Luciana Araujo e Fernando Silva, São Paulo, 08 de outubro de 2020
A esquerda socialista e o PSOL em particular precisam encarar dois debates que se inter-relacionam. Primeiro, o dos financiamentos empresariais nas campanhas eleitorais, que, após a proibição do investimento direto das empresas, é feito sob a forma de doações individuais de grandes empresários e banqueiros. Esses extraem dos lucros extraordinários, obtidos com a super exploração, o troquinho para passarem de bons moços. O segundo problema é a participação, nas legendas de esquerda, de candidaturas associadas a Fundações e Redes “de renovação da política”, que atuam com seu próprio programa e são outra via de investimento político dos mesmos grupos empresariais, especuladores internacionais e operadores da necropolítica – que a luta ecossocialista antirracista exige combater.
Os dois problemas não são peculiaridade do Brasil, são globais. Fazem parte de uma ofensiva liberal-empresarial para disputar pautas e setores progressistas dos movimentos sociais, em especial da parcela oprimida da classe trabalhadora, os mais explorados, que não à toa vêm desempenhando papel de vanguarda nas lutas sociais, como inequivocamente são os movimentos de mulheres e de negros e negras. A Marcha das Mulheres Negras, em 2015, o #EleNão no Brasil em 2018, o recente levante antirracista nos EUA neste 2020, após o assassinato de George Floyd (que se intensifica com outros crimes de Estado contra cidadãos afro-americanos) são exemplos categóricos destas mobilizações de massas e politizadas das mulheres e da negritude trabalhadora.
Estamos em tempos de crescimento da extrema-direita e do conservadorismo. Vivemos situações reacionárias em boa parte do planeta. São tempos de precarização generalizada, de lutas duríssimas de resistência para defender direitos elementares como o direito à vida, diante, por exemplo, do extermínio da juventude negra no Brasil. A esse quadro se soma a crise de representação política tradicional do andar de cima brasileiro – que acaba mirando na esquerda. Essa situação provoca muita confusão e expõe a vulnerabilidade do nosso próprio partido, pois passam a ser atraentes ideias como a de uma renovação de lideranças na política pela via desses institutos de formação liberais ou a de que, em tempos difíceis, o dinheiro dos empresários ajuda na nossa autodefesa e não compromete nosso perfil e programa socialistas.
Novas sutilezas nos tempos atuais
O PSOL está desarmado para esta nova situação, que já era visível em 2018, seja pelos financiamentos de grandes empresários, seja pela ocupação da legenda por candidaturas ligadas a esses “movimentos de renovação”. Embora esteja no estatuto do partido, desde 2010, a proibição da aceitação de financiamentos dos bancos, empreiteiras e multinacionais, a conjuntura mudou muito, a legislação eleitoral também mudou. O financiamento público foi uma vitória democrática, mas tornou os financiamentos empresariais mais sutis, porque são de pessoas físicas, têm limites.
As relações do partido com essas redes de renovação, essas fundações empresariais e com os financiamentos empresariais via articulações das mais variadas, devem ser muito bem definidas. Isto deverá ser tema urgente de debate e resolução do próximo Congresso do partido, com novas alterações estatutárias se necessário for. Mas o atual compasso de espera por um debate mais profundo não impede que tenhamos desde já nitidez sobre os problemas que já afligem o partido.
As doações empresariais devem ser categoricamente rechaçadas, porque, se as naturalizamos, cedo ou tarde estaremos diante de fortes distorções na relação de forças no partido e de mudanças regressivas no seu caráter de partido socialista independente – seja pelo crescimento de bancadas com outro tipo de programa, seja pelo tipo de partido que teremos caso estes setores resolvam incidir na disputa da política do partido e dos seus fóruns. Ou seja, estamos falando da ameaça de perda paulatina de independência do partido diante de setores estranhos à classe trabalhadora, ainda que atuem indiretamente, cooptando setores do movimento, lideranças e alavancando suas campanhas.
Não será possível ser anticapitalista aceitando parcialmente a agenda liberal e recursos de banqueiros. Se essa contradição tornar-se crônica no partido, cedo ou tarde terá uma solução: historicamente, em casos assim, costuma terminar na destruição dos pilares socialistas do partido e na sua completa desfiguração.
Medidas imediatas
O que pode ser feito agora, já que estamos iniciando a campanha eleitoral municipal e o Congresso do PSOL só será em 2021, é ter o máximo de nitidez nestas relações e tomar medidas preventivas. Por exemplo: candidatas e candidatos que são ligadas a esses movimentos de renovação, que obedecem a um outro programa e não têm histórico de construção partidária, devem ser tratados como filiações democráticas. E só poderiam ter esse status modificado se passassem a aceitar o programa, o estatuto e as resoluções partidárias. Não adianta ser progressista na pauta feminista e depois votar na Reforma da Previdência de Bolsonaro-Guedes, como fez a deputada Tabata Amaral no PDT. Estar no partido e ser reconhecido como tal significa se comprometer com o conjunto das ideias do partido e não apenas com uma pauta específica.
No PSOL, compreendemos historicamente a filiação democrática como cessão da legenda para setores aliados, de esquerda, que não têm legenda legal (caso que perdurou por anos com a atual UP), com setores do movimento com os quais temos acordos parciais ou específicos ou com lideranças, setores e personalidades que não tenham o mesmo programa mas não atacam o partido publicamente ou até mesmo com quem não teve tempo de buscar uma outra legenda. Nessas situações excepcionais é correto ceder a nossa legenda, mas sempre com um compromisso de parceria com o partido, pois não faz sentido ceder a legenda do PSOL para quem hostiliza publicamente o partido, como aliás, tem acontecido.
O partido também tem a obrigação de corrigir todas as distorções que historicamente existem, por sermos parte da sociedade de classes com as características brasileiras – com o racismo estrutural e institucional, o machismo, a LGBTIfobia. É motivo de orgulho do partido ter incluído a paridade de gênero nas instância do partido como obrigatória e estatutária. Também nos orgulhamos de termos tomado a dianteira numa tentativa mais avançada de estabelecer uma divisão de recursos do fundo eleitoral que aponta a prioridade de mulheres, negros, LGBTIs, indígenas e também pessoas com deficiências. Ainda assim, sabemos que temos uma caminhada pela frente, pois evidentemente não se acaba com o racismo estrutural ou com o machismo apenas com resoluções ou medidas.
Reconhecemos nossos limites e insuficiências, mas não aceitaremos a instrumentalização das vidas das trabalhadora e trabalhadores mais explorados da nossa classe, dos alvos do genocídio, para a introdução no partido de agendas liberais. Construímos o PSOL com a ideia de que seja uma ferramenta que possa simbolizar a reorganização da esquerda anticapitalista, antirracista e ecossocialista, que ele possa ser um partido como é o Brasil: formado em sua maioria por negras/os e mulheres. Mas isso não vai se dar com a perda da nossa independência diante de agendas liberais. Nenhum partido poderá se dizer anticapitalista se aceita o financiamento... dos capitalistas. E, como nos ensinou Malcom-X, "não existe capitalismo sem racismo", logo, ser antirracista de braços dados com capitalistas também não guarda coerência.
Temos muita confiança de que não será o nosso caso. Aos camaradas que apostam na possibilidade de não comprometer nossas lutas optando pela via contrária, fraternalmente apelamos que reflitam como o que ora parece apoio é tão somente parte da estratégia para nos dividir e destruir. Ainda é tempo para reagir.
Luciana Araujo, jornalista, é militante do MNU e da Marcha de Mulheres Negras. Fernando Silva, jornalista, é membro do Diretório Nacional do PSOL.