Javiera Poblete Vargas *, publicado originalmente em VientoSur, em 29/6/2020
Nos debates suscitados em torno da teoria queer, temos percebido que existe um temor inusitado quanto à possibilidade de que o avanço das transformações sociais e culturais quanto ao gênero e à sexualidade negue a existência das mulheres e nossa história de opressão e desigualdades. Por isso, consideramos que se faz necessário que voltemos a perguntar algo que as teóricas feministas fizeram há setenta anos e que nos permitiu gerar avanços investigativos com uma grande incidência política: o que significa ser uma mulher?
Diante desta questão, podemos dizer que quando Simone de Beauvoir escreveu “Não se nasce mulher, torna-se” ela não negou a existência do sexo biológico, mas sim problematizou a construção histórica e cultural do que significa ser uma mulher a partir da diferença sexual anatômica dos corpos. Desde então, a teoria feminista contemporânea vem desvelando que o patriarcado produz uma ordem simbólica e cultural que outorga significado às experiências sociais, sexuais e afetivas das mulheres para sustentar sua opressão. E isso sob o pressuposto biológico – e aparentemente científico – de que a feminilidade é a expressão identitária que emerge da nossa biologia materna.
Em decorrência disso e com o avanço dos estudos de gênero, ficou em evidência, portanto, que o que nos oprime não é a existência do órgão sexual com o qual nascemos, mas sim todo um conjunto de discursos, saberes, estratégias, práticas, relações sociais, etc, que foram produzidos pelo poder e “que dão sentido à satisfação dos impulsos sexuais, à reprodução da espécie humana e, em regra, ao relacionamento entre as pessoas” (Barbieri, 1992). Desta maneira, as culturas estabelecem como norma modelos exemplares de feminilidade, mas também de masculinidade hegemônicas que constituem nossa subjetividade e que direcionam as condutas de homens e mulheres para a reprodução da ordem política e econômica.
O certo é que a construção cultural da diferença sexual permite que o patriarcado encontre na dominação masculina um dos fundamentos ideológicos que garantem a reprodução de todo o sistema social. Isso quer dizer que a construção cultural da feminilidade e da masculinidade produz e articula relações de poder e de dominação que são fundamentais para dirigir as condutas sociais/sexuais das pessoas em função dos interesses políticos e econômicos dos Estados. Decorre daí que nós, mulheres, sigamos sendo confinadas ao espaço privado para o cuidado da vida, sob o pressuposto de que existe uma identidade social/sexual ligada à nossa natureza reprodutiva. Porém, cabe assinalar que, sob esta lógica, todas as pessoas, cuja subjetividade não coincide com a normatividade sexo-genérica ditada pelo patriarcado e que irrompem na dinâmica do poder, são marginalizadas, silenciadas, patologizadas, discriminadas, violentadas e assassinadas. E isso inclui aquelas que se pensam como mulheres desde outros lugares não hegemônicos.
Dito tudo isso, cabe destacar que desde uma intersecção entre as teorias queer e o feminismo podemos desvelar como se constroem esses discursos de poder e como eles incidem nos nossos processos de subjetivação histórica e política. E, do mesmo modo, permitem-nos questionar quais mulheres são aceitas como “normais” pelo patriarcado e quais não. Isso não nega a opressão das mulheres a partir do sexo, mas sim problematiza os discursos que naturalizam e legitimam a opressão sob o argumento de que existe uma natureza biológica que nos faz ser – e desejar ser – universalmente: mulheres – mães – esposas.
Assim, a questão central deste problema não está na negação da existência do sexo biológico e, por consequência, da mulher, mas sim do que nos levou a pensar como mulheres dentro do patriarcado. Isso nos permite desvelar porque somos oprimidas e porque somos principais alvos da violência patriarcal. Não apenas nós, mas todos os corpos que foram feminizados.
Por este motivo acreditamos que no século XXI é necessário revisar os discursos que insistem na ideia de que a mulher existe como categoria universal e biológica, assim como aqueles que defendem que existe uma só forma de ser mulher, uma vez que é precisamente neste lugar onde se encontra nosso principal conflito histórico e político. A aposta é que sejamos capazes de reconhecer e aceitar nossa diversidade (racial, étnica, sexual, etária, de classe…) para ressignificar a categoria e, assim, desmontar os discursos hegemônicos que sustentam nossa opressão a partir da biologia humana.
* Javiera Poblete Vargas é historiadora feminista e faz parte da Assembleia Feminista de Madrid
Referências
Barbieri, T. D. (1992). Sobre la categoría de Género: una introducción teórico metodológica. Fin de Siglo: Cambio civilizatorio, Isis Internacional.
Beauvoir, S. d. (1999). El segundo sexo. Buenos Aires: Debolsillo.
Lagarde, M. (2011). Los Cautiverios de las mujeres. Madresposas, monjas, putas, presas, locas. Madrid: horas y Horas, la editorial.