Este texto é a Introdução do livro O Patriarcado do Salário — notas sobre Marx, gênero e o feminismo, de Silvia Federici (recém-lançado pela Editora Boitempo, parceira editorial de Outras Palavras)
Silvia Federici, Outras palavras, 8 de março de 2021
O que significa, atualmente, repensar a relação entre marxismo e feminismo?
A pergunta é legítima, considerando-se a vasta bibliografia já existente sobre o tema. Ainda assim, como Shahrzad Mojab observou na introdução de Marxism and Feminism [Marxismo e feminismo]1 , o problema da relação entre esses dois movimentos ainda não está resolvido. Como as conferências, os seminários e os artigos apresentados para celebrar o aniversário de 150 anos da publicação do Livro I de O Capital demonstraram, para um grande número de marxistas ainda é difícil se distanciar de aspectos da obra de Marx incompatíveis com a luta por justiça social – a começar pela concepção excludente que ele tinha de trabalho e de sujeitos revolucionários, pelo modo como subestimava a importância das atividades reprodutivas e dos efeitos destrutivos do machismo e do racismo e por sua confiança no caráter “progressista” da ciência e da indústria como produtoras das condições materiais para a transição ao comunismo.
Por sua vez, apesar de ser uma necessidade crescente entre os novos movimentos feministas emergentes mundo afora, a articulação do ponto de vista do feminismo anticapitalista também luta para se estabelecer. Para refletir sobre essas questões e sobre a relação entre marxismo e feminismo, reuni neste volume textos que escrevi nos anos 1970 e alguns mais recentes. Cada um representa um momento no desenvolvimento de um discurso feminista sobre Marx e, às vezes, uma tentativa de responder à indagação colocada por Mojab: como superar a “primeira grande divisão da história”, unir “os dois principais projetos emancipatórios, marxismo e feminismo” e propiciar o “grande salto” que a política de nosso tempo exige2.
Para realizar essa tarefa, o livro revisita uma série de pontos que têm estado no centro das críticas feministas a Marx. Primeiro, a questão do “trabalho”, na condição de instrumento da acumulação capitalista e terreno do confronto entre a classe trabalhadora e o capital. O que permitiu a Marx e a seus seguidores e seguidoras pensarem o trabalho apenas, ou antes, como trabalho industrial e assalariado? Por que, em sua análise do capitalismo, Marx ignorou as atividades que reproduzem a vida e a força de trabalho? Como argumento nos artigos incluídos neste volume, é pela redefinição do que constitui o trabalho que uma perspectiva feminista se mostra crucial, tornando visível uma série de atividades irredutíveis à mecanização, que são essenciais à vida e nas quais, ainda assim, o marxismo nunca tocou.
Repensar o marxismo e o feminismo também significa colocar no centro da “luta de classes” a questão das divisões forjadas pelo capitalismo no interior do proletariado mundial, começando pela discriminação sexual e racial, um tema ausente da obra de Marx. Em seus escritos e suas intervenções na Primeira Internacional, Marx denunciou tanto as relações patriarcais quanto o racismo. No entanto, não temos em sua obra uma análise da função dos diferentes regimes laborais e hierarquias criados pelo desenvolvimento capitalista, ao longo de sua história, com base nas relações raciais e de gênero. Ainda assim, um fator que permitiu que o capitalismo se reproduzisse até nossos dias foi precisamente sua capacidade de mobilizar setores do proletariado como instrumentos de políticas racistas e machistas e de avanços da colonização.
Aliás, ao lado da discriminação racial, a habilidade dos homens de recuperar a força perdida no local de trabalho à custa das mulheres provavelmente evitou revoluções.
Aí, mais uma vez, a perspectiva feminista é essencial para uma análise do capitalismo, pois demonstra que, assim como o racismo e o etarismo, o machismo é um elemento estrutural do desenvolvimento capitalista, uma força material a se interpor no caminho de qualquer transformação social verdadeira, que não pode ser derrotada (como Marx acreditava) pela entrada das mulheres nas fábricas e pelo trabalho ao lado dos homens, exigindo, em vez disso, que as mulheres se rebelem contra a dominação masculina e suas bases materiais.
Em terceiro lugar, repensar a relação entre marxismo e feminismo é questionar o papel emancipatório que Marx e a tradição marxista atribuíram à ciência, à indústria e à tecnologia, cujo desenvolvimento Marx descreveu como “a missão histórica do capitalismo”. Na verdade, ele acreditava que, com o imenso aumento da produtividade laboral, tão logo estivesse nas mãos da classe trabalhadora, a industrialização da produção reduziria a jornada dedicada ao trabalho necessário e liberaria nosso tempo e nossas energias para atividades mais importantes. Mas essa visão ignora que grande parte do “trabalho necessário” é de natureza tão emocional e interacional que impede a mecanização. Como vimos, apesar de algumas tentativas de atribuir a robôs o cuidado de crianças e outras formas de trabalho de cuidado, a industrialização de grandes áreas do trabalho reprodutivo ainda parece inalcançável e indesejável. Devemos acrescentar que, ao privilegiar o desenvolvimento industrial como condição necessária para a construção de uma sociedade baseada na justiça social, Marx e toda a tradição marxista subestimaram a destruição ecológica e social que a indústria produziria e o poder letal que ela daria à classe capitalista.
Enquanto escrevo, incêndios queimam centenas de hectares de florestas na Califórnia, no Oregon e em outras regiões do mundo, oceanos estão sendo transformados em lixeiras, recifes de corais estão morrendo, plantações são envenenadas quimicamente, espécies animais são extintas, bem como culturas, línguas, populações, ao mesmo tempo que um novo processo de colonização está acontecendo para obter minerais imprescindíveis à digitalização da produção, levando novamente ao deslocamento em massa, ao constante estado de guerra e a uma imensa perda de vidas humanas.
Em vez de produzir a condição material para a sociedade comunista (como Marx supôs que produziria), a indústria e a tecnologia capitalistas estão destruindo a Terra e, ao mesmo tempo, criando novas necessidades que dificultam pensarmos em “revolução” na atualidade, pois construir uma sociedade justa, caracterizada pela distribuição igualitária de riqueza natural e social, pode envolver a redução do acesso a instrumentos tecnológicos que estão se tornando indispensáveis a nossa vida.
Como reafirmei do começo ao fim deste trabalho, assumir uma postura crítica em relação a aspectos da teoria política de Marx não é rejeitar sua obra nem deixar de reconhecer sua importância única. Marx nos deu a linguagem e as categorias necessárias para pensar o sistema capitalista e compreender a lógica que impulsiona sua reprodução crescente. Aliás, mesmo depois de todas as mudanças pelas quais o capitalismo passou desde sua época, hoje é difícil pensar na realidade social contemporânea e na luta pela libertação sem recorrer a O Capital ou aos Grundrisse. Mas é inviável minimizar ou ignorar os aspectos problemáticos da perspectiva política de sua obra. É hora de reconhecer que Marx subestimou a resiliência e a capacidade destrutiva do desenvolvimento capitalista e priorizou a análise da produção capitalista ao mesmo tempo que negligenciou algumas das atividades mais importantes por meio das quais a vida é reproduzida3.
Estamos descobrindo agora que o próprio Marx muitas vezes ficou inseguro em relação a suas teorias, motivo pelo qual não publicou os Livros II e III de O Capital em vida e deixou várias versões revisadas de seus textos4. Também sabemos que, em seus últimos anos, ele reviu sua concepção de caminho para a revolução e aprendeu a valorizar as culturas e as conquistas de povos que viviam em uma fase pré-industrial, como as populações nativas das Américas5 . Além disso, no prefácio de 1872 ao Manifesto Comunista, ele escreveu, junto com Engels, que (ao contrário da opinião que tinham originalmente, em 1848): “A Comuna de Paris demonstrou, especialmente, que ‘não basta que a classe trabalhadora se apodere da máquina estatal para fazê-la servir a seus próprios fins’”6
É possível, portanto, que ele também tivesse reconsiderado que a classe trabalhadora poderia se apoderar da tecnologia capitalista, voltá-la a propósitos positivos e, no devido tempo, compreendesse a importância do feminismo que ele, em vez disso, menosprezou como uma luta por direitos burgueses. Pois uma perspectiva e um movimento que confrontem o capitalismo com uma compreensão mais profunda das exigências da reprodução diária da vida é primordial para a realização da essência revolucionária do marxismo.
1 Sharzhad Mojab, “Introduction”, Marxism and Feminism (Londres, Zed, 2015).
2 Ibidem, p. 18.
4 Ibidem, p. 7: “O Marx dos últimos tempos estava cada vez mais atormentado por dúvidas científicas sobre o rigor de sua abordagem conceitual e desistiu de publicar os Livros II e III de O Capital, apesar de ser pressionado por todos os lados".
5Ver Franklin Rosemont, “Karl Marx and the Iroquois”, 2 jul. 2009. Disponível em: <http://libcom.org/library/karl-marx-iroquois-franklin-rosemont >; acesso em: 8 out. 2020.
6Ver Karl Marx e Friedrich Engels, The Communist Manifesto, Frederick Bender (org.). (Nova York/Londres, Norton, 2013), p. 48 [ed. bras.: Manifesto comunista, trad. Álvaro Pina e Ivana Jinkings, São Paulo, Boitempo, 1998, p. 72]. Citado por Wayne Price, “A Fundamental Thesis of Revolution and the State. Can the State Be Used to Create Socialism?”, Anarkismo.net, 14 nov. 2020. Disponível em: <http://www.anarkismo.net/article/32086>; acesso em: 2 dez. 2020.