Federico Rivas Molina e Mar Centenera, El País Brasil, 18 de setembro de 2021
A Argentina adora futebol. E hoje ela joga sua pior partida. O time da casa foi para o vestiário no intervalo depois de tomar três gols, e em vez de planejar a estratégia para reverter o placar, o treinador e os jogadores se cruzaram com golpes de punhos cerrados. O público ficou maravilhado com o show de boxe. Quando o segundo tempo começou, a derrota final parecia consumada. O país sul-americano joga contra si mesmo e os protagonistas têm nome e sobrenome. De um lado, o presidente, Alberto Fernández; de outro, Cristina Fernández de Kirchner, sua vice. Brigam os Fernández e a Argentina sofre.
No último domingo, a coalizão peronista que governa o país sul-americano desde dezembro de 2019 sofreu uma derrota sem precedentes em uma eleição para qualificar candidatos às legislaturas de fato, marcada para 14 de novembro. Como a eleição foi aberta e obrigatória, o resultado antecipou o que o partido no poder pode esperar em oito semanas: seus candidatos perderam em 18 dos 24 distritos e o controle do Congresso está em risco. A catástrofe foi de 3 a 0 no primeiro tempo e dinamitou a aliança peronista formada por Fernández e Sergio Massa, presidente da Câmara dos Deputados. A luta pôs em evidência o que muitos argentinos sabiam e outros presumiam: o poder na Argentina pertence a Cristina Fernández de Kirchner. O presidente, ungido por ela como candidato há dois anos, está em seu lugar apenas para obedecê-la, pensam, e agora dizem em voz alta, os kirchneristas. O quanto ele deve obedecer está na origem da crise que agora paralisa a Argentina.
“A estratégia de coalizão de Alberto Fernández era dar um pedaço a cada um e não construir poder”, diz Pablo Touzon, cientista político da consultoria Escenarios. O Gabinete de Ministros foi a prova desta distribuição. Sem partido próprio, Fernández manteve a liderança do Gabinete e o Ministério da Economia para si e entregou outras peças-chave. A relação com as províncias, nas mãos do Interior, e outras pastas com orçamentos elevados foram deixados para o Kirchnerismo.
Após a derrota de domingo, Cristina Kirchner se sentiu no deserto e pressionou Fernández para a troca de colaboradores. O presidente preferiu esperar as eleições ao Legislativo em novembro, e assim a guerra começou. Na noite desta sexta-feira, ele finalmente cedeu à pressão, livrou-se de seu ministro-chefe e manteve todos os cargos da vice-presidente. A relação entre os dois nunca foi fácil, pois o presidente “se via como o treinador da coalizão”. “Mas para que funcione é preciso haver um poder que comanda, senão surge a balcanização. Fernández deveria ter construído força quando tinha 80% de popularidade porque agora, com pressa, tem que fazê-lo em 48 horas “, acrescenta Touzón.
O casal presidencial já havia passado meses sem se falar, com contatos por meio de interlocutores. Quando a situação o justificava, Fernández de Kirchner utilizava as redes sociais para publicar longas cartas de repúdio ou apoio ao presidente, conforme a ocasião. Enquanto isso, o kirchnerismo nas ruas aumentava o mal-estar, convencido de que Fernández era um mero ocupante da Casa Rosada, um usurpador do voto popular que não reconhecia a dívida que tinha com Cristina. Na última terça-feira, 48 horas após as primárias, o presidente e o vice-presidente se encontraram a sós para desenvolver uma estratégia de reconstrução. Cristina pediu a mudança de ministros para oxigenar a gestão e agregar possibilidades nas legislativas. Fernández recusou. A reunião terminou aos gritos, segundo fontes de uma das partes. E sem acordo, é claro.
“A vice-presidente sentiu que eles a haviam atingido no núcleo duro de seu eleitorado”, explica a cientista política Gabriela Rodríguez, professora da Universidade de Buenos Aires. “Ela sabe que existem pessoas que a adoram irracionalmente, pessoas cuja vida foi mudada por certas políticas do kirchnerismo. Segundo sua leitura, o presidente ofendeu as pessoas que vêm abraçá-la e agora não têm o que comer “, completa. Para recuperar esse voto, que ainda não está claro se ele foi para a oposição ou apenas ficou em casa no último domingo, Kirchner acredita que é preciso mais kirchnerismo. Ou seja, mais dinheiro na rua, mais presença do Estado, mais políticas públicas. Esse plano colide com as necessidades argentinas de se acertar com o FMI, ao qual não consegue pagar os 44 bilhões de dólares que o presidente Mauricio Macri recebeu como resgate em 2018.
Facundo Cruz, cientista político e autor de Sócios, mas nem tanto, acredita que para fechar o círculo kirchnerista a Argentina teria que crescer, mas a pandemia caiu sobre ela como uma pedra. “Essa reativação econômica que eles queriam para 2021 não existe e o na Frente de Todos agora há diferenças de estratégia. Cristina e Alberto não coincidem sobre o timing de atingir esse objetivo.”
O peronismo agora tem até 14 de novembro para recuperar votos e evitar outra catástrofe nas urnas. O espetáculo que os argentinos presenciaram na última semana não vai ajudar muito. No entanto, não é aconselhável subestimar o poder de resiliência do peronismo. “As coisas são reativadas quando o objetivo é o poder, porque as coalizões se amam e se odeiam”, diz Gabriela Rodríguez. “Agora é a vez de curar as feridas, agrupar as tropas, unificar o comando e sair para lutar pelas eleições porque nenhuma das três pernas beneficia da ruptura”, acrescenta Facundo Cruz. De qualquer forma, o casal vai colocar suas forças mais uma vez à prova na hora de contar os votos das Legislativas em novembro. Eles não esperam boas notícias.