Zuckerberg governa 3 bilhões de usuários, manipula emoções, explora fake news e ataca democracias – e “apagão” da plataforma foi novo indício do desastre de seu monopólio. Insubmissão será essencial para resgatar projeto de internet livre
Adrienne LaFrance, The Atlantic / Outras Palavras, 5 de outubro de 2021. Tradução de Vitor Costa
Em 1947, Albert Einstein, escrevendo ao The Atlantic, propôs a criação de um governo mundial único para proteger a humanidade da ameaça da bomba atômica. Sua ideia utópica obviamente não se consolidou, mas hoje outro visionário está construindo seu simulacro de cosmocracia.
Mark Zuckerberg, ao contrário de Einstein, não inventou o Facebook por um senso de dever moral ou zelo pela paz mundial. Nos últimos meses, a população do regime supranacional de Zuckerberg atingiu 2,9 bilhões de usuários ativos mensais, mais humanos do que vivem nas duas nações mais populosas do mundo – China e Índia – juntas.
Para Zuckerberg, fundador e CEO do Facebook, eles são cidadãos da Facebooklândia. Há muito tempo, ele começou a chamá-los de “pessoas” em vez de “usuários”, mas ainda são engrenagens em uma imensa matriz social, fontes abundantes de dados para satisfazer os anunciantes que despejaram US$ 54 bilhões no Facebook apenas no primeiro semestre de 2021: uma soma que supera o produto interno bruto da maioria das nações da Terra.
Comparar o valor do Facebook com o PIB de países é revelador não apenas porque aponta para seu poder extraordinário, mas porque assim podemos vê-lo como realmente é. O Facebook não é apenas um site, uma plataforma, um editor, uma rede social, um diretório online, uma empresa, um utilitário. Ele é todas essas coisas. Mas o Facebook também é, efetivamente, uma potência estrangeira hostil.
Isso é fácil de perceber ao notar seu foco único na própria expansão; sua imunidade a qualquer senso de obrigação cívica; seu histórico de facilitar o enfraquecimento das eleições; sua antipatia pela imprensa livre; a insensibilidade e a arrogância de seus governantes; e sua indiferença à resistência da democracia estadunidense.
Alguns dos maiores críticos do Facebook fazem pressão pela criação de uma regulamentação antitruste, o desenrolar de suas aquisições e qualquer coisa que possa desacelerar seu poder, que cresce como uma bola de neve. Mas se você pensar no Facebook como um Estado-Nação – uma entidade engajada em uma guerra fria com os Estados Unidos e outras democracias – verá que isso requer uma estratégia de defesa civil tanto quanto a regulamentação da Comissão de Valores Mobiliários [agência norte-americana de regulamentação e controle dos mercados financeiros].
Hillary Clinton me disse no ano passado que sempre sentiu um cheiro de autoritarismo em Zuckerberg. “Sinto às vezes como se estivesse negociando com uma potência estrangeira”, disse ela. “Ele é imensamente poderoso.” Um de seus primeiros mantras no Facebook, de acordo com Sheera Frenkel e Cecilia Kang em seu livro, An Ugly Truth: Inside Facebook’s Battle for Domination [2021, sem edição no Brasil], era “empresa acima do país”. Quando essa empresa tem todo o poder de um país, essa ideia ganha um significado mais sombrio.
Os componentes básicos da nacionalidade são mais ou menos esses: é preciso ter terra, moeda, filosofia de governança e pessoas.
Quando você é um imperialista no metaverso, não precisa se preocupar tanto com a área física – embora Zuckerberg possua 1.300 acres [526 hectsares] em Kauai, uma das ilhas havaianas menos povoadas. Quanto ao restante dos itens da lista, o Facebook tem todos.
A empresa está desenvolvendo seu próprio dinheiro, um sistema de pagamento baseado em blockchain conhecido como Diem (antes era chamado de Libra) que os reguladores financeiros e os bancos temiam que pudesse derrubar a economia global e dizimar o dólar.
E durante anos Zuckerberg falou sobre seus princípios de governança para o império que construiu: “Conectividade é um direito humano”; “Votar é ter voz”; “Anúncios políticos são uma parte importante da voz”; “O grande arco da história humana inclina-se para que as pessoas se reúnam em números cada vez maiores.” Ele estendeu essas ideias em um novo tipo de colonialismo – com o Facebook efetivamente anexando territórios onde um grande número de pessoas ainda não estava online. Seu polêmico programa Free Basics, que oferecia às pessoas acesso gratuito à internet – desde que o Facebook fosse seu portal – foi anunciado como uma forma de ajudar a conectar as pessoas. Mas seu verdadeiro objetivo era fazer do Facebook a experiência de internet de facto em países de todo o mundo.
O que o Facebook possui acima de tudo, é claro, são pessoas: uma população gigantesca de indivíduos que optam por viver sob o governo de Zuckerberg. Em seus escritos sobre o nacionalismo, o cientista político e historiador Benedict Anderson sugeriu que as nações não são definidas por suas fronteiras, mas pela imaginação. A nação é, em última análise, imaginária porque seus cidadãos “nunca conhecerão a maioria de seus companheiros, os encontrarão ou mesmo ouvirão falar deles, mas na mente de cada um vive a imagem de sua comunhão”. As comunidades, portanto, se distinguem acima de tudo “pelo estilo em que são imaginadas”.
Zuckerberg sempre tentou fazer os usuários do Facebook se imaginarem como parte de uma democracia. É por isso que ele se inclina mais para a linguagem da governança do que para o decreto corporativo. Em fevereiro de 2009, o Facebook revisou seus termos de serviço para que os usuários não pudessem excluir seus dados, mesmo que fechassem o site. A raiva contra o estado de vigilância do Facebook foi rápida e alta, e Zuckerberg relutantemente reverteu a decisão, dizendo que tudo tinha sido um mal-entendido. Ao mesmo tempo, apresentou em uma postagem no blog o conceito de uma Declaração de Direitos e Responsabilidades do Facebook, convidando as pessoas a compartilharem seus comentários – mas apenas se elas se inscrevessem com uma conta no Facebook.
“Mais de 175 milhões de pessoas usam o Facebook”, escreveu à época. “Se fosse um país, seria o sexto país mais populoso do mundo. Nossos termos não são apenas um documento que protege nossos direitos; é o documento que rege como o serviço é usado por todos em todo o mundo.”
Desde então, a população do Facebook aumentou para 17 vezes esse tamanho. Ao longo do caminho, Zuckerberg se lançou repetidamente como o chefe da nação do Facebook. Sua obsessão com o domínio do mundo parece previsível, em retrospecto – sua inquietação antiga com o Império Romano e com César Augusto, a versão digital de Risk que ele codificou quando adolescente, seu interesse permanente em psicologia humana e contágio emocional.
Em 2017, em um manifesto sinuoso sobre sua “comunidade global”, Zuckerberg escreveu: “No geral, é importante que a governança de nossa comunidade se dimensione com a complexidade e as demandas de seu povo. Temos o compromisso de sempre fazer melhor, mesmo que isso implique a construção de um sistema de votação mundial para dar a você mais voz e controle”. Claro, como em qualquer negócio, os únicos votos que importam para o Facebook são os de seus acionistas. Mesmo assim, o Facebook sente a necessidade de disfarçar seu comportamento em busca de lucro com falsos pretextos sobre os mesmos valores democráticos que ameaça.
Fingir terceirizar suas decisões mais importantes para esvaziar imitações de corpos democráticos tornou-se um mecanismo útil para Zuckerberg evitar a responsabilização. Ele controla cerca de 58% das ações com direito a voto da empresa, mas em 2018 o Facebook anunciou a criação de uma espécie de braço judiciário, conhecido, à moda orwelliana, como Oversight Board. O conselho faz chamadas difíceis em questões espinhosas que têm a ver com moderação de conteúdo. Em maio, proferiu a decisão de manter a suspensão de Donald Trump pelo Facebook. O Facebook diz que os membros do conselho são independentes, mas é ele que os contrata e paga.
Agora, de acordo com o The New York Times, o Facebook está considerando formar uma espécie de corpo legislativo, uma comissão que poderia tomar decisões sobre questões relacionadas às eleições – preconceito político, propaganda política, interferência estrangeira. Isso desviaria ainda mais o escrutínio para longe da liderança do Facebook.
Todos esses arranjos dão a impressão de um sistema de justiça “Potemkin”, que revela o que o Facebook realmente é: um estado estrangeiro, povoado por pessoas sem soberania, governado por um líder com poder absoluto.
Os defensores do Facebook gostam de argumentar que é ingênuo sugerir que o poder do Facebook é prejudicial. As redes sociais são algo que faz parte das nossas vidas, eles insistem, e não vão embora tão cedo. Estão certos: ninguém deveria desejar retornar aos ecossistemas de informação dos anos 1980, 1940 ou 1880. A democratização da publicação é maravilhosa. Ainda acredito que a tripla revolução provocada pela internet, smartphones e mídias sociais foi benéfica para a sociedade. Mas isso só é verdade se insistirmos em plataformas que atendam ao interesse público. Não é o caso do Facebook.
O Facebook é um instrumento de disseminação de mentiras para o colapso civilizacional. Ele é projetado para reações emocionais abruptas, reduzindo a interação humana ao clique de botões. O algoritmo guia os usuários inexoravelmente em direção a conteúdos menos matizados e mais extremos, porque isso é o que mais eficientemente provoca emoções. Os usuários são treinados implicitamente para buscar reações ao que postam, o que perpetua o ciclo. Os executivos do Facebook têm tolerado a promoção em sua plataforma de propaganda política, recrutamento de terroristas e genocídio. Eles apontam para virtudes democráticas como a liberdade de expressão para se defender, enquanto desmontam a própria democracia.
Essas hipocrisias já estão tão estabelecidas quanto a reputação de crueldade de Zuckerberg. O Facebook conduziu experimentos psicológicos em seus usuários sem o consentimento deles. Construiu um sistema secreto em camadas para isentar seus usuários mais famosos de certas regras de moderação de conteúdo e censurou a pesquisa interna sobre os efeitos devastadores do Instagram na saúde mental de adolescentes. Rastreou indivíduos pela web, criando perfis de sombra de pessoas que nunca se cadastraram em sua rede para armazenar seus contatos. Jura combater a desinformação, ao mesmo tempo que confunde os pesquisadores que estudam esses fenômenos e dilui o alcance das notícias de qualidade em suas plataformas.
Até mesmo os fiéis ao Facebook admitem que é um lugar para lixo, hipérboles, falsidade – mas argumentam que as pessoas deveriam ser livres para controlar a ingestão de tais toxinas. “Embora o Facebook possa não ser nicotina, acho que provavelmente é como o açúcar”, escreveu o antigo executivo da empresa, Andrew “Boz” Bosworth, em um memorando de 2019. “Como com todas as coisas, nós nos beneficiamos com a moderação… Se eu quiser comer açúcar e morrer prematuramente, essa é uma opinião válida.”
O que Bosworth deixou de dizer é que o Facebook não tem apenas a capacidade de envenenar o indivíduo, mas está fazendo. Quando se trata de 2,9 bilhões de pessoas, o que é necessário é moderação em escala, não a nível pessoal. A liberdade de se autodestruir é uma coisa. A liberdade de destruir a sociedade democrática é outra bem diferente.
O Facebook se vendeu às massas prometendo ser um meio de liberdade de expressão, de conexão e de comunidade. Na verdade, é uma arma contra a internet aberta, contra a autoatualização e contra a democracia. Tudo isso para que a plataforma pudesse exibir seus dados aos anunciantes.
A algum grau, isso é algo que o Facebook tem em comum com sua subsidiária Instagram e seus rivais Google, YouTube (que é propriedade do Google) e Amazon. Todas exibem um posicionamento “nobre” – seu propósito é, de várias maneiras, ajudar as pessoas a compartilharem suas vidas, fornecer respostas para as perguntas mais difíceis e satisfazer necessidades. Mas, dos gigantes, o Facebook é o mais evidente em suas abdicações morais.
O Facebook precisa que seus usuários continuem acreditando que sua dominação é um presente, que ignorem o que está fazendo à humanidade e usem seus serviços mesmo assim. Qualquer pessoa que busque proteger a liberdade individual e a governança democrática deveria se incomodar com essa aceitação do status quo.
Os reguladores estão de olho no Facebook por um bom motivo, mas a ameaça que a empresa representa para os norte-americanos é muito mais do que seu monopólio de tecnologia emergente. A ascensão do Facebook é parte de um movimento autocrático maior, que está corroendo a democracia em todo o mundo, à medida que líderes autoritários definem um novo tom para a governança global. Considere como o Facebook se retrata como um contrapeso a uma superpotência como a China. Os executivos da empresa alertaram que as tentativas de interferir no crescimento desenfreado do Facebook – por meio da regulamentação da moeda que está desenvolvendo, por exemplo – seriam um presente para a China, que quer que sua própria criptomoeda seja dominante. Em outras palavras, o Facebook está competindo com a China da mesma forma que uma nação faria.
Talvez os estadunidenses tenham se tornado tão cínicos que desistiram de defender sua liberdade contra a vigilância, a manipulação e a exploração. Mas se a Rússia ou a China estivessem realizando exatamente as mesmas ações para minar a democracia, os norte-americanos certamente veriam isso de forma diferente. Ver o Facebook como uma potência estrangeira hostil pode fazer as pessoas reconhecerem do que estão participando e do que estão desistindo, quando se conectam. No final das contas, não importa realmente o que é o Facebook. Importa o que o Facebook está fazendo.
O que poderíamos fazer? Empresas “socialmente responsáveis” poderiam boicotar o Facebook, privando-o de receita publicitária da mesma forma que as sanções comerciais privam as autocracias de divisas estrangeiras. No passado, porém, os boicotes de grandes corporações como a Coca-Cola e a CVS mal tiveram repercussão. Talvez os funcionários comuns do Facebook pudessem fazer lobby por reformas, mas nada menos que greves em massa, do tipo que tornaria a operação contínua do Facebook impossível, surtiria grande efeito. E isso exigiria uma coragem extraordinária e ação coletiva.
Os usuários do Facebook são o grupo com mais poder para exigir mudanças. O Facebook não seria nada sem a atenção deles. Os cidadãos estadunidenses e de outras democracias podem evitá-lo, bem como o Instagram, não apenas como uma escolha de estilo de vida, mas por uma questão de dever cívico.
Será que um número suficiente de pessoas poderia se reunir para derrubar o império? Provavelmente não. Mesmo que o Facebook perdesse 1 bilhão de usuários, sobrariam mais 2 bilhões. Mas precisamos reconhecer o perigo em que corremos. Precisamos nos livrar da noção de que o Facebook é uma empresa normal ou que sua hegemonia é inevitável.
Talvez um dia o mundo se reúna como um só, em paz, como sonhou Einstein, indivisível pelas forças que lançaram guerras e desmoronaram civilizações desde a antiguidade. Mas se isso acontecer, se pudermos nos salvar, certamente não será por causa do Facebook. Será apesar dele.