Entrevista concedida a Eduardo Febbro entrevista Dany-Robert Dufour, Página 12, tradução do Outras Palavras, 19 de maio de 2020
O liberalismo, que se apresentava como o salvador da humanidade, acabou levando o ser humano a um caminho sem saída. O senhor projeta o seu fim e se pergunta que tipo de ser humano irá surgir após o ultraliberalismo.
No século passado, chegamos a conhecer dois grandes caminhos históricos sem saída: o nazismo e o stalinismo. De certa forma, entre aspas, depois da II Guerra Mundial nós fomos “libertados” desses caminhos sem saída pelo liberalismo. Mas essa libertação acabou se tornando uma nova alienação. Em seus formatos atuais, isto é, ultra e neoliberal, o liberalismo é plasmado como um novo totalitarismo porque pretende gerir o conjunto das relações sociais. Nada deve fugir à ditadura dos mercados, e isso faz do liberalismo um novo totalitarismo que descende dos dois anteriores. É um novo caminho histórico sem saída. O liberalismo fez com que o ser humano explodisse. O historiador húngaro Karl Polanyi, num livro publicado após a II Guerra Mundial, demonstrou como antes a economia era incluída numa série de relações: sociais, políticas, culturais, etc. Mas, com a irrupção do liberalismo, a economia emergiu desse círculo de relações para se tornar a entidade que procuraria dominar todas as outras. Dessa forma, todas as economias humanas foram enquadradas na lei liberal, ou seja, na lei do lucro, onde tudo deve ser rentável — incluindo atividades que, antes, não existiam sob o mandato da lucratividade.
Por exemplo, neste exato momento, você e eu estamos conversando, mas não procuramos o lucro, e sim a produção de sentido. Neste instante, estamos numa economia discursiva. Mas, hoje em dia, até a economia discursiva é sujeita ao “quem ganha mais”. Todas as economias humanas existem sob a mesma lógica: a economia psíquica, a economia simbólica, a economia política… por isso, o afundamento da política. O político só existe para acompanhar o econômico. A crise que a Europa atravessa demonstra que, à medida em que a crise se aprofunda, a política delega a gestão para as mãos da economia. A política renunciou perante a economia, e esta tomou o poder. Os circuitos econômico-financeiros assumiram a política. A crise é, portanto, geral.
O título de seu livro, “O indivíduo que virá depois do liberalismo”, envolve duas ideias: a de uma fase triunfal e de um fim do liberalismo.
Paradoxalmente, no momento de seu triunfo absoluto, o liberalismo mostra sinais de cansaço. Percebemos que nada funciona e que as pessoas começam a ter consciência dessa falha, reagindo incrédulas. Os Mercados foram propostos como uma espécie de remédio para todos os males. Você tem algum problema? Então recorra ao Mercado e ele lhe fornecerá a riqueza absoluta, a solução dos problemas. Mas, agora, percebemos que o Mercado gera devastação. Assim, vemos como esse remédio que devia nos prover de riqueza infinita, não traz mais do que miséria, pobreza, ruína. Veja bem, o capitalismo produz riqueza global, mas muito mal distribuída. Sabemos que já faz uns 20 ou 30 anos que a desigualdade só aumenta no planeta. A riqueza global do capitalismo rouba os direitos de milhões de indivíduos: os direitos sociais, o direito à educação, à saúde… enfim, todos os direitos conquistados através das lutas sociais estão sendo engolidos pelo liberalismo. O liberalismo foi como uma religião cheia de promessas. Nos prometeu a riqueza infinita, graças ao seu operador, o Divino Mercado. Mas não cumpriu.
Em sua crítica filosófica ao liberalismo, o senhor destaca um dos principais estragos que o pensamento liberal provocou: os indivíduos se envolvem com os objetos e não com seus semelhantes, com os outros. A relação em si, a sensualidade, foi substituída pelo objeto.
As relações entre indivíduos passaram a um segundo plano. O primeiro é ocupado pela relação com o objeto. Essa é a lógica do mercado: o mercado pode, a qualquer momento, nos mostrar o objeto capaz de satisfazer todos os nossos apetites. Pode ser um objeto manufaturado, um serviço e até um fantasma, feito à medida pelas indústrias culturais. Vivemos um sistema de relações que prioriza o objeto muito mais do que o sujeito. E isso gera uma nova alienação, uma espécie de modalidade viciante com os objetos. Esse novo totalitarismo que o liberalismo representa põe ao alcance dos indivíduos os elementos para que eles mesmos se oprimam por meio dos objetos. O liberalismo nos dá a liberdade para nós mesmos nos alienarmos.
O senhor também identifica o começo da crise nos anos 80, através do resgate do que chama do relato de Adam Smith, citando uma de suas frases mais medonhas: “para escravizar um homem, é preciso dirigir-se a seu egoísmo e não a sua humanidade”.
Adam Smith remonta ao século XVIII, e sua moral egoísta se espalhou durante um século e meio com a globalização dos mercados no mundo. Inclusive, Smith demorou-se tanto assim porque existia outra mensagem paralela, outro Século das Luzes, que foi o transcendentalismo alemão. Diferentemente das luzes do Smith, as luzes alemãs propunham uma regulação moral e transcendental. Essa regulação podia se manifestar na vida prática por meio da construção de novas formas, como as do Estado, com a finalidade de equilibrar ou moderar os interesses privados. A partir do Século das Luzes, temos duas forças que se manifestam: Smith e Kant. Esses dois campos filosóficos coexistiram em conflito ao longo da modernidade, ou seja, durante dois séculos. Mas a certa altura o transcendentalismo alemão entrou em colapso e abriu espaço ao liberalismo inglês, que assumiu uma forma ultraliberal. Podemos datar esse fenômeno começando os anos 1980. Inclusive, temos um marco histórico, o momento em que Ronald Reagan, nos EUA, e Margaret Thatcher, na Grã Bretanha, chegam ao poder e instauram a liberdade econômica sem regulamentações. Essa ausência de regulamentação destruiu imediatamente as convenções sociais, isto é, os pactos entre indivíduos
Daí provém a trilogia “produzir, consumir e enriquecer”. O senhor chama essa trilogia de pleonexia.
Encontrei o termo pleonexia na República de Platão e quer dizer “sempre ter mais”. A República grega, a Pólis, se construiu sobre a proibição da pleonexia. Pode-se dizer, então, que até o século XVIII uma parte inteira do Ocidente funcionou com base nessa proibição, liberando-se dela nos anos 80. A partir daí liberou-se a avidez mundial, a avidez dos mercados, a avidez dos banqueiros. Recorde-se do discurso feito por Alan Greenspan (ex-presidente do Banco Central dos EUA) diante de uma comissão norte-americana, após a crise de 2008. Greenspan disse: “pensava que a avidez dos banqueiros era a melhor regulação possível. Me dou conta de que isso não funciona mais e não sei por que”. Greenspan confessou dessa forma que o guia das coisas é a liberação da pleonexia. E agora já vemos para onde ela conduz
Chegamos agora ao depois, ao hipotético ser humanos do depois do liberalismo. O senhor o vê com as características de um indivíduo simpático. Que sentido tem o termo simpático nesse contexto?
Ninguém nasce sendo bom, como pensava Rousseau; tampouco mau, como pensava Hobbes. O que podemos fazer é ajudar as pessoas a serem empáticas, ou seja, a não pensar somente em si mesmas e a pensar que para viver com o próximo temos que contar com ele. O outro está em mim, as imagens de outros estão em mim e me constituem como sujeito. A ideia mesma de um indivíduo egoísta é algo sem sentido, porque nos obriga a esquecer de que o indivíduo está constituído por partes do outro. E, quando falo de um indivíduo simpático, não emprego o termo em sua acepção mais comum, digamos, de alguém simplesmente simpático. Não. Trata-se do sentido que tinha a palavra no século XVIII, onde a simpatia era a presença do outro em mim. Preciso, então, da presença do outro em mim e o outro precisa da minha presença nele para que possamos constituir um espaço onde cada um seja um indivíduo aberto ao outro. Eu cuido do outro como o outro cuida de mim. Isso é um indivíduo simpático.
Vamos com a simpatia; mas sobre quais bases se constrói o indivíduo que virá depois do liberalismo? A razão, a religião, o esporte, o ócio, a solidariedade, outra ideia de mercado?
No livro fiz um inventário sobre os relatos antigos: o relato do logos, da evasão da alma dos gregos; o relato sobre a consideração do outro no monoteísmo. Me dei conta de que em ambos os relatos havia coisas interessantes e também aterradoras. Por exemplo, a opressão às mulheres no patriarcado monoteísta equivale à opressão de metade da humanidade. Por acaso queremos repetir essa experiência? Não, evidentemente. Outro exemplo: no logos, para que haja uma classe de homens livres na sociedade, é preciso de que haja uma classe oprimida e escravizada. Queremos repetir isso? Não! Refundar nossa civilização após três becos sem saídas que foram o nazismo, o stalinismo e o liberalismo requer uma refundação sobre bases sólidas. Para isso fiz esse inventário, para ver o que podemos recuperar e o que não, quanto do passado pode nos servir e quanto não. A segunda consideração diz respeito àquilo que poderia ajudar o indivíduo a ser simpático, antes de egoísta. Para isso, é preciso reconstruir uma meio onde se possa ser simpático e não egoísta. Neste contexto, a ideia de reconstrução da política, de uma nova forma de Estado que não se dedique a conservar os interesses econômicos, mas a preservar os interesses coletivos, é central.
Qual é então a grande narrativa que poderia nos salvar?
Temos deixado no caminho as grandes narrativas de antes e acreditamos, cada vez menos, na grande narrativa do mercado. Estamos à espera de algo que una o indivíduo, ou seja, uma grande narrativa. Eu proponho o relato de um indivíduo que tenha deixado de ser egoísta, que não seja tampouco o indivíduo coletivo do stalinismo, tampouco o indivíduo afogado numa raça que se crê superior — como no nazismo e no fascismo. Trata-se de uma narrativa alternativa a tudo isso, de uma narrativa que persista no fundo da civilização. Acredito que o valor de uma civilização ocidental reside no fato de enfatizar a individuação, ou seja, a ideia de criar um indivíduo capaz de pensar e agir por si mesmo
Não se pode esquecer da noção de indivíduo, mas reconstruí-la. Contrariando tudo o que se diz, não acredito que nossas sociedade sejam individualistas. Não: nossas sociedades são lamentavelmente egoístas. Isso me faz pensar que o indivíduo como tal está à margem da existência, que há muitas coisas dele que não conhecemos. Temos que fazer com que o indivíduo exista fora dos valores do mercado. O indivíduo do stalinismo foi dissolvido na massa da coletividade; o indivíduo do nazismo e do fascismo foi dissolvido na raça e o indivíduo do liberalismo foi dissolvido no egoísmo. O indivíduo liberal é uma escravo de suas paixões e suas pulsões. Devemos sair desse beco sem saídas liberal para recriar um indivíduo aberto ao outro, capaz de realizar-se totalmente. Há textos filosóficos de Karl Marx que não são muito conhecidos e nos quais Marx queria a realização total do indivíduo fora dos círculos mercantis: no amor, na relação com o outro, na amizade, na arte. Poder criar ao máximo a partir das disposições de cada um. Talvez haveria que recuperar essa narrativa do Marx filósofo e esquecer o Marx marxista.