19 de Novembro de 2021. Francisco Louçã em Esquerda.net.
O “Squid Game”, o “Jogo da Lula”, nome curiosamente não traduzido na plataforma no nosso país, tem sido a série mais vista de sempre na Netflix. Há para isso uma explicação estética: os episódios reproduzem um modo de comunicação que tende a ser dominante entre várias gerações, baseado na “gamificação” das representações. É talvez a história que mais radicalmente se embebe dessa narrativa de movimentos, estratégias e, em consequência, punições. Neste caso, a facilidade exterminista banaliza a morte, como um videojogo em que a pessoa que detém o comando vai chacinando os adversários que lhe saltam ao caminho ou com quem concorre pelo prémio. A banalização do mal passa a ser o divertimento de quem prime o gatilho. No entanto, essa não é a única explicação deste triunfo. O “Jogo da Lula” tem uma força universal por ser a representação mais cruenta do reverso do sucesso do capitalismo: a série retrata o inferno e fá-lo sem disfarces nem condescendência. Conhecemos e reconhecemos esta história, em que jovens desempregados e endividados aderem ao jogo, na realidade disputam a possibilidade de participar nele, descobrindo que a eliminação é a morte e que a concorrência fatal é a vida.
Sim, há nisto uma descrição sul-coreana, mas também uma imagem global. O país era no pós-guerra uma economia atrasada, com um nível de rendimento per capita inferior a muitos Estados africanos, e ergueu-se com uma combinação de autoritarismo centralizado e de promoção de grandes conglomerados financeiros e industriais. Esse sistema gerou corrupção (o presidente da Samsung terminou recentemente uma pena de prisão por esse crime) e violência social (13 presidentes da maior central sindical enfrentaram a prisão por protestos laborais), e assim produziu um acentuado crescimento. Este salto económico teve esse preço de submissão e destruição social. O filme “Parasitas”, uma tragicomédia de Bong Joon-ho, que ganhou em 2019 o Óscar para o melhor filme e realização, deu-nos uma visão desencantada sobre essas desigualdades sociais, essa prepotência e esse desespero.
Desde 2015, generalizou-se entre os jovens sul-coreanos uma designação para tal êxito económico: isto é o “inferno Jaseon”, dizem. Jaseon foi a dinastia que governou o país com mão de ferro desde o século XIV até ao início do século XX, e o que com esta analogia se descreve é o inferno capitalista. O “Jogo da Lula” sublinha a comparação. Enterrados em dívidas, os jogadores aceitam disputar um mirífico prémio até à morte, num sistema em que o poder absoluto se diverte com a sua destruição e espetaculariza o martírio, e os concorrentes tudo farão para se destruírem mutuamente. Explicou o argumentista que a história de Gi-hun, personagem que protagoniza a série, se baseia na memória de uma greve de 2009 numa fábrica, a SsangYong Motor Company, em que os trabalhadores foram atacados por milícias patronais armadas, vencidos e condenados ao desemprego de longo prazo. No “Jogo da Lula” a dívida leva-os a buscar a morte para viverem.
Assim, este “inferno Jaseon” é também o capitalismo e a sua fantasia meritocrática, que promete que se pode subir condenando os adversários, toda a gente joga contra todos e o egoísmo é a virtude. Se esta série é a mais vista no mundo, será então porque a gamificação gera uma leitura de divertimento perverso, mas certamente também porque muitos jovens nele reconhecem a sua corrida de obstáculos pela vida.