Com profundo pesar recebemos a notícia do falecimento do professor Flávio Villaça nesta segunda-feira, 29 de março de 2021. Villaça foi um dos mais importantes pensadores do urbanismo no Brasil, orientado por uma percepção crítica sobre as cidades brasileiras e profundamente preocupado com a segregação urbana imposta pela intensificação das desigualdades sociais. Como professor da FAU-USP, formou gerações de arquitetos e urbanistas também atentos aos desafios, desigualdades e possibilidades das cidades brasileiras. Atuou na Secretaria Municipal de Planejamento de São Paulo por 15 anos, e também como consultor em planejamento urbano em órgãos estaduais e federais. Em memória desse pensador, arquiteto e professor, publicamos aqui seu artigo “O território e a dominação social“, originalmente escrito para o dossiê de capa da revista Margem Esquerda n. 24, coordenado por João Sette Whitaker Ferreira.
Blog da Boitempo, 30 de março de 2021
O território e a dominação social
Neste artigo. procuramos investigar a participação do território urbano – ou o espaço urbano – tanto na luta de classes como na luta pela dominação social. Diz Castells:
Isto equivale a conceber a natureza como algo inteiramente modelado pela cultura, ao passo que toda a problemática social tem sua origem na união indissolúvel entre ambos os termos, através do processo dialético por meio do qual uma espécie biológica particular (particular uma vez que está dividida em classes), ‘o homem’, se transforma e transforma o próprio meio ambiente em sua luta pela sobrevivência e pela apropriação diferenciada do produto de seu trabalho.[1]
A que “trabalho” se refere Castells? Pode ser o trabalho em geral, o trabalho necessário à reprodução da força de trabalho. Mas, a nosso ver, não é esse o “trabalho” a que se refere Castells. Para entendê-lo, temos de abordar um tema que provocou o grande avanço intelectual ocorrido nas décadas de 1960-1970 no campo da geografia – a ciência que estuda o espaço humano – e que a transformou profundamente. Esse avanço foi representado pela ideia de que o espaço urbano é produto do trabalho social humano. Segundo essa compreensão, o “trabalho” a que se refere Castells é aquele desempenhado na produção do espaço urbano, enquanto produto do trabalho. Produto produzido, porém irreproduzível pelo trabalho social, dirá Marx.
O outro aspecto importante das palavras de Castells é a “apropriação diferenciada do produto do trabalho”. A importância disso reside no fato de que está aí a origem da luta de classes. Considerando-se o espaço urbano como o produto do trabalho, chegamos à ideia de Castells de que há uma luta entre as classes sociais visando à apropriação do produto diferenciado.
Qual é esse produto? Como se dá essa luta? E de que forma ele participa dessa luta pela sua apropriação diferenciada? Em trabalho anterior, analisei que esse produto não são os edifícios de escritórios ou de residências, tampouco as ruas, as praças, os shopping centers ou as fábricas[2]. Vimos que esse produto é a localização, ou a “terra-localização”, seguindo o pensamento de Marx, que criou as expressões terre matière e terre capital.
A terra-localização é um produto do trabalho absolutamente original e cheio de peculiaridades, a começar por esta que acabamos de mencionar: sua irreprodutibilidade. Ao contrário dos demais produtos do trabalho – edifícios, sapatos, celulares, computadores, automóveis etc. –, que podem ser reproduzidos às centenas ou milhares, a localização não pode ser reproduzida. Se ela é única, não pode ser distribuída equitativamente por entre os seus consumidores. Em consequência – e aqui está outra particularidade desse produto –, isso a torna inerentemente conflituosa.
Outra particularidade: ao contrário dos demais produtos do trabalho social, a terra-localização (de agora em diante, simplesmente “localização”) não circula por entre seus consumidores. Estes é que por ela circulam, o que é uma diferença fantástica. Com a circulação dos consumidores, a questão dos transportes aparece como vital. Outra característica é sua indispensabilidade. Qualquer ser humano pode viver sem celulares, sapatos, automóveis etc. Pode viver até sem edifícios, abrigando-se em cavernas. Entretanto, nenhum ser humano pode viver sem se apoiar sobre um pedaço de chão, de território. No capitalismo há mais que isso. Nenhum ser humano pode viver ou trabalhar sem comprar, sem pagar por (a vista ou a prazo) um pedaço do planeta. Mais uma particularidade: todos os demais produtos do trabalho não têm vantagens e desvantagens. Dois automóveis do mesmo modelo, ano e marca, são iguais. Um não tem vantagens ou desvantagens sobre o outro. O mesmo ocorre com celulares, edifícios, computadores etc. Com as localizações, porém, isso não acontece. Todas elas apresentem vantagens e desvantagens para seu ocupante (que pode ou não ser o proprietário). Essa vantagem ou desvantagem está no tempo de deslocamento despendido para alcançar outras localizações, ou seja, para usufruir dessa localização.
Aqui entra em cena a questão da segregação urbana. A segregação é um artifício usado pelas classes sociais mais poderosas para minimizar os próprios tempos de deslocamento associados a todas as localizações; o dispêndio desse tempo é sempre uma desvantagem de toda e qualquer localização. Em essência, o objetivo da segregação urbana é a minimização dos tempos de deslocamento associados ao exercício das diversas atividades urbanas, sejam elas produtivas ou não. É impossível eliminar esse tempo, então as classes sociais disputam ferrenhamente sua otimização, aprimorando e disputando os meios de transportes, tanto os veículos como as vias e sua gestão.
Todos os deslocamentos são feitos entre dois pontos: um é a moradia (origem do deslocamento) e o outro pode ser o local de trabalho, de compras, de estudo, de diversão etc., ou seja, o destino do deslocamento. Os especialistas em transportes urbanos pesquisam muito esses tempos e esses polos, em pesquisas chamadas O-D (origem e destino). Vamos ver o papel do território urbano e da segregação social nessa ferrenha disputa aqui mencionada.
Na disputa pelas localizações do território urbano, a classe social mais poderosa se apropria daquela que tem mais vantagens (para elas) e menos desvantagens (para elas). Nessa disputa, a vantagem/desvantagem mais importante a ser manipulada é o tempo despendido no deslocamento humano (mas não no de carga) associado a toda localização. Considerando que é impossível eliminar a desvantagem, as classes sociais fazem o possível para minimizá-la. O tempo de deslocamento é uma vantagem muito importante, particular e irreproduzível, mas não é a única.
Uma coisa é certa. Qualquer vantagem de uma nova localização tem de ser confrontada com os novos tempos de deslocamento a ela associados. Morar em lote grande e com verde (dentro e/ou fora do seu quintal), clima agradável etc. são outras vantagens… dependendo da localização. O consumidor pode querer trocar essa vantagem pela desvantagem de um maior tempo de deslocamento. A vantagem de um lote maior pode ser reproduzida pelo trabalho, mas sua localização não. Até mesmo o clima pode ser produto do trabalho. Não precisamos nem falar do aquecimento global, e é sabido que desmatamento pode afetar os ciclos da chuva e a temperatura. Como já mostramos, o clima, nas nossas cidades, não é obra da natureza, mas sim dos homens[3].
Não podendo atuar diretamente sobre o tempo (de deslocamento), as classes sociais atuam sobre o espaço (urbano, no caso). Nunca, como nesse caso, fica tão clara a relação entre tempo e espaço.
Muitas famílias trocam o aumento dos tempos de deslocamento por vantagens (reproduzíveis), desde que accessíveis; as classes mais poderosas manipulam, assim, a formidável infraestrutura voltada para o automóvel, seja física (rodovias, rodoaneis, estacionamentos privativos etc.), seja humana (fiscais, multas, radares, “marronzinhos”, Departamentos de Operação do Sistema Viário, Departamento Estadual de Trânsito, mão e contramão de ruas, Zona Azul etc.). É verdade que essa parafernália de recursos físicos e financeiros não é voltada exclusivamente para o transporte individual (serve também para empresas e transportadoras em geral), mas é inegável que esses recursos são majoritariamente destinados a facilitar o uso do automóvel. Mesmo quando aparentemente voltadas para os caminhões, por exemplo, a atuação do poder público visa a melhor utilização do automóvel. Para entender esse fenômeno, basta observar onde estão localizadas as placas de “tráfego proibido para caminhões” existentes em São Paulo.
Há várias disputas que se manifestam na luta de classes em torno do tempo de deslocamento. A disputa é entre, de um lado, o transporte público/coletivo e, de outro, o transporte individual/privado e, obviamente, entre os recursos humanos e financeiros a eles destinados, seja às suas estruturas físicas (vias expressas versus metrô; rodoanel ou rodovias versus ferrovias), seja ao seu financiamento. Tudo isso disputando recursos públicos, sob o comando da classe dominante.
Também associada a essa disputa sobre o tempo de deslocamento está a segregação social. Esta não se manifesta apenas no agrupamento das moradias das classes de mais alta renda numa parcela do território, mas também em todos os elementos da estrutura urbana, inclusive nos demais bairros e nos principais centros. Daí decorre que o processo de segregação urbana jamais será explicado e compreendido se não se analisar as transformações dele decorrentes em todos esses elementos. Quase todas as tentativas de elucidação da segregação urbana (atuais ou do passado) não levam em conta a inter-relação entre os movimentos das segregações dos bairros residenciais e a dos demais elementos da estrutura territorial urbana.
A segregação urbana é tão mais acentuada quanto maior for a desigualdade social na cidade considerada. Ela é mais acentuada nas metrópoles brasileiras do que nas da América do Sul branca. Mais acentuada nesta do que na Europa Central etc. Talvez o Rio de Janeiro seja a nossa metrópole onde a segregação é não só muito acentuada, como também nacionalmente conhecida. Os mais ricos moram na Zona Sul e os mais pobres moram nas Zonas Norte e Oeste. Em São Paulo ela é bem menos conhecida, embora exista uma notável segregação dos mais ricos no quadrante sudoeste da cidade[4].
A segregação social urbana tem suas manifestações ideológicas–, isto é, pensamentos difundidos pela classe dominante e que se tornam dominantes visando tornar a dominação mais palatável e aceita pelos dominados. A mídia falada e escrita é, no Brasil, um grande difusor da ideologia dominante. Esse pensamento aparece na própria concepção da cidade e seus elementos. Exemplo disso são as expressões “Centro Velho” e “Centro Novo”, assim como falar em “deterioração” do Centro. Não vamos abordar esse tema. Apenas vamos ilustrá-lo com uma manifestação gritante e recente. O que é considerado “periferia” em São Paulo? Em teoria, são os bairros afastados, em áreas subequipadas, ocupadas por classe inferior à média e morando em imóveis irregulares. A Freguesia do Ó, em São Paulo não se enquadra nessa definição. Está a 8 km em linha reta do centro da capital (Praça da Sé), é um bairro tradicionalíssimo, de classe média, onde a maioria das moradias tem mais de noventa ou cem anos de idade – portanto, são anteriores ao primeiro Código de Obras da cidade, que foi a Lei n. 3427 de 1929[5] e que por isso não podem ser chamadas de “irregulares”. Por outro lado, a Praça Pan Americana, a City Butantã ou o Alto da Lapa estão a 8,5 km da Praça da Sé; o Brooklin Paulista está a 9 km e o Morumbi (bairro do estádio do São Paulo Futebol Clube) está a 10 km. Tais bairros, assim como Alphaville ou Granja Viana, jamais seriam chamados de “periferia” pela mídia. No entanto, a Freguesia do Ó é chamada de periferia. O jornal Folha de S. Paulo do dia 16 de fevereiro de 2015 apresentava na p. B-6, do Suplemento Carnaval, a seguinte manchete de cinco (cinco!) colunas: “Folia da periferia”. Dizia a lead: “Bloco de rua da Freguesia do Ó recusa patrocínio e valoriza o bairro com marchinhas e público família”.
Notas
[1] CASTELLS, Manuel. La cuestión urbana. Cidade do México: Siglo XXI, 1978, p. 142. Aqui em tradução livre.
[2] Ver VILLAÇA, Flávio. São Paulo: segregação urbana e desigualdade. Estudos Avançados, São Paulo, v. 25, n. 71, p. 37-58, jan.-abr. 2011.
[3] Idem.
[4] Para mais estudos sobre a segregação urbana, ver meu artigo citado nas notas anteriores.
[5] Cf. SOMEKH, Nadia. A cidade vertical e o urbanismo modernizador. São Paulo: Editora Mackenzie/RG, 2014, p.117.
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Flávio Villaça formou-se pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, fez mestrado em City Planning pelo Georgia Institute of Technology, em 1958, doutorado em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo, em 1979, e pós-doutorado no Departamento de Geografia da Universidade da Califórnia, Berkeley, em 1985. Atuou em órgãos de planejamento e foi professor titular de Planejamento Urbano na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAUUSP). Foi também autor de diversos livros: “O que todo cidadão precisa saber sobre habitação”, “As ilusões do Plano Diretor”, “Os transportes sobre trilhos na Região Metropolitana de São Paulo”, entre outros. Foi colaborador na revista Margem Esquerda número 24 no dossiê “Cidades em conflito, conflitos nas cidades” com o artigo “O território e a dominação social”.