Alain era o agitador, o caminhante, o que queria organizar, era a luta de movimentos e a luta de posições. Apesar das desilusões de expetativas frustradas e de erros de perspetiva, ele teve a virtude maior de rejeitar o cinismo.
Francisco Louçã, Esquerda.net, 14 de março de 2022
Estive em Paris pela primeira vez no verão de 1973. De automóvel, íamos um adulto, que conduzia, o filho, Carlos, e dois dos seus amigos, o Cláudio e eu. O Cláudio, já organizado num grupo clandestino, tinha como missão contactar a Liga Comunista (o contacto fazia-se com alguma ousadia, apesar da necessidade de discrição pela clandestinidade, na livraria Joie de Lire, no Quartier Latin) e trazer para Portugal propaganda revolucionária. Os outros apoiávamo-lo, com entusiasmo e algum sentido de aventura, naquele país em que estranhávamos tudo. Assim foi, os estofos do carro foram cheios de livros e brochuras que seriam lidos com avidez no nosso regresso. Não falámos então com nenhum dos dirigentes da Liga, mas conhecíamo-los de nome: Daniel Bensaid, Henri Weber, Charles Michaloux, Jeanette Habel e Alain Krivine foram destacados dirigentes do movimento do Maio de 1968 (o Alain tinha sido candidato nas eleições presidenciais de 1969, quando estava mobilizado para o exército, tendo obtido um pouco mais de 1%) e trouxemos muitos dos seus escritos, que nos enchiam de curiosidade.
Logo após o 25 de Abril vieram a Lisboa e Porto Ernest Mandel, talvez o marxista mais brilhante da sua geração, e Daniel Bensaid, com outros. Mas foi só nesse verão que conheci Alain, numa reunião em França. Teria ele 32 anos e parecia tão mais velho, com tantas histórias para contar: era um dos porta-vozes daquela geração e um dos representantes de um dos percursos que ali se cruzavam, a dissidência do partido comunista que tinha assumido a defesa dos independentistas argelinos e que vira na luta contra a guerra do Vietname a sua ponte internacionalista. Com Tariq Ali em Inglaterra e Rudi Dutschke na Alemanha, como com os insurgentes italianos de 1969, essa frente internacionalista foi a marca dos anos setenta.
Alain era o agitador, o caminhante, o que queria organizar, era a luta de movimentos e a luta de posições. Mas, sobretudo, era verdadeiro, direto nas suas formulações, popular nas propostas, começava a fazer uma política de alta intensidade para um tempo que se adivinharia muito longo. E se, nisso, algumas vezes, tantas vezes, vieram desilusões de expetativas frustradas e de erros de perspectiva, ele teve a virtude maior de rejeitar o cinismo, como explica na sua autobiografia, “Isso Passa-te com a Idade”:
“No fim de meio século de combates políticos, se olho por um instante pelo retrovisor, mais do que os fracassos, as desilusões e as ocasiões falhadas, o que me salta aos olhos é a necessidade de perspetivas revolucionárias, ainda mais urgentes hoje do que ontem. Alguns verão nisto um ato de fé de um inescrutável 'comunista revolucionário', sempre perdido nos seus sonhos e nas suas utopias. Sem dúvida. Não sou nem cínico nem amargo, nem pedante. A acusação de ser um sonhador, que ouvi tantas vezes, é para mim um cumprimento. Porque não reaprender a sonhar com um sociedade mais justa em que os critérios de decisão já não serão as cotações na bolsa, mas a satisfação das necessidades que a população tenha decidido democraticamente? Só os conservadores não sonham. Nós, para mudarmos o mundo, precisamos do sonho para lutar, juntos. Todos juntos.”
Tem razão: só se pode ser de esquerda contra o cinismo.