Democracia Abierta, 25 de junho de 2020
A América Latina foi declarada como o novo epicentro da Covid-19, enquanto outra pandemia passa despercebida: a pandemia de violência de gênero, agora agravada pelo coronavírus.
Diante da ameaça da crise sanitária, muitos países tomaram decisões para conter o surto, como o fechamento de fronteiras e a aprovação de medidas para confinar a população através de quarentenas nacionais. As circunstâncias exigiam tais posições, mas o controle da pandemia exacerbou níveis já exorbitantes de violência doméstica em uma das regiões mais mortíferas do mundo para as mulheres. Para milhares de mulheres latinas, o lar está longe de ser um refúgio.
Novos dados do Comitê Internacional de Resgate (IRC) mostram um aumento dramático nos relatos de violência de gênero na América Latina desde o início da pandemia de Covid-19.
Em El Salvador, quase 200 queixas de violência contra as mulheres foram relatadas pela Organização das Mulheres Salvadorenhas pela Paz (ORMUSA), entre 17 de março e 22 de maio, representando um aumento de 70% nas queixas em relação a 2019.
No México, o estado de Chihuahua viu um aumento de 65% nos feminicídios entre março e abril de 2020. As denúncias através das linhas de emergência no país aumentaram 60% nas semanas seguintes ao confinamento e às medidas de distanciamento social.
De acordo com o Conselho Presidencial para a Equidade da Mulher, houve um aumento de 51% nos casos de violência doméstica contra a mulher na Colômbia durante os primeiros dias da quarentena nacional. A campanha NoEsHoraDeCallar identifica 99 mulheres como vítimas de feminicídio este ano, de acordo com o jornal El Tiempo. Desde o início da quarentena, as ligações para as linhas diretas aumentaram em mais de 90%.
Em abril de 2020, houve também um aumento desproporcional de 65% de femicídios na Venezuela, em comparação com abril de 2019.
Já em Honduras, desde a pandemia, o número de casos relatados de violência doméstica e intra-familiar aumentou em 4,1% por semana.
De acordo com outra matéria do El Tiempo, na Argentina, as denúncias através das linhas diretas de violência doméstica aumentaram em 40% após o governo instituir uma quarentena obrigatória. O país registrou 140 mortes violentas de mulheres entre 1º de janeiro e 30 de maio, segundo a ONG Mumalá Nacional (Mujeres de la Matria Latinoamericana).
No Brasil, as denúncias de violência doméstica registradas no Ligue 180 aumentaram quase 38% só no mês de abril. Em apenas os 12 estados analisados pelo Fórum de Segurança Pública brasileiro, os feminicídios aumentaram 22% em março e abril.
A pandemia de Covid-19 agravou o problema da violência de gênero nos países latino-americanos porque os governos não trataram suas causas, permitindo que os crimes ocorressem dentro de casa de forma sistêmica e estrutural.
A violência de gênero é reforçada por leis e normas sociais discriminatórias que minam as oportunidades de educação, renda e independência de mulheres e meninas
De acordo com dados compilados a partir de 2018 pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) sobre mulheres mortas por seu parceiro ou um membro da família, a região das Américas é a segunda mais fatal para as mulheres, depois da África. Em média, 3,1 mulheres africanas em cada 100.000 são vítimas de feminicídio, e nas Américas a taxa é de 1,6 por 100.000 mulheres.
O estudo de 2016, "A Gendered Analysis of Violent Deaths" (Um estudo de gênero sobre mortes violentas), relatou que catorze dos 25 países com as maiores taxas de femicídios são latino-americanos.
Não há dúvida de que a situação é crítica, mas a ausência de dados padronizados, a divergência de leis entre os diferentes países da região e a subnotificação de casos, entre outras barreiras, dificultam a prevenção e a aplicação da justiça em casos de violência de gênero, incluindo o feminicídio.
Em novembro de 2019, a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) anunciou uma ótima notícia: a CEPAL está criando um sistema de registro de feminicídios que cobrirá toda a América Latina e o Caribe, para que os dados futuros possam ser padronizados. Mas ter números melhores para entender o quadro geral do problema é apenas o começo.
O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento identifica a desigualdade como uma das principais causas da violência de gênero. Essa realidade se reflete nos rankings: países mais desiguais também têm taxas desproporcionalmente altas de feminicídio e violência contra as mulheres.
Em muitos lugares, especialmente em países de baixa e média renda, a violência de gênero é reforçada por leis e normas sociais discriminatórias que minam as oportunidades de educação, renda e independência de mulheres e meninas.
Como exemplo, pelo menos um terço das vítimas de feminicídio na Colômbia entre 2014 e 2017 tinha procurado proteção da justiça, sugerindo que as autoridades não estão garantindo a segurança das mulheres com alto risco de feminicídio.
Quando os casos relatados chegam à justiça, eles raramente terminam em condenação. De acordo com o mesmo artigo do El Tiempo, dos 76 casos de feminicídio registrados pela Procuradoria Geral, apenas um quarto resultou em condenações do agressor e apenas 13 tiveram uma audiência sobre as acusações.
Não ver que a causa da violência de gênero e do feminicídio é baseada na desigualdade leva a decisões infrutíferas. Na Colômbia, por exemplo, ainda esta semana o Senado está debatendo a implementação de prisão perpétua para casos de estupro contra crianças e adolescentes, buscando uma solução criminal e punitiva para um problema que é estrutural e histórico.
Assim como a pandemia de Covid-19 vem exigindo medidas extraordinárias para conter o vírus, a pandemia de violência de gênero agora exige que forneçamos proteção e abrigo às vítimas com urgência.
Mas se realmente quisermos combater o problema de forma eficaz, teremos que exigir intervenções através de políticas de longo prazo que mudem as normas sociais discriminatórias e que fechem as brechas de gênero, seja no nível educacional, econômico ou social.