Paul Valéry escreveu em 1919 que “o abismo da história tem profundidade suficiente para lá cabermos todos”. Esse é o destino de uma política baseada na vertigem do ódio. Nem a necropolítica nem a raça podem ser o nosso futuro comum.
Francisco Louçã, Expresso, 17 de outubro de 2020
O general Millán-Astray, um dos orgulhosos chefes do levantamento das tropas conduzidas por Franco, em julho de 1936, esteve três meses depois em Salamanca, uma cidade que se juntara imediatamente aos revoltosos. A universidade comemorava a Festa da Raça e, numa sala cheia de uniformes, o general, conhecido pela sua arrogância, conduzia as celebrações.
Diz-se que o reitor, Miguel de Unamuno, um famoso dramaturgo, poeta e filósofo que tinha apoiado a insurreição fascista, se sentiu incomodado com a exibição e teria levantado a voz: “Este é o templo da inteligência e eu sou o seu sumo sacerdote. Vencer não é convencer. Para convencer há que persuadir e para persuadir necessitaríeis de algo que vos falta: razão e direito na luta.” Ao que Astray teria respondido: “Morra a intelectualidade traidora! Viva a morte!”. A história é encantadora, mas não é exata. Foi contada por Luis Portillo, um jovem professor, republicano, que não assistiu à sessão dado que já se tinha exilado em Londres, mas que romanceou o episódio, talvez baseado em alguns testemunhos, sendo ignorada na época. Não ficou registado o que terá afirmado Unamuno (a rádio transmitia a sessão mas ele não estava perto do microfone, supondo-se que terá dito só algumas frases), embora se saiba que Astray perdia facilmente a cabeça. Em qualquer caso, a história foi retomada uns anos mais tarde por um historiador destacado, Hugh Thomas, e entrou desse modo na lenda. O comprovado é que há uma foto do fim da sessão, quando Unamuno sai da universidade: vem com um bispo ao lado, rodeado por uma massa de milicianos fardados, em saudação fascista. Havia tensão no ar. Mas Unamuno não ficou perturbado nessa noite foi tomar o café ao casino, como fazia sempre. Ouviu aí os insultos de alguns franquistas e o filho teve de o ir buscar e proteger. O reitor, que morreu dois meses depois, nunca escreveu sobre o tema. Talvez seja de dar por certo, pelo menos, que Unamuno respondeu alguma coisa à frase “Viva a morte”, que era a divisa da unidade militar de Astray, e que este a pode ter repetido.
Poderíamos imaginar, agora que aquela guerra é já uma distante memória, que “viva a morte” foi somente uma excrescência da meia-noite do século, ou até uma conspiração contra a democracia liberal a que aspiraria a modernidade. O problema é que essa ideia purificadora é tão inexata como a história da frase de Unamuno: alguma coisa se passou e só sabemos que não sabemos tudo. Mais vale procurar saber e, para isso, responder a esta ameaça que é a política da morte, que continua a atravessar o nosso tempo. Assim, depois de ter aqui discutido nos últimos meses a sociedade do medo e a emergência de bufões como protagonistas da política mundial, neste ensaio argumento que a instrumentalização da violência exterminista, frequentemente sob a forma da sua banalização, em particular como racismo, é um dos pilares da história da civilização moderna. Não é o único, pois se sobrepõe às diferenças de classe e a outras marcas antigas, como a subordinação das mulheres, mas tem o efeito de potenciar e vulgarizar toda a agressão. Do mesmo modo, distinguindo o racismo como a voz predominante da ofensiva populista ou como o modo de mobilizar o desespero em torno de ultrajes destrutivos da democracia, não sugiro que a identidade constitua uma resposta: a política de identidade não existe, a política que reconhece diferenças e as quer abolir é social por natureza e por isso só pode ser portadora de um projeto transformador porque universalista.
Em todo o caso, conhecer o perigo é dar-lhe o nome. A essa vertigem de ódio se tem chamado necropolítica, que é invasiva no nosso tempo de nevoeiro. Ela é uma das condicionantes do atual modo de expressão coletiva, não só pela expansão do populismo contemporâneo, mas também pela tendência de o exercício do poder, mesmo em regimes democráticos, se alimentar de culturas de ódio, como as que florescem no fim do primeiro quartel do século XXI como nunca antes nas nossas vidas. Não será simples vermo-nos livres dessa ameaça, mesmo que a consigamos domesticar, o que está por fazer.
A GUERRA COMO POLÍTICA
Sigmund Freud tinha 58 anos quando começou a Primeira Guerra Mundial. Era respeitado, tinha feito o seu caminho entre monumentais polémicas e tornara-se uma das luzes de Viena e da psiquiatria científica. Os seus estudos anteriores sobre as pulsões individuais e sobre os comportamentos sociais tinham-no levado a refletir sobre os instintos destrutivos e sobre a morte, mas provavelmente não o prepararam para a dimensão da carnificina naquela que foi a primeira guerra industrializada de todos os tempos. Por isso, logo no primeiro ano da guerra, em 1915, escreveu algumas páginas de “Considerações Atuais sobre a Guerra e a Morte”, com as suas preocupações.
Freud reconhecia nesse texto o nosso passado trágico, que “a história primordial da Humanidade está cheia de assassínios. Ainda hoje, o que os nossos filhos aprendem na escola como História Universal é, no essencial, uma série de genocídios de povos”. E nem sequer se refugiava em certezas plácidas, dado que “é impossível acabar com a guerra: enquanto as condições de existência dos povos forem tão distintas e as repulsas entre eles tão violentas, terá de haver guerras”. Não escreveu que haverá guerras; disse-nos que “terá de haver guerras”. Só que esta guerra era diferente das do passado, trazia algo de novo, uma imensa fúria de destruição, como constatou: a guerra “não reconhece nem os privilégios do ferido e do médico, nem a diferença entre o núcleo combatente e o pacífico da população, e viola o direito da propriedade. Derruba, com cega cólera, tudo o que lhe aparece pela frente, como se depois dela já não houvesse de existir nenhum futuro e nenhuma paz entre os homens”. Os Estados modernos soltaram as pulsões destrutivas para conseguirem a extinção total do inimigo, mobilizando os couraçados, os submarinos, a aviação, o carro de combate, o gás letal, todas as maravilhas da nova indústria.
Ao olhar o início desta mortandade, Freud não podia saber que o pior estava para vir, logo no ano seguinte. A escala do massacre foi inimaginável: na Guerra Civil norte-americana, 50 anos antes, tinham morrido 750 mil pessoas em quatro anos, ao passo que nas primeiras oitos semanas da guerra europeia morreram ou foram feridos 400 mil alemães e em Verdun, em 1916, morreriam 800 mil e no Somme mais 1,1 milhão de soldados. Quando a guerra terminou havia 60 milhões de vítimas. E, mesmo crendo que a guerra fosse inevitável, para Freud esta “cólera cega” contrastava com o que entendia ser a missão civilizadora da “raça branca”, pois a guerra começou entre brancos, que a alastraram com ferocidade ao resto do mundo. Essa missão seria uma constante histórica, um destino, e por isso o chocava o comportamento “das grandes nações da raça branca, dominadoras do mundo, às quais coube a direção da Humanidade, que se sabia estarem ocupadas com os interesses mundiais e cujas criações são os progressos técnicos no domínio da natureza e os valores culturais, artísticos e científicos; destes povos esperava-se que saberiam resolver de outro modo as suas discórdias e os seus conflitos de interesse”. O psiquiatra, que morreu no exílio londrino 22 dias depois da ocupação nazi da Polónia e do início da Segunda Guerra, já não assistiu a essa matança, que faria da Primeira Guerra um mero ensaio. Nem acompanhou a consagração da barbárie (quatro das suas cinco irmãs morreriam em campos de concentração nazis).
Freud investigou as pulsões de destruição e as pulsões eróticas nos seres humanos, notando que os sistemas sociais contêm ou reprimem essas forças, organizando a ordem. Em vários escritos pesquisa essas penumbras mesmo se, como um cavalheiro do seu tempo, o fizesse a partir de preconceitos confortáveis sobre a sociedade em que vivia, como a superioridade da “raça branca”. O que não compreendeu, ou não quis verificar nesta experiência tremenda, eram tanto as raízes sociais deste comportamento quanto o seu desenvolvimento, ou como o exterminismo se adaptara. Quando inspecionava essa pulsão mortífera, Freud olhava para quem se deitava no seu divã e não para os sistemas de poder que usavam, alimentavam ou engrandeceram essa patologia como uma forma de dominação. E, no entanto, tratava-se de forças que se expressavam de muitas formas, mesmo na arte: logo em 1909, o Manifesto Futurista anunciava que “queremos glorificar a guerra — única higiene do mundo — o militarismo, o patriotismo, o gesto destruidor dos libertários, as belas ideias pelas quais se morre, e o desprezo pela mulher”.
Esse paralelismo entre a modernidade e a necropolítica inscreve-se de várias formas na história, mas em particular no racismo, como desumanização radical do exercício do poder.
O RACISMO FOI UM PARÊNTESIS?
Pouco menos de um século antes de Freud nascer, a revolução americana foi um dos processos fundadores do que se tem chamado a democracia liberal, iniciando o desenvolvimento da que viria a ser a principal potência mundial. A revolução fez-se sob a égide de uma Declaração de Independência que, em 1776, afirmava solenemente que “Consideramos estas verdades como autoevidentes, que todos os homens são criados iguais, que são dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a busca da felicidade.” No entanto, desde 1600 terão sido transportados para aqueles territórios cerca de dois milhões e meio de escravos. Nem todos os seres humanos eram iguais no novo país nem tinham direitos inalienáveis. Pelo contrário, os direitos que eram retirados a uma parte da população eram precisamente a vida, a liberdade e a busca da felicidade, pois essas pessoas eram reduzidas ao estatuto de mercadorias.
A escravatura organiza a submissão do corpo, do tempo e da vontade, coisificando a vítima até à degradação abjeta. Retira a vida da esfera do direito e subordina-a aos interesses da exploração e aos caprichos do explorador. Os escravos eram mortos-vivos, que foram usados e podiam ser mutilados, violados, exibidos ou vendidos, sendo toda a sua existência sujeita ao arbítrio sem limites. Por isso, no seu livro “As Origens do Totalitarismo”, Hannah Arendt descobre no próprio processo de alegação da raça a negação absoluta do humano: “A raça é, politicamente falando, não o início da humanidade mas o seu fim, (…) não o nascimento natural do homem, mas a sua morte artificial.” A necropolítica foi, até ao final do século XIX, esta forma de poder sacrificial que afirmava a indiferença da morte ao longo da vida e reclamava a autoridade de impor o “direito soberano de matar”, uma expressão sugerida por Achille Mbembe, um sociólogo camaronês que atualmente ensina em Harvard e a que me referirei adiante.
O contraste entre a Declaração da Independência dos Estados Unidos, anunciando a “verdade autoevidente” da liberdade como o fundamento da sociedade, e o paradoxo de esta ser recusada a muitas pessoas, foi o centro das principais disputas que definiriam o novo país. Foi o que aconteceu logo na guerra contra o rei britânico. Compreendendo a fragilidade das milícias continentais pelo facto de serem dirigidas por esclavagistas, as forças de Sua Majestade prometeram a emancipação a todos os escravos que fugissem para o seu território: um em cada cinco assim fez. Harry Washington, escravo do chefe militar que viria a ser o primeiro Presidente dos EUA e que, como era costume, ficou conhecido pelo nome do dono, foi um dos fugitivos. Tinha sido capturado na Gâmbia e vendido para a plantação de Washington na Virgínia, de onde escapou, vindo a tomar os galões de cabo no exército britânico. Depois da derrota, foi viver para o Canadá. Voltou no fim da vida para África, para a Serra Leoa, e foi um dos porta-vozes mais conhecidos do movimento antiesclavagista da sua época.
Como os outros escravos, tinha pela frente um inimigo grandioso. O racismo era a normalidade do país. Dos sete mais destacados fundadores do novo estado, só John Adams e Alexander Hamilton não eram proprietários de escravos. Dez dos primeiros 12 Presidentes norte-americanos eram donos de escravos, sendo as únicas exceções Adams e o seu filho. Tal era a importância do esclavagismo que se transformou em argumento num difícil acordo político quando se tratou de definir as regras para representar os estados no Congresso. Nos termos desse acordo, o número de escravos passou a ser uma vantagem política: como a delegação eleitoral era determinada em função da população de cada estado e foi decidido que um escravo contava como três quintos de uma pessoa, os estados esclavagistas obtiveram uma sobrerrepresentação no congresso. A Virgínia, por exemplo, com menos votantes mas com muitos escravos, tinha mais eleitos na câmara de representantes do que Massachusetts, que não tinha escravos, embora tivesse mais pessoas com direito a voto.
O jovem Alexis de Tocqueville, um aristocrata francês que visitou os EUA na década de 1830 para estudar o seu sistema prisional, publicou no seu livro “Da Democracia na América” um retrato do país em que descobriu a violência da discriminação racial: “Permite-se que o negro implore ao mesmo deus dos brancos, mas não rezar no mesmo altar.” E, como notou, mesmo nos raros casos de estados em que os escravos tinham sido libertados e tinham obtido direitos políticos, não os podiam exercer (o direito de voto dos homens negros foi estabelecido antes de as mulheres, brancas ou negras, terem a mesma faculdade): “Em quase todos os estados em que a escravatura foi abolida foram dados direitos eleitorais ao negro; mas se ele se apresenta para votar, corre risco de vida.”
A Guerra Civil (1861-1865) terminou com a vitória das forças antissecessão, que incluíam alguns territórios esclavagistas, e Lincoln impôs a sua escolha, decretando o início da emancipação. Pouco depois do fim da guerra, foi assassinado, mas já estava em curso a aprovação da 13ª emenda constitucional, que veio a tornar irreversível a abolição da escravatura. Começava uma nova era e terminava o primeiro período do necropoder, o da submissão dos escravos. Mas, como escreve uma das historiadora mais destacadas do país, Jill Lepore, depois de 250 anos de escravatura sobrevieram mais 100 anos de supremacismo branco, a segunda época do necropoder.
Houve decerto outros processos que determinaram a evolução ao longo destes séculos, sendo o mais importante a emergência do capitalismo industrial e depois financeiro, que determinou a geografia das suas classes sociais, nomeadamente da classe operária, que nasceu sem direitos, nem em vida (os sindicatos eram proibidos) nem na morte (as suas associações cotizavam-se para pagar os funerais). O outro pilar da modernidade foi a opressão das mulheres, e um conhecido episódio da revolução americana constitui mais um exemplo de como foi precoce a perceção da discriminação: Abigail Adams escreveu em 1776 ao seu marido, John, um dos autores da Declaração de Independência, recomendando que, na nova legislação, “não ponha um poder tão ilimitado nas mãos dos maridos”, pedindo-lhe que se “lembre de que todos os homens serão tiranos se puderem” e anunciando-lhe que, não sendo ouvidas, as mulheres poderiam “fomentar uma rebelião”. John Adams respondeu misturando o sarcasmo com a ameaça: “Quanto ao seu extraordinário Código de Leis, só me posso rir”, dado que poria em causa “os sistemas masculinos”. John queixou-se da desobediência dos jovens aprendizes, do tumulto dos estudantes, da insolência dos negros, da revolta dos índios, pelo que esta “outra tribo”, a das mulheres, não se deveria juntar a tal estado de perturbação. E acrescentou a tentativa de sedução: de todo o modo “na prática somos (os homens) os súbditos (das mulheres)”. Deixando para outro momento uma análise desses modos de sedução e de submissão, neste ensaio centrar-me-ei na forma como a necropolítica utiliza o racismo para estimular o ódio social contra os mais frágeis.
A SEGUNDA ÉPOCA DO NECROPODER
Na sua monumental história dos Estados Unidos, publicada em 2018, “These Truths” (a expressão da Declaração de Independência), Lepore escreve que “os confederados perderam a guerra, mas ganharam a paz”. O facto é que, desde o último quartel do século XIX, apesar de vencidos os exércitos sulistas, se generalizaram na república as leis discriminatórias que viriam a ser conhecidas como leis Jim Crow. Embora as origens da designação pareçam obscuras, pode ser que o nome Jim Crow tenha sido inspirado numa então popular caricatura de um negro retratado como um folião. Lei Jim Crow passou a ser, em todo o caso, o nome das normas segregacionistas que perduraram por mais um século depois da derrota dos confederados na Guerra Civil, estabelecendo um regime de discriminação generalizada no espaço público, nas escolas, nos transportes, na moradia e mesmo em funções oficiais. O Supremo Tribunal permitiu e mesmo reforçou estas normas, ao interpretar a 14ª emenda constitucional, que estabelecera que todos os nascidos e naturalizados são cidadãos, como permitindo a segregação, sob o argumento de que ser cidadão não é ser igual e que mesmo as formas aviltantes de proibição de acesso dos negros eram, assim, compatíveis com a Constituição. Indo mais longe, o Supremo manteve durante décadas uma jurisprudência que usou esta emenda constitucional para recusar a intervenção do governo federal na economia, alegando que poderia prejudicar a liberdade de empresa, transformando deste modo aquela garantia de cidadania universal num reduto de privilégios particulares.
As consequências deste sistema legal foram imensas e criaram regimes de medo. Os negros foram ameaçados e afastados das urnas nos estados em que a segregação era norma: na Luisiana havia, em 1898, 130 mil negros registados para votar, em 1910, já só eram 730. Mas a consequência mais grave foi a generalização do terror, nomeadamente com a criação do Ku Klux Klan por ex-soldados confederados nos estados do sul, logo no ano seguinte ao fim da Guerra Civil. Uma testemunha dessa violência foi W. E. B. du Bois, o primeiro negro a obter um doutoramento em Harvard, uma das grandes universidade de Massachusetts, na costa leste, onde nascera, e que tinha aceitado em 1897 um contrato na Universidade de Atlanta, a capital da Geórgia, o palco de algumas das principais batalhas da Guerra Civil (“E Tudo o Vento Levou” passa-se na Geórgia). Du Bois poderia ter imaginado, 30 anos depois, que a guerra terminara. Mas conta-nos que um dia, ao sair da universidade, notou que na montra de uma loja estava em exibição uma parte do corpo de um homem. Era de Sam Hose, um negro que tinha sido linchado e cujo corpo foi vendido aos pedaços como recordações.
Os linchamentos foram o enunciado do terror, um em cada quatro dias no virar para o século XX. Em 1903, o governador do Mississípi dizia pomposamente que, “se necessário, todos os negros do estado serão linchados”, como regista Lepore. Uns anos mais tarde, na década de 1920, o Ku Klux Klan tinha 5 milhões de membros. Ora, ao contrário da lenda, mesmo quando a necessidade ou o engenho conduziram a políticas sociais, como as que o New Deal do Presidente Roosevelt mobilizou para combater a grande recessão dos anos 30, a discriminação manteve-se: os programas rooseveltianos eram segregados, prevendo regras raciais distintas. O Presidente não conseguiu sequer impor uma legislação que punisse os linchamentos, se é que quis fazer essa batalha: quando, em 1934, Claude Neal, acusado de assassínio, foi levado de uma prisão do Alabama para a Florida, onde foi mutilado e executado perante 4 mil pessoas, foi apresentada uma lei contra este tipo de crime, mas os senadores sulistas bloquearam-na e a Casa Branca retirou a proposta. Como o Presidente explicou nesse momento a representantes do movimento dos direitos civis, os eleitos pelos estados do sul eram velhos senadores, dominavam várias comissões e, para mais, eram do partido democrata, pelo que não podiam ser convencidos nem vencidos. Depois de 1945, o direito dos veteranos de guerra de acesso à universidade (com propinas gratuitas) e a casa (com taxa de juro nula) foi barrado à maioria dos soldados negros. O facto é que as leis Jim Crow só foram abolidas muito mais tarde, nas décadas de 50 e 60, com a coragem de Rosa Parks ou as ferozes batalhas cívicas levadas a cabo pelo movimento liderado por Martin Luther King. O panorama era devastador: uma família negra teria em média um décimo do património de uma família branca (a relação atual é da mesma ordem). A segunda época do necropoder chegava deste modo ao fim mas, como aconteceu na transição da primeira para a segunda, legava as suas raízes e cultura supremacista aos que viriam.
Os herdeiros de Jim Crow manifestaram-se de muitas formas. Na Europa, foi o caso de Adolf Hitler, um admirador das duas formas do necropoder, tomando a legislação racial dos EUA como o modelo a seguir e elogiando a forma como o império britânico tinha escravizado os seus vassalos além-mar. Antecipava mesmo que a conquista da Rússia e do leste europeu seguiria os mesmos passos: “O que a Índia foi para a Inglaterra, os territórios do leste serão para nós”, repetindo esse exemplo de “exploração capitalista de 350 milhões de escravos na Índia”.
A GUERRA COMO SACRAMENTO DA NOSSA ÉPOCA
A escravatura ou as leis Jim Crow foram os dois modos sucessivos de necropoder nos Estados Unidos, e, de outras formas, em alguns dos países mais poderosos do mundo. No caso das potências europeias, o necropoder foi construído pelo imperialismo e pelas guerras coloniais.
A colonização mobilizou uma pulsão mortífera e fê-lo por longos séculos, promovendo a destruição de quem era visto como ser inferior, quem vivia no exterior da civilização (curiosamente, o que hoje se chama “descobrimento”, uma palavra que se pretende pacata, era então dito “conquista”, tão bélica quanto a sua experiência). Mbembe, em “Políticas da Inimizade”, argumenta que essas guerras foram o “sacramento da nossa época” e que guerra e raça são o “veneno da modernidade”. Em todo o caso, a época contemporânea cresceu lado a lado com o exterminismo, pelo que uma interpretação beatífica seria um modo de ocultação da tragédia humana dos últimos séculos. A modernização foi um processo tortuoso de construção e também de destruição, foi engrandecimento do humano quanto foi degradação do humano até à infâmia, foi iluminista quanto foi terrorista.
Frantz Fanon, um psiquiatra e filósofo nascido na Martinica e que viria a ser uma das figuras de referência da independência argelina, afirmava que as democracias ocidentais têm um “corpo noturno”, os seus impérios coloniais, aquele que não olhamos. No mesmo sentido, escreve Mbembe que “as colónias são semelhantes às fronteiras. Elas são habitadas por ‘selvagens’. As colónias não são organizadas de forma estatal e não criaram um mundo humano. Os seus exércitos não formam uma entidade distinta e as suas guerras não são guerras entre exércitos regulares. Não implicam a mobilização de sujeitos soberanos (cidadãos) que se respeitam mutuamente, mesmo que inimigos. Não estabelecem distinção entre combatentes e não combatentes ou, novamente, ‘inimigo’ e ‘criminoso’. [...] Em suma, as colónias são zonas em que guerra e desordem, figuras internas e externas da política ficam lado a lado ou se alternam. Como tal, as colónias são o local por excelência em que os controlos e as garantias de ordem judicial podem ser suspensos — a zona em que a violência do estado de exceção supostamente opera ao serviço da ‘civilização’”.
Esse corpo noturno instituiu o estado de sítio permanente. Na colónia, a regra era não se respeitar qualquer regra, o direito de exceção não reconhecia nenhum direito e estabelecia o colonizado como a raça inferior, que deve ser submetida, seja pela escravatura seja pela servidão, através, se necessário, de uma guerra infinita. O outro é o selvagem, designado como uma forma de vida animal, com a qual não pode haver paz. Não se assina um tratado com selvagens, que devem viver confinados e agrilhoados. A distinção entre guerra e paz desapareceu na vida colonial, de modo que essa dominação admitiu todas as formas da violência. Assim sendo, o exército de ocupação colonial inaugurou, ensaiou ou repetiu as múltiplas faces do genocídio seja o assentamento, a defesa e a contrainsurgência, seja a punição familiar ou a tortura, numa escala nunca conhecida. A barbárie, que foi inventada pela Humanidade no início dos tempos, passou a ser a regra perpétua: na colónia nunca há paz, não há distinção entre meios e fins, toda a crueldade é permitida.
Diversos historiadores, como Enzo Traverso ou Fernando Rosas, têm apontado que as formas extremadas de violência praticadas na Europa no século XX, em particular as técnicas nazis, foram anteriormente testadas pelas administrações coloniais, tal como a justificação da inferioridade das vítimas foi sendo vulgarizada ao longo da vida dos impérios. O poder total sobre o corpo, sobre o sexo e sobre a vida, banalizando a indignidade, tudo isso fora treinado nos espaços da conquista, na economia da plantação ou na produção agrilhoada: o trópico era o lugar de toda a licença do proprietário da vida e da morte. Ora, quando as forças fascistas aplicaram esse estado de exceção nas metrópoles, do modo sangrento que se conhece, estavam a cumprir o que já tinha sido aprendido nas guerras coloniais, como a aniquilação de quem era designado como sub-humano ou de raça inferior. Aliás, mesmo depois da condenação universal do Holocausto, essas guerras continuaram a ser o lugar de experimentação de novas formas de crueldade: na segunda metade do século XX a tortura em larga escala foi usada na Argélia ou contra outras insurreições independentistas e o napalm foi uma arma frequente no Vietname, como o fósforo branco foi usado no Iraque já no século XXI.
Hannah Arendt notou que a tragédia dos campos de concentração colocava a humanidade, naquelas circunstâncias, para lá do domínio da vida e da morte. Esse já tinha sido o lugar do escravo e, se é certo que a sofisticação da “solução final” mobilizou novas capacidades industriais de destruição, o exterminismo repetia nos territórios europeus entretanto ocupados o que outrora fora imposto nas colónias. A divisão social em grupos com diferente acesso à vida e à morte era a norma do conquistador.
Ao reconhecer que a ideia de modernidade é contemporânea da de raça, e que a face noturna de tantas das nossas sociedades contemporâneas inclui o necropoder, não me refiro unicamente aos modos de separação de populações, seja o apartheid seja o confinamento das populações da Faixa de Gaza, nem sequer quero de novo chamar a atenção para o assassínio extrajudicial ou a punição coletiva, como a destruição de casas de famílias palestinianas, ou para a generalização da tortura ou a prática de sequestro, como nas prisões secretas da CIA ou de outros regimes, a repressão na Bielorrússia ou a prisão dos uigures na China. Tudo isso são, ainda assim, regras territorializadas, mesmo que se tenham estendido ao longo do século XX e se vulgarizem no século XXI. Refiro-me antes ao fundamento do necropoder e, aqui, à necropolítica que o sustenta: o racismo, que prevalece em todos os azimutes e é impulsionado pelo farol da direita mundial, Donald Trump. A cultura que assenta ou aceita o princípio da raça é sempre uma afirmação da hierarquia humana, que é o que permite ou convida a uma serialização da destruição. Se há racismo há morte.
A NECROPOLÍTICA
A ideia de que o poder se exerce sobre o corpo, ou que na época contemporânea se passou a tratar as populações como domesticáveis e que o discurso hegemonizador do poder é o enunciado da submissão do corpo, foi resumida pelo filósofo francês Michel Foucault, que designou este regime como biopoder. O biopoder, escreve ele no fim da sua História da Sexualidade (1976), é o “direito de morte e poder sobre a vida”, e organiza-se tentacularmente como uma disciplinarização das atividades sociais, a habitação, a saúde, a natalidade, a circulação das pessoas, a vida na cidade. Foucault levou ainda a noção mais longe, sugerindo que o nazismo e o estalinismo se limitaram a ampliar mecanismos já prevalecentes nas sociedades europeias, como os desenvolvidos a partir das teorias da eugenia.
A história do século XX parece sustentar esta interpretação de Foucault. A eugenia, se bem que não fosse suportada por Charles Darwin, o fundador da biologia como ciência, foi apoiada pelo seu filho Leonard, que foi fundador e presidente da Sociedade Eugénica Britânica, e esse movimento, que promovia medidas para selecionar o aperfeiçoamento da raça, foi seguido por muitos dos gentlemen da sua época: economistas de renome, como John Maynard Keynes (foi vice-presidente da Sociedade) ou Irving Fisher, os grandes nomes da estatística, como Francis Galton, Karl Pearson e Ronald Fisher, filósofos e escritores como H.G. Wells, G.B. Shaw e Bertrand Russell, políticos como Winston Churchill e quase todos os biólogos, Haldane, Wright, Darlington, Emerson, Waddington, Mayr, Huxley, Dobzhansky. Formavam um amplo consenso, mas que se viria a dividir perante a forma mais violenta de eugenismo, a teorizada e praticada pelos nazis, que poucos aceitaram. Alguns destes biólogos, sobretudo Huxley, foram os protagonistas, mas somente depois do fim da guerra, do combate para erradicar o conceito de “raça”. Venceram institucionalmente, mas nem por isso a cultura do racismo foi subjugada.
No entanto, alguns dos discípulos e críticos de Foucault consideram a noção de biopolítica insuficiente, por se limitar a sugerir uma norma disciplinar que seria aplicada de forma capilar na sociedade, controlando cada pessoa. Deste modo, a política, que constitui e organiza a relação do poder, seria vista com um microscópio, o que remeteria o conflito para o nível individual. Mbembe, entre outros, duvida dessa lente: “argumentei que as formas contemporâneas que subjugam a vida ao poder da morte (necropolítica) reconfiguram profundamente as relações entre resistência, sacrifício e terror. Demonstrei que a noção de biopoder é insuficiente para explicar as formas contemporâneas de subjugação da vida ao poder da morte. Além disso, propus a noção de necropolítica e necropoder para explicar as várias maneiras pelas quais, em nosso mundo contemporâneo, armas de fogo são implantadas no interesse da destruição máxima de pessoas e da criação de 'mundos de morte', formas novas e únicas da existência social, nas quais vastas populações são submetidas a condições de vida que lhes conferem o estatuto de 'mortos-vivos'”. Assim, o que Mbembe pergunta é se esta forma de poder ainda contamina outros mundos na normalização pós-colonial.
Poderá quem ler estas linhas admitir que, se a escravatura e as leis Jim Crow nos Estados Unidos tiveram o seu tempo, e que, se as manifestações racistas são legalmente punidas em muitos países, essas épocas lúgubres estariam encerradas num museu de horrores passados. No entanto, e antes de continuar a discussão sobre se este conceito de necropolítica é adequado para descrever formas atuais de poder, mesmo quando não é conduzido pela guerra, devo voltar a Portugal e à história do nosso império colonial.
O RACISMO AMÁVEL
Numa curiosa mas persistente herança lusotropicalista, são frequentes e audíveis as vozes que entre nós sugerem que o colonialismo português foi miscigenante, logo amoroso, ou pelo menos amável para com as populações submetidas. A ideia da mestiçagem não era bem vista pelos ideólogos da ditadura, mas acabou por se tornar a versão cordial da colonização. Vista a partir de Portugal, essa narrativa tranquilizadora tenta substituir a investigação histórica e, portanto, trocar o conhecimento inquieto por uma névoa de ideologia que, aliás, tem recentemente passado a ser tema de esgrima política. Mas quando abrimos um livro de História, como por exemplo o de Lepore que tenho vindo a citar, encontramos uma narrativa mais despida de floreados: Cristóvão Colombo, o marinheiro genovês que desde 1482 era um dos tripulantes de navios negreiros portugueses, onde aperfeiçoou as suas artes de navegação antes de propor no paço, e depois ao rei espanhol, a viagem que o levaria às Américas, fazia parte de um negócio que foi florescendo pelos séculos fora. Segundo uma pesquisa sobre o tráfico negreiro, em que participa a Universidade de Harvard, os navios portugueses teriam transportado 5,8 milhões de escravos, sendo os maiores números os que se referem aos séculos XVIII e XIX. As rotas atlânticas eram dominadas por este império comercial e nenhuma outra marinha teve uma participação neste tráfico que se aproximasse do negócio nacional. Outras fontes apontam números superiores mas, em qualquer caso, trata-se de uma migração forçada de proporções gigantescas.
Notar-se-á que a proibição pelo marquês de Pombal do transporte de novos escravos para a metrópole, em 1761, em nada interrompeu este circuito (além de manter como escravos os que já estavam em Portugal e, até 1773, escravos seriam os seus filhos), que só em 1869 seria proibido em todo o território, mesmo que essa proibição tardasse em ser aplicada. O lucro do tráfico negreiro fez fortunas e sustentou simultaneamente o continente e as colónias que recebiam a mão de obra escravizada. Centenas de anos deste poder absoluto criaram uma autorrepresentação que reforçou a cultura esclavagista em que assentava o necropoder.
Se a dimensão desse poder está por revelar em toda a sua extensão, há uma investigação historiográfica expressiva que tem demonstrado como a escravatura se instalou na vida social. Arlindo Caldeira, autor de “Escravos em Portugal”, conta por exemplo como, no século XVII, em Évora, a Inquisição apurou a responsabilidade pela morte de Grácia, escrava, a quem o dono, um funcionário do Santo Ofício, “certo dia, manda-a levar uns cestos de queijos a um almocreve que vinha para Lisboa. Grácia não aguenta o peso dos cestos, deixando-os cair. Como castigo, o despenseiro espanca-a com grande violência. A mulher regressa a casa, gritando ‘morro, morro’”. Acaba mesmo por morrer. A Inquisição decide, então, abrir um processo para justificar a morte, que acaba provando que a culpada era... a própria escrava. O padre encarregado do processo ainda lamenta não ter chegado mais cedo ao local do crime. “Conheço muito bem as manhas dos escravos” — diz ele nos autos — “eles fecham a boca para deixarem de respirar e morrerem. Se tivesse chegado mais cedo, chegava-lhe fogo à boca, ela era obrigada a respirar e não morria.” Na morte, só a vítima podia ser culpada.
Cerca de 300 anos mais tarde, em 1934, realizou- -se no Palácio de Cristal, no Porto, a Exposição Colonial Portuguesa. Um dos grandes atrativos da mostra eram 324 africanos, homens, mulheres e crianças, exibidos em palhotas. Rosa, uma mulher guineense, balanta, que era mostrada nua para entusiasmo da multidão, foi a mais fotografada. Em 1940, a Exposição do Mundo Português, ao lado do Mosteiro dos Jerónimos em Lisboa, voltou a incluir um zoológico humano, uma prática que foi comum em capitais europeias desde 1840 (em Paris, na feira de 1889 em que se apresentou a Torre Eiffel, aldeias com 400 figurantes esquimós e africanos tinha feito as delícias dos espectadores) até meados do século XX.
O império exibia-se placidamente nos jardins do Palácio de Cristal ou em frente aos Jerónimos, mas continuava a ser construído a ferro e fogo. Mais de 30 anos depois daquela Exposição colonial e já em guerra aberta, um padre católico, Adrian Hastings, publicou em Londres um relatório sobre o massacre de dezembro de 1972 em Wiriamu, em Moçambique. Na verdade, ele limitava-se a divulgar os testemunhos recolhidos localmente pelo padre Domingos Ferrão, protegendo a sua identidade.
O relatório é um doloroso repertório do necropoder: “Um grupo de soldados juntou uma parte do povo num pátio para o fuzilamento. O povo assim reunido foi obrigado a sentar- -se em dois grupos: o grupo dos homens de um lado e o das mulheres noutro, a fim de poderem todos ver melhor como iam caindo os fuzilados. Um soldado chamava por sinal a quem quisesse (quer homem, quer mulher, quer criança). O designado punha-se de pé, destacava-se do conjunto,o soldado disparava sobre ele e a vítima caía fulminada.” O relatório descreve cenas sinistras: “Uma mulher chamada Vaina foi convidada a pôr-se de pé. Ela levantou-se com o seu filhinho Xanu ao colo, uma criança de nove meses. A mulher caiu varada por uma bala. A criança desenvencilhou-se e sentou-se ao lado da mãe morta. Chorava desesperadamente sem que ninguém lhe pudesse valer. Um soldado avançou para a fazer calar. Sob o olhar atónito do povo reunido, o soldado agrediu a criança com um forte pontapé esfacelando-lhe a cabeça. ‘Cala-te cão!’ — concluiu ele. A criança prostrada já não chorou mais. Estava morta. Voltou o soldado com a bota ensanguentada. Os companheiros acolheram o feito com uma salva de palmas. ‘Muito bem!’ — gritaram-lhe eles — ‘És um valentão’.” As famílias eram colocadas nas palhotas e os soldados atiravam uma granada para dentro, para poupar balas. As violações repetiram-se. Mustafah Dhada, um moçambicano que é atualmente professor na Universidade da Califórnia, publicou num livro, “O Massacre Português de Wiriamu”, a investigação mais completa sobre este genocídio.
Muitos anos depois da operação militar, o alferes Antonino Melo, que a comandou, reconheceu, numa reportagem do Expresso, que foi “tudo a eito”. Voltou mesmo ao local do crime, com uma jornalista, e ensaiou uma desculpa perante familiares das vítimas: “Recebemos ordens dos nossos superiores para matar toda a gente” e foi “um crime”. As ordens macabras e os seus executantes, eis como era o necropoder na época dos nossos pais.
A NECROPOLÍTICA NOS NOSSOS DIAS
Será então o necropoder somente um excesso delirantemente sanguinário, a pulsão mortífera elevada a padrão de guerra, e portanto excecional, limitada ao momento do conflito militar e ao passado colonial, ou pode também ser uma política em tempos normais, e portanto uma regra social? Se for uma memória, nada mais será do que o recalcado da civilização; se for uma norma que se adapta, é uma armadilha perigosa. A questão é o que ameaça a democracia, se o seu passado se o seu presente, e as consequências são diversas num e noutro caso.
A modernidade nasceu associando o conceito de raça ao de Estado-nação e, por isso, convive desde sempre com o necropoder. Nas guerras religiosas dos séculos XVI e XVII, ele voltou a manifestar-se como a demonização do inimigo, repetindo a constante milenar da religião como estandarte; aí, como na colonização, anunciou a salvação, conversão ou destruição dos infiéis, uma ameaça consensual entre as classes dominantes; com o messianismo do Terceiro Reich, a raça foi elevada a um critério de destruição e trouxe para as metrópoles europeias as técnicas do genocídio que os impérios já tinham explorado. Ora, se esse é o lado noturno da modernidade, no lado diurno foi desenvolvida a ideia contrária de política, como a alternativa à guerra, ou seja, como a expressão da coletividade cujos conflitos são resolvidos por deliberação no espaço público. É certo que Maquiavel, perguntando se é preferível ao soberano fazer-se temer ou amar, preferiu recomendar a coerção pelo medo à legitimação pela ilusão ou pelo interesse mas, cinco séculos depois, a política prometeu ser pós-maquiavélica, baseando a soberania na razão. O que então nos importa saber é se a necropolítica ainda condiciona e até transforma a política dos dias de hoje, contra a razão democrática. A resposta é que sim, mesmo que de vários modos.
A primeira forma desse condicionamento é a trivialização do estado de emergência, uma típica forma de necropolítica, ampliando o campo da autorização da ilegalidade. De facto, em particular desde as Torres Gémeas, as legislações de exceção foram não só consolidando procedimentos de alerta perante ameaças, reais ou fictícias, e criando para isso novos organismos de controlo que escapam aos escrutínios públicos, como também monitorizando o quotidiano das populações (a videovigilância nas ruas, a georreferenciação e a interferência nas telecomunicações, o controlo dos metadados, por exemplo) e admitindo a interrupção de direitos fundamentais. Os exércitos têm sido frequentemente utilizados em policiamento interno, seja em Madrid, em Paris ou nos EUA. E, como a cidade está esquartejada por fronteiras sociais e raciais, essa organização da segurança acentua a exclusão e, portanto, incentiva algumas formas de conflito colonial interno, barricando as respostas sociais. Talvez os arquétipos deste mundo sejam a prisão sem lei em Guantánamo e a militarização do Rio de Janeiro, com bairros de centenas de milhares de pessoas governadas por milícias ou por barões da droga.
Devo notar que esta banalização da emergência envolve um intenso trabalho de justificação social do uso de meios ilegais. A aceitação da tortura, por exemplo, ganhou uma expressão no século XXI que não era concebível em muitos países na segunda metade do século XX, não porque não fosse praticada nas guerras à distância e mesmo em algumas clandestinas operações policiais internas, mas porque não era socialmente aceite nem era legal. Um exemplo esclarecedor desse esforço de justificação é o que se passa em algumas revistas científicas de referência. Numa das cinco principais revistas em Economia foi apresentado em 2016 um “modelo dinâmico de tortura”: “Estudamos a tortura como um mecanismo para extrair informação de um suspeito que pode ou não estar informado. (...) Analisamos um modelo dinâmico de tortura em que a credibilidade das ameaças e promessas é endógena. (...) Usamos o nosso modelo para tratar de questões como o efeito de técnicas reforçadas de interrogatório, direitos acerca de detenção indefinida e delegação de tortura a especialistas”, escrevem Sandip Baliga e Jeffrey Ely, da Universidade de Northwestern, nos EUA. Outro artigo discutia as condições em que uma agência de segurança deve usar práticas ilegais de tortura “ótima”: “Neste contexto, há condições sob as quais uma política de tortura ótima pela agência é usar a tortura nos casos com evidência forte, quer seja ou não legal utilizar a tortura nesses casos”, assinam Hugo e Sue Mialon, da Universidade de Emory, e Maxwell Stinchcombe, da Universidade do Texas em Austin. Os editores destas revistas de prestígio mundial não hesitaram em aprovar a publicação destes sóbrios estudos sobre “tortura ótima”, não se imaginando o que poderiam responder a uma proposta de artigo sobre “um modelo dinâmico da minimização do gasto em calorias na alimentação dos detidos no campo de Auschwitz”, como lembra o meu colega Giovanni Dosi. O que era repugnante passou a ser estimado.
A segunda forma desse condicionamento é a deformação das regras que foram apresentadas como os pilares da democracia, como seja a independência do judiciário e o respeito pela lei. A condução por Sérgio Moro do processo contra Lula, a revelação dos termos em que Ministério Público e juiz de instrução conspiraram para formatar provas e manipular a informação, a passagem do juiz para um lugar de destaque no Governo Bolsonaro, que foi o beneficiário desta cruzada, ou a forma como Trump atropela os procedimentos tradicionais para assegurar uma maioria perpétua no Supremo Tribunal nas vésperas de eleições que pode perder, ou até, mais prosaicamente, a viciação de processos ao serviço de clubes de futebol em Portugal, a perseguição contra pessoas através de fugas de informação sobre acusações que depois não são julgadas em tribunal, ou outros truques, são expressões do que os estrategos militares inventaram chamar lawfare, ou seja, a guerra na opinião pública para diminuir, desautorizar e desumanizar o inimigo, a começar pelo inimigo interno, usando o poder simbólico da justiça para conseguir efeitos inquestionáveis. Nestes contextos, a justiça passou a ser um instrumento de primeira linha no combate partidário.
A terceira forma de condicionamento, porventura a mais poderosa e que tenho vindo a sublinhar, é a que levanta uma cultura de ódio para se sobrepor à experiência da vida das pessoas. É a necropolítica no sentido puro: o racismo. Trump ganhou a eleição de 2016 acusando a adversária de ser criminosa, o que criou uma bolha em que o seu eleitorado ficou imunizado à argumentação, e prometendo um muro contra os mexicanos. Build the wall!, foi a bandeira mais simples e efetiva para uma campanha suja que triunfou. A justificação tribal foi poderosa, mobilizando trabalhadores brancos empobrecidos contra o fantasma do imigrante. Com essa tecnologia do ódio, o conservadorismo quer criar um campo de forças, mais do que uma ideologia, e é bem sucedido.
Naturalmente, esta cultura de ódio é social quando é racial, e é sempre social mesmo quando não é racial. O racismo pode ser o seu enunciado mais poderoso, porque mobiliza o recalcado e fornece uma autodesculpabilização dos cúmplices, mas todo o discurso odioso tem por objetivo criar medo e instalar o impensável. A designação do inimigo visível, seja o cigano, seja o negro, seja a mulher, seja o mais pobre, ou todos ao mesmo tempo, procura criar uma reconfortante ilusão de poder noutras pessoas e ganhar uma base de massas, assente em hordas que constituem o apoio popular ou eleitoral suficiente para o chefe. Logo, a operação envolve a corrosão do carácter da democracia e é nesse sentido que a forma como Trump se agarra ao poder, vicia as regras, designa comparsas para cargos chave, condiciona os tribunais, usa a religião, recorre ao Tesouro para medidas enganadoras, despreza os doentes, multiplica a agressão pessoal, promete o que não pode nem tenciona cumprir, tudo faz dele o representante mais expressivo, e mais bem sucedido, da necropolítica. Para o bufão, tudo é possível.
Esta perceção é comum entre distintos analistas. Adam Tooze, um historiador da Universidade de Cambridge que escreveu porventura o melhor retrato do colapso financeiro de 2008, designou em maio de 2020 as agências financeiras como “esquadrões da morte paramilitares com a cumplicidade da autoridade”. Em Portugal sabemos alguma coisa disso. Num livro publicado também este ano, Angus Deaton, prémio Nobel da Economia, e a sua colega Anne Case, de Princeton, discutem “As Mortes por Desespero e o Futuro do Capitalismo”. Partem de um facto: pela primeira vez desde 1918, então por causa da pandemia de gripe, a esperança média de vida dos EUA reduziu-se em três anos consecutivos. Foi antes da covid, foi a miséria, o desespero, o alcoolismo, o abandono. Os autores atribuem essa tragédia social à concentração do poder plutocrático e ao desprezo pela saúde dos trabalhadores. O capitalismo está a destruir a vida de quem trabalha, é a sua conclusão. Descobriram a necropolítica.
Cansado de guerra, Paul Valéry escreveu em 1919 que “o abismo da história tem profundidade suficiente para lá cabermos todos”. Esse é o destino de uma política baseada na vertigem do ódio. Nem a necropolítica nem a raça podem ser o nosso futuro comum.