Segundo pesquisa conduzida pelo Grupo de Pesquisa Alimento para Justiça, quase 60% da população padece de insegurança alimentar e 44% deixaram de comer carne.
Victoria Damasceno, Folha de S.Paulo, 13 de abril de 2021
Em uma casa de palafitas, à beira de um rio em Curralinho, no interior do Pará, Maria do Espírito Santo, 42, tem o peixe como base da sua alimentação. Pescado ali perto, é o único alimento com lugar garantido no prato de sua família.
Com a pandemia, ela viu minguar as possibilidades do seu cardápio, já escasso. Do arroz, feijão e carne, ficou apenas o arroz —quando é possível comprá-lo.
Sua família está entre os 59,3% dos brasileiros —125,6 milhões — que não comeram em quantidade e qualidade ideais desde a chegada do novo coronavírus. Os dados são da pesquisa “Efeitos da pandemia na alimentação e na situação da segurança alimentar no Brasil”, coordenada pelo do Grupo de Pesquisa Alimento para Justiça: Poder, Política e Desigualdades Alimentares na Bioeconomia, com sede na Universidade Livre de Berlim.
O estudo mediu os níveis de insegurança alimentar no país. O número é ainda pior do que o mostrado por uma pesquisa da Rede Penssan (Rede Brasileira em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional) divulgada na semana passada, segundo a qual 116,8 milhões de pessoas conviveram com algum grau de insegurança alimentar nos últimos três meses de 2020.
Na nova pesquisa, foram utilizadas as perguntas direcionadas para maiores de idade da Ebia (Escala Brasileira de Insegurança Alimentar).
Se o entrevistado respondesse "sim" para ao menos uma delas, como: “Nos últimos três meses, os moradores tiveram preocupação que os alimentos acabassem antes de poderem comprar ou receber mais comida?”, ele já estava vivendo a insegurança alimentar.
"A preocupação de que o alimento vai acabar e ter que tomar decisões para que isso não aconteça é ter psicologicamente a fome presente, mesmo que ainda não tenha se materializado", explica Renata Motta, professora de sociologia da Universidade Livre de Berlim e coordenadora do estudo.
A situação de Maria, no entanto, é mais grave. Sua família precisa escolher qual refeição fazer. "Se eu almoçar, não janto, então, eu tenho que escolher", diz.
Seu cardápio só varia em período de safra de açaí, quando reserva uma parte dos frutos colhidos pelo marido, Ismael da Silva Oliveira, 31, para complementar a alimentação dos três filhos.
No restante do ano, dependem do Bolsa Família. O benefício de R$ 346 os mantém durante o mês. Mesmo antes da pandemia, este já era o valor que garantia a comida na mesa. A alta no preço dos alimentos, porém, dificultou ainda mais o acesso. A esperança era conseguir o auxílio emergencial, mas não foram contemplados.
Beneficiários do Bolsa Família são os que enfrentam os maiores níveis de insegurança alimentar no país, com 88,2%. Destes, 35% passam fome e outros 23,5% convivem com um nível moderado de insegurança alimentar.
Casas com crianças de até 4 anos apresentam índices de insegurança alimentar ainda mais críticos do que a média nacional: 29,3% destes domicílios comem em quantidade e qualidade ideal, enquanto 70,6% vivem algum nível de insegurança alimentar. São 20,5% aqueles que passam fome.
"Faz ao menos quatro anos que vemos o aumento da insegurança alimentar. Isso significa que uma criança pequena passou a primeira infância inteira em situação de insegurança alimentar moderada ou grave", afirma a pesquisadora Renata Motta, resgatando os dados da Pnad 2017-2018 (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), que evidenciou o aumento da fome no país.
Katarina Pereira, 35, vive com os seis filhos na Ocupação Vitória, em Belo Horizonte. Perdeu suas diárias como trabalhadora doméstica no início da pandemia. Mudou-se para a ocupação meses após o início da quarentena, quando teve sua conta bancária bloqueada e perdeu acesso ao auxílio emergencial.
Já no novo endereço, conseguiu desbloquear o dinheiro. Só neste ano, se tornou beneficiária do Bolsa Família. O dinheiro é gasto em comida, e ela ainda precisa de doações e colhe verduras na horta local. “A gente reza a deus para ver se a gente consegue alguma coisa no outro dia", diz.
Assim como Pereira, 44% dos brasileiros deixaram de comer carne na pandemia. Entre os alimentos saudáveis, esse foi o com a maior redução de consumo. Em segundo lugar, vêm as frutas, com 41%. A população também diminuiu o consumo de hortaliças e legumes em 37%.
Por outro lado, 54,2% dos entrevistados disseram que não houve mudança no consumo dos alimentos industrializados, e 6,4% afirmaram que houve aumento.
O estudo associa o consumo de alimentos não saudáveis ao surgimento de doenças crônicas. Segundo Milene Pessoa, professora do Departamento de Nutrição da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e pesquisadora, tal alimentação favorece o aparecimento de doenças como diabetes e hipertensão, podendo levar à sobrecarga do sistema de saúde.
“Tanto a desnutrição como a obesidade podem aumentar o risco de adoecimento da população e doenças crônicas têm grande impacto na atenção primária”, afirma.
Aposentadoria
Casas que contam com recursos de aposentadoria registraram 46% de segurança alimentar, um nível melhor do que aquelas que recebem apenas auxílio emergencial ou Bolsa Família. É o caso da família de Cintia da Silva Almeida, 36, que vive com onze familiares que dependem da renda do governo federal.
Ser mãe solteira e negra, como ela, aprofunda essas desigualdades. A fome está presente em 25,5% das casas chefiadas por mulheres, quase o dobro da encontrada em domicílios em que a pessoa de referência é um homem, que representa 13,3%. Quando a pessoa é negra, a insegurança sobe para 67,5%.
Almeida sente essa realidade diariamente. “A gente vive em um país onde muitos dizem que não tem preconceito, mas só pelo simples fato de você ser preto, muita gente tem até nojo de chegar perto. Depois dessa doença, as pessoas olham de lado. A gente tenta chegar em algum lugar, mas, às vezes, é bem complicado."