A necropolítica, que é uma das raízes da história secular dos Estados Unidos e que se exprimiu no passado pela escravatura e depois pelas leis discriminatórias, revive agora sob o legado de Trump.
Francisco Louçã, Esquerda.net, 20 de novembro de 2020
Era de esperar. Na reta final da campanha, Trump tinha perguntado num comício: “Se perder, o que vou fazer? O que vou dizer durante toda a minha vida? Vou dizer que perdi com o pior candidato da história da política! Não me vou sentir bem. Talvez tenha que sair do país, não sei.” Agora já sabe, vai agitar um impotente bloqueio à transição e arrastar o sistema eleitoral pela lama. Só que essa não é a pior ameaça de Trump. O que ele nos garante é que um novo modo de política se instalou no mundo ou, melhor, se reinventou no tempo da hipercomunicação.
Um país rasgado ao meio
O estudo pós-eleitoral do “New York Times”, mesmo com possíveis erros de amostragem, dá um retrato sobre a divisão do país. Trump ganhou entre os homens (53%, contra 45% de Biden) e perdeu entre as mulheres por muito (42% a 57%). É a diferença que deu a vitória a Biden, mas uma tão acentuada distinção entre votos por género não é comum e não se sabe como evoluirá. Entre os homens brancos, a vantagem de Trump é mais forte: 61%, contra 38%. Mesmo entre as mulheres brancas tem supremacia, mas menor (55% a 44%). A balança só se desequilibra quando se consideram as mulheres negras (9% para Trump e 90% para Biden) e outras. Além do comportamento polarizado por género, temos assim uma diferença radical de voto por origem étnica: no seu conjunto, os brancos deram 58% a Trump e 41% a Biden, os negros 12% e 87%, os hispânicos 32% e 65% e os asiáticos 34% e 61%. Conclusão: o discurso supremacista branco e a violência racial vão continuar a ser um trunfo importante para a extrema-direita trumpista. Tem povo e tem ódio suficiente para fazer uma agenda.
Além do voto feminino e das minorias, os jovens deram a vitória a Biden. Até aos 29 anos, Biden quase duplica os votos de Trump, que tem 36%, contra 60% do seu rival democrata. É ainda maior a percentagem anti-Trump para os que votaram pela primeira vez, 32%, contra 64%. Entre quem tem mais de 65 anos, um eleitorado anteriormente dominado pela direita, houve uma aproximação, motivada pela crítica à gestão da pandemia (52%, contra 47%). Assim, Biden reduziu mas não anulou a desvantagem que tinha em grandes eleitorados e consolidou a viragem com o apoio de jovens e mulheres.
O resultado é um país dividido, com duas outras polarizações que se estabilizaram. A primeira é entre quem tem uma licenciatura e quem tem escassa escolaridade. Os licenciados preferem Biden, a diferença é de 43% para 55%, que também recuperou entre os mais pobres: quem ganha até 50 mil dólares por ano votou em 43% em Trump e em 55% no democrata. Nas eleições de 2016, os operários brancos votaram no republicano por uma diferença de 40 pontos percentuais, que agora diminuiu. Onde Trump ganha é nos mais afortunados: quem tem mais de 100 mil dólares vota nele por 54% a 42%. Finalmente, a segunda polarização, porventura a que consolida as anteriores, é nas cidades, entre as grandes (38% para Trump e 60% para Biden) e as pequenas e zonas rurais (57%, contra 42%). A sobrerrepresentação das zonas rurais no colégio eleitoral e no Senado era a esperança de Trump, que aspirava a ser Presidente mesmo perdendo de novo o voto popular, e por isso pediu a paragem da contagem dos votos.
A lição da Geórgia
Entre estas polarizações, o resultado da Geórgia é o que mais assusta os republicanos, porque os ameaça num dos Estados em que tinham supremacia histórica e mostra como a demografia do Sul tem mudado. A região já não é o mesmo cenário do filme “E tudo o vento levou”. A capital, Atlanta, tem agora 57% da população do Estado e 60% dos adultos são licenciados, mais do que nos Estados industriais do Michigan e Wisconsin. Mas a diferença essencial está no sucesso da campanha de inscrição no recenseamento eleitoral, que levou 800 mil pessoas, sobretudo negros, a registarem-se (nos EUA, essa opção é voluntária). Foram esses novos votos que levaram Biden à vitória e que poderiam decidir as duas segundas voltas das eleições para o Senado, em janeiro.
Mais uma vez, esse conflito estimulará a polarização racista. A necropolítica, que é uma das raízes da história secular dos Estados Unidos e que se exprimiu no passado pela escravatura e depois pelas leis discriminatórias, revive agora sob o legado de Trump. Ele percebeu, e os seus imitadores também, que a oligarquia pode mobilizar apoio popular com o ódio contra o povo. Uma pensadora trágica, Hannah Arendt, resumia o drama da história dizendo que “o passado não leva para trás, mas sim impulsiona para a frente, e, ao contrário do que se poderia esperar, é o futuro que nos conduz para o passado”. Não será fácil desmenti-la.
Artigo publicado no jornal “Expresso” em 13 de novembro de 2020