Douglas Gavras em Folha de SP. 19 de novembro de 2021.
A fome e o desemprego, que tiram o sono de milhões de chefes de domicílio em todo o país, têm colocado as famílias em situação vulnerável e ajudado a ressaltar uma ferida histórica da sociedade brasileira: a desigualdade racial.
Enquanto 59,2% dos negros apresentam algum grau de insegurança alimentar (de leve a grave), esse percentual é de 51% entre os brancos.
Os números constam do relatório "Insegurança Alimentar e Covid-19 no Brasil", publicado no começo do ano pela Rede Penssan (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional).
A pesquisa também aponta que 43,4 milhões de pessoas não tinham alimentos em quantidade suficiente e 19 milhões de brasileiros enfrentavam a fome. A maioria em insegurança alimentar também é mulher e não completou o ensino médio.
A insegurança alimentar se caracteriza pela falta de acesso e disponibilidade das pessoas aos alimentos em quantidade suficiente para a sobrevivência.
Para além dos números, a fome ganhou rosto nos últimos meses, seja nas cenas protagonizadas por famílias em busca de alimentos próximos do descarte no centro de São Paulo, buscando comida no lixo de Fortaleza ou acompanhando o trajeto do caminhão do osso no Rio de Janeiro.
Além de rosto, a fome tem cor, gênero e endereço, diz Maitê Gauto, gerente de Programas e Incidência da Oxfam Brasil.
"As mulheres negras representam 27% da população e ocupam metade dos empregos informais, sobretudo no trabalho doméstico. Elas formam um grupo de alta vulnerabilidade, sem garantia trabalhista e de proteção social", afirma.
Ela ressalta que a relação entre fome e desigualdade racial é direta. Em um cenário de crise, como a causada pela pandemia da Covid-19, a população negra é a primeira a sentir e a última a se recuperar.
"O impacto da crise é muito diferente entre brancos e negros, homens e mulheres, ricos e pobres. A desigualdade no Brasil é construída a partir de estruturas muito profundas da sociedade brasileira", diz Gauto.
Moradora de Colombo, na Grande Curitiba, Adriana Jesus, 48, é um dos retratos das dificuldades que as mulheres negras enfrentam no mercado de trabalho.
Ela perdeu o emprego fixo como doméstica no início da pandemia. Agora, quando dá sorte, consegue trabalhar quatro vezes por semana como diarista e complementa a renda distribuindo panfletos na rua.
"Trabalhei com um único patrão por mais de 15 anos, mas eles também ficaram com desempregados na família e tiveram que me demitir. Agora está mais difícil de conseguir emprego e não vejo sinais de melhora", conta.
No segundo trimestre de 2021, a taxa de desemprego entre trabalhadores identificados como negros e pardos era de 16,2%, enquanto a dos brancos estava em 11,7%, segundo dados da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) Contínua, do IBGE, compilados a pedido da Folha pela consultoria IDados.
Quando se olha para o desemprego que se arrasta por mais tempo, acima de dois anos, os trabalhadores negros também acabam figurando entre os maiores números. São 2,5 milhões ante 1,4 milhão de brancos.
"A trajetória até chegar ao mercado de trabalho costuma ser muito mais difícil e cheia de desafios para os trabalhadores negros. As crianças brancas são, proporcionalmente, maioria na pré-escola, e mães brancas têm mais oportunidade de continuar trabalhando, sem ter de enfrentar os mesmos riscos de insegurança alimentar", diz o economista Bruno Ottoni, da IDados.
Ele ressalta que a posição no mercado de trabalho, muitas vezes, acaba funcionando como um resumo das barreiras e dificuldades que os trabalhadores enfrentaram ao longo da vida. O acesso a escolas de qualidade mais baixa e a uma alimentação inadequada acaba se perpetuando no histórico da família.
"As políticas implementadas ajudam, mas não resolvem. Lá no fim, depois de tudo, muitos trabalhadores negros chegam ao mercado de trabalho, após terem passado por ensino médio ruim, vindos de famílias com baixa renda e em situação de insegurança alimentar."
Ottoni acrescenta que uma saída para que essa desvantagem não se perpetue seria replicar em todo o país experiências de sucesso, como o das escolas públicas no Ceará, que conseguiram dar um salto de qualidade nos últimos anos.
Francisco Menezes, analista de Políticas da ActionAid, lembra que é impossível separar o cenário atual de desigualdade no acesso dos negros a trabalhos de melhor qualidade da herança histórica escravista e colonial, que fez com que o processo de emancipação dessa parcela da população fosse mais formal do que efetivo.
"Ocorreu também uma destruição de políticas públicas dirigidas para a segurança alimentar, que eram as que amparavam a população mais vulnerável, em sua maioria negra, como a política de construção de cisternas no semiárido", diz.
Os analistas também lembram que em uma situação de crise sanitária e econômica sem precedentes e sem perspectiva de retomada muito rápida, as ações tomadas pelo governo para reduzir o impacto sobre os mais pobres tornam-se ainda mais importantes.
Para Gauto, embora o auxílio emergencial tenha ajudado muitas famílias, sobretudo ao longo de 2020, algumas ações do governo aumentaram a sensação de insegurança, como a retirada do benefício no fim do ano passado e a volta quatro meses depois, com um valor menor.
"Além disso, a inflação também tem cor, por pesar mais sobre os mais pobres. Do aluguel ao gás de cozinha, a disparada de preços ajuda a perpetuar desigualdades. Alguém tem dúvida de que o maior número de pessoas em situação de rua nas grandes cidades também é algo que poderia ser aliviado com políticas públicas bem formuladas?", questiona ela.