferias. Nesse aspecto, diga-se de passagem, Edmilson Rodrigues é realmente uma exceção.
A esquerda, grosso modo, perdeu espaço no “movimento do social”, e esse espaço foi ocupado por aquilo que descrevi acima, dentre outras coisas.
Como nada surge fora de uma materialidade, de uma concretude em termos amplos, e a concretude não se limita (unicamente) a eleições, mas a ser/estar junto nas luta sociais, a eleição de Edmilson (que é um alívio dentro do caos generalizado) mostra apenas que estamos muito atrasados em ser uma alternativa para as pessoas. Inclusive e fundamentalmente por isso significar uma instância eleitoral dentro do espaço do Estado burguês.
Fato é que enquanto houver crise (e ela vai permanecer) haverá o risco de que os sujeitos e sujeiras frustrados, fraturados e atomizados busquem soluções de força, sejas elas um bolsonarismo com Bolsonaro ou um bolsonarismo sem ele.
Nesse sentido Belém será importante e emblemática às lutas seguintes não só pelo fato de que terá uma administração municipal de esquerda a partir de 2021 (num contexto totalmente desfavorável em termos nacionais), mas também porque esta cidade terá que comprovar na prática de seus administradores e militantes e dos movimentos sociais se é ou não possível, a curto, médio e/ou longo prazo (?), estabelecer conexões para além do eleitoral com a vida prática dos trabalhadores e trabalhadoras da periferia de Belém.
Se será viável e possível amortecer/atrasar a crise e o desespero das pessoas evitando, mesmo que temporariamente, a tentação às soluções de força em escala local. Ou se é possível à esquerda (com mas também para além do governo executivo municipal) reconectar com esse mundo das margens. O mundo dos sujeitos e sujeitas atomizados, fragmentados, fraturados, temerosos mas que, apesar disso tudo, lançou um fagulha de esperança.
A crise continua. O povo está faminto, desesperançado e desesperado!
E quem tem fome e desespero, tem pressa!