Em Novembro, Boaventura Sousa Santos reconhecia, no jornal espanhol Público, que “os socialistas tão pouco quiseram negociar com o Bloco”, que “quando estão sós têm tendência a ir para a direita”, e que desejava que não tivessem maioria absoluta, porque, como dizia o Bloco, “o PS vira muito”. Pelos vistos não é só o PS.
Fernando Rosas, Público, 3 de fevereiro
No Público do passado dia 1, Boaventura Sousa Santos (BSS) escreveu um afogueado artigo de crítica à esquerda e ao Bloco de Esquerda, em particular, que merece resposta. Faço-o obviamente em meu nome pessoal, pois não tenho qualquer função dirigente no Bloco de Esquerda, nem mandato para a sua representação.
Desde logo, convirá relativizar essa legitimidade que, para o efeito, BSS se autoconfere por ser (exceto em 2011) votante desde sempre no Bloco de Esquerda. A coisa é em si mesma irrelevante, mas não é verdadeira. Não votou, ficamos a saber pelo próprio, em 2011, quando preferiu o PEC4 do governo Sócrates. Mas esqueceu-se de que também não votou em 2015 (na antecâmara da “geringonça”), quando foi mandatário do Livre. O benefício para este foi escasso: obteve 0,59% dos votos e BSS seguramente não se lembra disso. E de pedir a cabeça do líder.O debate sobre
Do presente artigo, culminando uma série de catilinárias antibloquistas durante toda a campanha eleitoral, retenho três ideias principais.
A primeira é que a “tragédia” do Bloco de Esquerda, para BSS, é ter reservas em relação ao “socialismo” do PS e não ir a reboque das suas prioridades em momentos cruciais, como o PEC4 de Sócrates, em 2011, ou a votação do Orçamento do Estado para 2022. É pena BSS não informar os leitores do que era o PEC4 de Sócrates em 2011: privatização da TAP, EDP, REN, CTT, lei das rendas (o que veio a ser a Lei Cristas), redução dos salários e pensões, alteração das leis laborais, facilitação dos despedimentos. Como à época esclareceu António Vitorino, o PEC4 era em 95% igual ao memorando da troika. Curiosamente, o BSS que se insurge contra o Bloco de Esquerda não ter dado o voto nem a este programa de regressão social e económica que depois o governo Passos/Portas aplicou, nem ao Orçamento para 2022, é o mesmo que no seu livro Pneumatóforo, de 2018, alertava o governo do PS para “algumas opções que implicam cedências graves aos interesses que normalmente são defendidos pela direita. Por exemplo, no domínio do direito do trabalho e da saúde”, acrescentando premonitoriamente que “tudo leva a crer que o teste à vontade real em garantir a sustentabilidade da unidade das esquerdas está no que for decidido nestas áreas [trabalho e saúde] no futuro próximo” (BSS 2018, p. 437). Precisamente os pontos que levaram o Bloco de Esquerda a votar contra o Orçamento em 2021.
Mesmo quanto à votação do OE de 2022, cuja oposição por parte do Bloco de Esquerda Boaventura considera hoje um grave “desprezo pela realidade”, a sua posição teve variantes surpreendentes: entrevistado em 5 de Novembro passado pelo jornal espanhol Público, reconhecia que “os socialistas tão-pouco quiseram negociar com o Bloco”, que prepararam esta viragem dado que “votaram mais vezes no último ano com a direita do que com as esquerdas porque, como se viu também em Espanha, quando estão sós têm tendência a ir para a direita” e, por isso, desejava, com vista às eleições, que “os socialistas não tenham maioria absoluta porque, como diz o Bloco, o PS vira muito”. Pelos vistos não é só o PS.
A segunda ideia refere a incapacidade do Bloco de Esquerda “descer onde os cidadãos discutem” e perceber que o ambiente de pandemia, pelo medo, pelo desespero, pelo ressentimento, alimentou o “desejo de estabilidade” que o PS captou. O Bloco de Esquerda, afirma Boaventura, haveria de “estar do lado da estabilidade” na questão do orçamento. Suponho que a omnisciência de BSS o dispensou da tal “descida” aos cidadãos, senão saberia que estar do lado da realidade e dos cidadãos na questão orçamental, e não só, por vezes implica desafiar a estabilidade insalubre do poder estabelecido e dos sentimentos que a sua ideologia alimenta. Neste caso, isso só podia ser para a esquerda opor-se à continuação da legislação laboral infame da troika, à manutenção das graves carências que colocam em risco o SNS face à ofensiva privativista, ou à escassez dos salários e das pensões. Só podia ser, por outro lado, lutar contra a maioria absoluta do PS construída sobre o ataque à esquerda e a mentira do “voto útil”, destinados à perpetuação do neorrotativismo centrista e das suas políticas regressivas. Foi esse propósito de perpetuação que efetivamente abriu o passo ao crescimento da extrema-direita. E, assim, temos o país novamente sob a tutela exclusiva e absoluta do partido do governo e com um parlamento praticamente expropriado da sua eficácia fiscalizadora, isto é, transformado quando muito num órgão de protesto. Nisto reside, para BSS, o “mérito incondicional do PS de António Costa”.
Finalmente, a terceira ideia: Boaventura acha que Catarina Martins se deve demitir. Está naturalmente no seu direito. O que não parece aceitável é que, para o expressar, use com evidente intencionalidade a frase decalcada do desafio de Humberto Delgado a Salazar em 1958. É uma provocação injusta e gratuita contra a mulher militante de quem se pode discordar, mas que alguém como o BSS não pode insultar sem ele próprio cair no descrédito. Tanto mais que ainda em novembro de 2021, na referida entrevista ao Público espanhol, BSS afirmava “que o Bloco está liderado por mulheres excelentes” e até achava que Mariana Mortágua “deveria ser ministra das Finanças”…
Na luta política, de tanta errância, tropeça-se frequentemente na incoerência ou no desnorte. Daí à irrelevância é um passo. Desejo sinceramente que Boaventura Sousa Santos o saiba evitar.
Fernando Rosas é historiador, professor emérito da Universidade Nova de Lisboa e fundador do Bloco de Esquerda