Após troca de comando nos EUA, Brasil ganha centralidade entre nações que pregam contra o que chamam de comunismo e defendem pautas ultraconservadoras. País emula modelo húngaro de controle.
Jamil Chade, El País Brasil, 22 de julho de 2021
A deputada bolsonarista Bia Kicis (PSL-DF) exibiu orgulhosa uma foto com a deputada alemã Beatriz von Storch, do partido de extrema direita AfD. “Hj recebi a deputada Beatrix von Storch, do Partido Alternativa para Alemanha [AfS], o maior partido conservador daquele país. Conservadores do mundo se unindo p/ defender valores cristãos e a família”, escreveu a deputada em sua rede social. A foto causou choque, especialmente pelo fato de Storch ser neta de Lutz Graf von Krosigk, ministro de Finanças do Governo nazista de Adolph Hitler. Nascido em 2013, o partido AfD é alvo de investigação do serviço secreto alemão por conexões com atos extremistas no país.
Não foi a primeira demonstração de proximidade da base de Bolsonaro com grupos extremistas. No final do ano passado, o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) promoveu uma live com o líder do Vox, Santiago Abascal. Um ano antes, o deputado esteve na Hungria com o premiê Viktor Orbán, do partido Fidesz. Em comum entre a AfD, o Vox e o Fidesz, a busca por pautas conservadoras radicais, a xenofobia, a hostilização à esquerda e à imprensa.
O Brasil virou terreno fértil para expandir suas ideias sob o governo Bolsonaro, que ainda traz um elemento extra: após o fim do Governo de Donald Trump nos Estados Unidos, a ofensiva ultraconservadora colocou no Brasil de Jair Bolsonaro todas as suas fichas, considerado o país com maior influência de consolidar a agenda ultraconservadora. O papel do Governo brasileiro ficou claro em janeiro de 2021, quando funcionários de alto escalão de Trump enviaram mensagens a outros países informando que projetos que tinham sido conduzidos pela Casa Branca seriam assumido a partir daquele momento por Bolsonaro. Seria do presidente brasileiro a função de liderar a aliança internacional ultraconservadora criada para influenciar as decisões da ONU, OMS e outros organismos. A informação faz parte de um e-mail enviado a colaboradores por Valerie Huber, a pessoa escolhida pela Casa Branca no governo Trump para tratar de temas de saúde da mulher. Numa mensagem de 20 de janeiro de 2021 obtida pelo EL PAÍS, Huber anuncia que o Brasil, gentilmente, ofereceu-se para coordenar essa “coalizão histórica”.
A coalizão de cerca de 30 países ganhou o nome de Declaração de Genebra e se transformou numa referência das alas mais radicais em movimentos religiosos. “Países que desejam se unir à Declaração podem fazer isso contatando a embaixada do Brasil nos EUA, por mais detalhes”, explicou. Huber foi a pessoa que arquitetou a coalizão e, ao longo dos últimos meses, costurou uma aproximação importante com a pasta de Damares Alves.
O Governo Bolsonaro não é o único neste movimento de manter viva a agenda de extrema direita no mundo. Mas, tornou-se chave para o fortalecimento desse grupo. De fato, a ausência de Trump não desfez a coordenação internacional. Nos últimos meses e em plena pandemia, membros do Governo brasileiro foram convidados de destaque em encontros fechados com representantes de ONGs cristãs americanas, com grupos de lobby anti-LGBTe antiaborto, além de reuniões com partidos como o Vox e outros grupos de extrema-direita.
Para diplomatas estrangeiros, o que se vê na atuação do Brasil não é nada mais que um roteiro já desenhado e implementado em países menores, mas que tiveram já anos de governos ultraconservadores. Agora, a meta é sua internacionalização. “Há um script e ele é assustador”, afirmou um negociador da UE, na condição de anonimato. O script é a transformação dos governos da Hungria e da Polônia que, ao longo de uma década, conseguiram desmontar uma democracia liberal e instaurar uma nova base ultraconservadora.
A costura dessa aliança começou a ganhar forma já nos primeiros dias do governo Bolsonaro. De forma inédita, o Brasil enviou ao menos seis missões em menos de um ano em 2019, com agendas que incluíam a promessa de uma coordenação na luta contra a perseguição sofrida por cristãos, a defesa da família e a necessidade de proteger a “soberania”. Não faltou ainda um encontro entre o então secretário da Cultura de Bolsonaro, Roberto Alvim, com equipes do ministério da Cultura da Hungria. Alvim acabou caindo diante de um polêmico vídeo no qual ele usou referências nazistas.
Longe dos encontros ministeriais, reuniões informais, conferências fechadas e um intercâmbio intenso também foram estabelecidos entre membros do segundo escalão do governo brasileiro e húngaro. Não faltou nem mesmo uma visita de Eduardo Bolsonaro ao primeiro-ministro em Budapeste. A frequência dos encontros se contrasta ainda mais diante da constatação de que, em toda a era republicana, o Brasil jamais havia enviado uma missão com um chanceler para Budapeste.
O modelo Orbán
As coincidências entre a agenda internacional de Bolsonaro e suas ações no Brasil chamam a atenção por sua semelhança em relação aos projetos que, ao longo de anos, foram implementados por Viktor Orbán. O húngaro assumiu o poder em 2010. Mas, durante uma década, o que ocorreu foi o esvaziamento da democracia e um abalo nos pilares da liberdade. Hoje, Orbán controla a Corte Constitucional, o Ministério Público e dois terços do Parlamento, além da imprensa, clubes de futebol, as artes, os espaços públicos e universidades.
Com eleições se aproximando em 2022 e com a oposição tentando criar pela primeira vez uma frente única para derrotá-lo, o primeiro-ministro ampliou sua radicalização e o uso da guerra cultural como forma de reagir à pressão. No Parlamento, leis foram aprovadas nas últimas semanas tornando a adoção de crianças por casais homossexuais um ato praticamente impossível. Ele ainda modificou normas que acabaram impedindo que menores de 18 anos tenham acesso a qualquer tipo de material que possa fazer alusão ao movimento LGBT. Livros com tais conteúdos são obrigados a trazer um alerta em suas capas e a publicidade de qualquer empresa terá de seguir regras sobre a divulgação de conteúdo.
Em seu projeto de destruição da democracia num caminho similar ao que adota Bolsonaro hoje, Orbán foi em busca da construção de uma Justiça que fosse leal a ele e sua ideologia. Se uma primeira tentativa de reforma do Judiciário esbarrou em protestos da UE, ele agora modifica de forma mais sutil, transformando o sistema de pontos pelos quais os candidatos são julgados para ganhar vagas de juizes. Quem passou por funções no governo, segundo a nova lei, ganha pontos extras. Resultado: o fim de qualquer investigação sobre corrupção no governo e entre seus aliados e o respaldo legal às mudanças de leis sobre o conceito de família, religião, imigração e do próprio sistema democrático.
Outro foco dos ataques de Orbán tem sido as ONGs, ativistas ou qualquer movimento que questione de forma dura o governo, outra bandeira também adotada pelo governo Bolsonaro. Uma das formas de intimidação em Budapeste sobre os movimentos sociais foi a proliferação de controles de auditoria e de impostos, principalmente entre 2014 e 2016. Além disso, todas as entidades que recebem algum tipo de recursos do exterior passaram a ser registadas por “agentes externos”. Apesar de o país ter cerca de 60.000 ONGs, elas passaram a ser excluídas do processo de elaboração de políticas públicas.
Assim como Bolsonaro argumenta que o único termômetro da representatividade da democracia é a eleição, o governo Orbán usa exatamente esse argumento para justificar que organizações da sociedade civil não têm mandato para atuar na formulação de políticas públicas. As coincidências na forma de agir entre os dois governos também ocorrem no tratamento da imprensa. Tanto em Brasília como em Budapeste, os meios de comunicação são considerados como uma força a ser neutralizada.
Por anos, aliados do governo passaram a comprar jornais locais, rádios e outros canais. Quando praticamente toda a imprensa estava nas mãos desses empresários, eles decidiram doar seus impérios para uma obscura fundação, em 2018. No total, 400 meios de comunicação estariam sob uma só direção. Uma semana depois, Orbán assinou um decreto isentando essa fusão de qualquer controle externo, numa centralização sem precedentes. A coordenação entre jornais regionais, revistas, rádios e TVs passou a ser completa, com títulos parecidos para suas manchetes, mesmas imagens e argumentos.
Enquanto financia quem o apoia, o governo “leva à fome” os meios independentes. Empresas que fazem publicidade em jornais contrários ao governo temem perder contratos públicos e o governo passou a não mais responder aos emails e pedidos de informação por parte desses jornais. Enquanto isso, jornalistas são assediados e a oposição passou a ser praticamente vetada de todos os debates nas televisões.
O mesmo movimento de controle também passou pela academia de ciência, dirigidas por leais seguidores do partido de Orbán. Tais estruturas passaram a concentrar grande parte do dinheiro do Estado, com professores com salários mais elevados, esvaziamento dos cursos de Ciências Humanas, o controle das universidades e, na prática, o fim de suas autonomias.
A guerra cultural ainda teve como objetivo reescrever a história do país e estabelecer o comando de teatros e museus para que a ideologia de extrema direita prevalecesse nas peças escolhidas, nas mostras e até mesmo na programação da Opera Nacional. Com uma diferença de dez anos em relação ao governo Bolsonaro, a Hungria serve de modelo de uma guinada iliberal. E que agora é assumida em parte pelo Brasil para influenciar na agenda internacional.