O Partido Socialista rompeu com a “geringonça” em 2019. Desde então buscava deixar de ter que negociar à sua esquerda, com o Bloco de Esquerda e o PCP. Esta eleição surgiu de uma crise política artificial criada pelo PS, em uma bem-sucedida estratégia para a bipolarização e o “voto útil” contra a direita, na qual consegue maioria absoluta.
Francisco Louçã, A terra é redonda, 2 de fevereiro de 2021
As eleições do dia 30 de janeiro de 2022 em Portugal deram a maioria absoluta dos deputados ao Partido Socialista. A esquerda sofreu uma derrota importante, arrastada pelo espectro de uma bipolarização anunciada nas sondagens e que veio a revelar-se falsa. A direita tradicional teve mais uma derrota, falhando a concentração dos votos e abrindo caminho à nova e à velha extrema-direita, o Chega e a Iniciativa Liberal.
Perante as sondagens dos últimos dias, com o PS e o PSD em empate técnico, e perante com o PSD a namorar o Chega (extrema-direita populista e racista) e a Iniciativa Liberal (direita liberal radical), a proclamar o fim do salário mínimo nacional e outras barbaridades, o povo de esquerda correu a votar no Partido Socialista. Pessoas que descobriram no domingo, assustadas, que afinal a diferença era de 13 pontos e que se fizeram parteiras de uma maioria absoluta, resultado que o PS só conseguira em 2005, ainda com José Sócrates. O resultado fica marcado por deslocações eleitorais de última hora e pela polarização do eleitorado do centro atrás de António Costa.
Apesar de ainda estarmos a viver os últimos dias da pandemia, com 10% da população sob isolamento, houve um aumento da participação eleitoral (58% de votos no total nacional, uma participação ainda maior em alguns casos, como em Lisboa com 62%). O PS subiu 350 mil votos, a esquerda baixou de cerca de 900 mil para um pouco menos de 500 mil. Nessa disputa, o voto útil foi fatal: o Bloco de Esquerda perdeu metade da sua base eleitoral e passou de 19 para 5 deputados; o Partido Comunista Português teve o seu pior resultado em votos e mandatos (perdeu metade dos deputados, alguns eram referências importantes). Os ecologistas do Partido Ecologista “Os Verdes” (satélite da coligação comunista) e o CDS-Partido Popular (direita conservadora tradicional) desapareceram do parlamento. O PAN [Pessoas Animais Natureza] (partido animalista e da ecologia liberal) ficou reduzido a uma deputada (tinha 4) e o Livre (verdes federalistas) manteve um mandato.
O parlamento fica com menos esquerda e com menos partidos. Assim, para o Bloco, o novo ciclo será de mobilização das lutas sociais que respondem à fratura do país, na saúde, no precariado, na igualdade, na transição climática. Lutar pelo protagonismo de uma oposição parlamentar sólida é tão fundamental como sempre, mas o confronto social ganha novos contornos, pois nestes quatro anos terá de mobilizar mais base social e militante. Essa será a forma de enfrentar a maioria absoluta que, em Portugal, tem dado sempre origem a governos autoritários com a sociedade e mais vulneráveis aos potentados econômicos.
Haverá quem se apresse a ver nestes resultados uma falência retroativa do “modelo português” (que, sendo português, nunca quis ser modelo), que consistia num acordo parlamentar entre a esquerda e o PS, mas sem participação no governo, dadas as diferenças programáticas e de projeto.
Para que o debate seja rigoroso, é preciso notar que esse acordo parlamentar foi celebrado em 2015 e terminou em 2019. Nas eleições daquele ano, o Bloco manteve os 19 deputados. Mas, no dia seguinte, o Partido Socialista recusou um contrato para mais quatro anos, que o Bloco de Esquerda propôs, e assim acabou com a “geringonça”. É neste quadro, depois de dois anos de oposição, em que o Bloco votou contra dois orçamentos do Estado (o PCP só votou contra o último), dado não permitirem respostas adequadas à emergência social, em particular nos serviços de saúde, que se verifica este confronto e esta derrota eleitoral.
Assim, estas eleições ocorrem depois de dois anos em que o Partido Socialista recusou acordos parlamentares em nome de avanços na saúde, na lei trabalhista ou na resposta à crise, procurando subjugar a esquerda. A intransigência que levou ao chumbo do Orçamento de Estado, e à crise política artificial que originou, foi uma bem-sucedida estratégia para a bipolarização e o “voto útil” contra a direita. A Agência Fitch apressou-se a saudar a vitória do PS e a proclamar que, assim, este partido não cederá à pressão da esquerda para alterar a lei trabalhista ou para ampliar o serviço público de saúde.
À direita, o mapa mudou. É confortável para o Chega e para a IL usarem este impulso na oposição, sem que as suas políticas sejam testadas: a mistura de propaganda e agressividade tem assim um campo aberto. A mudança de orientação e de liderança do PSD será influenciada por este novo mapa, o que torna mais provável uma aproximação a estas extremas-direitas, a velha e a nova. A direita segue para a direita, é a Lei de Trump.
O ciclo da maioria absoluta para os próximos quatro anos é um perigo, sobretudo em duas áreas: nos serviços públicos, considerando o antagonismo entre o Partido Socialista e a escola pública ou o seu empenho em proteger o sistema privado de saúde; e na economia, considerando que o PS blinda os negócios de grandes empresas e usa o sistema fiscal para transferir recursos para o capital, como o poderá voltar a fazer, por exemplo, para compensar o aumento do salário mínimo.
A inflação, mesmo que ainda curta, já corrói os rendimentos do trabalho, em muitos casos também punidos pelo aumento do custo da habitação. Por isso, será mais uma vez na vida social que se jogará a supremacia ou o desgaste desta maioria absoluta. Chegado ao píncaro do seu poder, António Costa tem agora pela frente todas as dificuldades que criou, que ignorou, ou que agigantou. Pelo nosso lado, a esquerda construirá a sua força na energia da sua mobilização, enfrentando a maioria absoluta.
Francisco Louçã foi coordenador do Bloco de esquerda (2005-2012). Autor, entre outros livros, de A maldição de Midas – A cultura do capitalismo tardio (Cotovia).