Iago Moreno, Carta Maior, 23 de maio de 2020
Nas últimas semanas, a extrema direita espanhola sitiou o governo do país com diversos tipos de acusações. Com a estratégia de alimentar a crise, vimos sua frente de mídia e seus líderes políticos reforçando a polarização e a conspiração com mais virulência do que nunca. Muitos se perguntaram: o que fizemos de errado para que, em tal momento, a divisão prevaleça sobre a necessidade de se unir? Por que, enquanto o resto do mundo se une para enfrentar a pandemia, fomos capazes de entrar em ódio como esse?
Com golpes de panelas ou bots, a fanfarra da extrema-direita tornou-se insuportável. Depois de acusar o presidente Pedro Sánchez (por seis vezes) de realizar um golpe de Estado, de insinuar a necessidade de o rei ou as Forças Armadas “se manifestarem” contra ele, não sabemos que níveis de sofrimento podemos alcançar. Mas uma coisa é clara: não somos uma exceção internacional. Onde a extrema-direita surgiu, a pandemia não apenas não reduziu sua fome de poder, mas também se tornou sua principal desculpa para intensificar sua ofensiva.
Basta olhar para a França e a Itália. Nem Marine Le Pen parou de aguçar suas críticas à presidência de Emmanuel Macron, nem a extrema-direita italiana concedeu um cessar-fogo ao governo de coalizão. De fato, a “Joana d'Arc” da extrema-direita acusou o presidente francês de ser “o maior fornecedor de notícias falsas desde o início desta crise”. O partido espanhol Vox não é a única organização que camufla sua agitação através da desinformação, ao falar em “governos fraudulentos”.
As coisas não estão melhores em Roma. De fato, se Salvini está encurralado, não é porque seu discurso não tem mais espaço, mas por causa da crescente popularidade de Giorgia Meloni, líder do partido ultraconservador “Fratelli d'Italia”. A “exceção ibérica” morreu há muito tempo. Na Espanha, na Europa e em todo o mundo, a nova “Internacional Reacionária” está abordando esta crise como uma corrida para seguir adiante em seus maiores anseios. Ou seja, rejeitar qualquer “trégua” ou “aproximação” e radicalizar sua política de cerco e polarização.
Cada variante nacional teve que adaptar seu discurso à pandemia. No entanto, não foi difícil para eles. Afinal, suas lógicas já se baseavam no confronto com um “inimigo interno” que ameaça “ser nacional”; na chamada para “extirpar” a existência “corrosiva” ou “ameaçadora” de outra origem ou inclinação “estrangeira”, “perigosa” e “selvagem”.
Não se engane: o vírus já estava no seu discurso, mas tinha outro nome. Quando a mesma lógica usada para falar sobre fronteiras e imigração pode ser reciclada para falar sobre “anticorpos espanhóis” e um “vírus chinês”, basta apontar aqueles já odiados como portadores ou culpados da pandemia. E assim fizeram internacionalmente. Se olharmos para a Índia, Hungria, Estados Unidos ou Filipinas, vemos que todas essas forças transformaram a pandemia em uma extensão de seus pogroms, mais uma fase de sua “conquista do Estado”. Todos eles apontam para quem já demonizavam antes, como se isso não fosse um problema global, mas o “maior expoente” do “risco de morte” para a nação que eles estavam profetizando durante esses anos.
Na Hungria, onde o xenófobo Viktor Orbán falou antes dos imigrantes como “parasitas” e da imigração como um “veneno” perigoso, a nacionalidade iraniana de nove dos primeiros infectados serviu para conectar o discurso antes da pandemia ao nacionalismo do seu partido. “Não é coincidência”, disse o principal aliado europeu de Santiago Abascal, líder do Vox, da Espanha. Em Budapeste, os imigrantes foram acusados de trazer o vírus, em Madri, a culpa foi do feminismo e do governo progressista, por transformar 8 milhões de pessoas em uma “bomba bacteriológica”. O script foi o mesmo. Podemos apreciá-lo mesmo na Bolívia. Lá, a junta do golpe que derrubou o governo eleito de Evo Morales vem culpando as comunidades indígenas há semanas por espalhar o vírus.
Que curioso, que casual, que na Índia também é fácil perceber quem são os odiados, os estigmatizados, os culpados da pandemia. Ao saber que uma oração maciça do Movimento dos Missionários Muçulmanos Tablighi Jamaat foi um dos primeiros surtos conhecidos de contágio, especulações e conspiração que já estavam se espalhando pelos fundos pantanosos das redes começaram a ser normalizadas e até encorajadas pelo partido do governo, o BJP. Ministros falando de um “crime do Talibã”, altos funcionários apontando para a mesquita de Nizamuddin Marka por organizar uma “insurreição islâmica”. O que começou como um “meme” ou um discurso sectário acabou sendo a linha estratégica do nacional-hinduísmo. Você ainda está surpreso que Vox e o PP (partido ultraconservador espanhol) falem da manifestação feminista do 8 de março como uma “bomba epidemiológica” ou uma “parte do vírus”?
A mesma operação acontece nos Estados Unidos com Trump, com o discurso de que a pandemia teve sua origem na China. Por isso, é rebatizada como “gripe chinesa”. Funcionou com a Influenza, há 20 anos! Era preciso um gatilho para disparar a chinofobia trumpista, e ele a acabou encontrando.
De alguma forma, os complexos de sentimentos em declínio global devem ser camuflados. Uma sociedade sem o direito à saúde pública como, a dos Estados Unidos, tinha todas as condições para se tornar um dos principais centros da pandemia. Por uma questão de sobrevivência, é normal que o trumpismo tente desesperadamente culpar o povo chinês. É mais fácil explorar o medo (inerente a todos os discursos racistas) do que lidar com a dura realidade de como a zoonose, a globalização e as pandemias andam de mãos dadas. É mais fácil espalhar memes sobre sopas de morcegos e mercados de carne de pangolim do que reconhecer a cumplicidade transnacional de todas as elites em nosso sistema.
Mas o que exatamente tem sido o modus operandi? A verdade é que, apesar dos milhares de quilômetros que os separam, também encontramos muitos lugares comuns. A covid-19 se tornou a desculpa perfeita para endurecer ainda mais os golpes contra as instituições democráticas. O objetivo é acelerar a “conquista do Estado”. Agora que estamos mais sujeitos do que nunca à mediação do virtual, a extrema-direita dobrou a aposta e aumentou seu compromisso com a desinformação cibernética e o golpe digital. Fotos antigas recicladas, trotes e manchetes enganosas, campanhas de linchamento…
A conjunção de grandes investimentos e tecnologias de milhões de dólares, como bots ou direcionamento político baseado na mineração de dados, opera como uma arma de polarização e envenenamento de informações. Se vídeos do TikTok de “comerciantes muçulmanas lambendo os dedos para infectar seus clientes” são viralizados em Mumbai, teorias da conspiração sobre a possibilidade de uma guerra bacteriológica chinesa se espalham no Texas. Conspiração e desinformação organizada não são a mesma coisa, mas elas se retroalimentam. Diga o digam os peões da mídia do presidente indiano Narendra Modi, como Arnab Goswami, que passa horas na televisão incentivando teorias da conspiração, como culpar o Paquistão por se infiltrar pessoas infectadas na fronteira indiana.
Pensávamos estar sozinhos? Como Gramsci disse, no claro-escuro da história, onde o novo não termina de nascer e o velho se recusa a morrer, os piores monstros sempre ressurgem. A Espanha é apenas mais um caso. De fato, os peões negros que alimentam os ódios na Espanha são apenas os preguiçosos aprendizes de uma direita internacional mais avançada. Os protestos anti isolamento no rico bairro de Salamanca ou nas urbanizações de Aravaca têm um selo nacional, o do grotesco, mas não são, por esse motivo, uma imitação grosseira das caravanas bolsonaristas e as concentrações com as quais o trumpismo apela a “libertar” a América da quarentena. A batalha é global, e na Espanha aparecem aqueles que sabem muito bem como importar e adaptar os discursos de fora. Hoje, mais do que nunca, é conveniente pensar globalmente para defender a democracia em nível nacional.
Iago Moreno é sociólogo na Universidade de Cambridge e especialista em extrema-direita.
Publicado originalmente em 'Contexto y Acción'. Tradução de Victor Farinelli para a Carta Maior.