Esquerda.net, 16 de janeiro de 2021
A admiração pela economia chinesa e pelos seus métodos é um curioso traço do nosso tempo. De Passos Coelho e Portas, que lhe venderam gulosamente alguns tesouros nacionais, a alguns dirigentes de esquerda e a insuspeitos economistas, há uma espécie de consenso sussurrado que vangloria os sucessos chineses como o modelo ou, pelo menos, uma inspiração. Esse modelo prova que um Estado forte e um sistema financeiro controlado pelas autoridades públicas podem reduzir o impacto de crises económicas ou até evitar algumas. Mas também demonstra que, ao colocar este sistema ao serviço da acumulação de capital, se geram contradições insanáveis. Não se pode ter sol na eira e chuva no nabal.
O sucesso
Por maiores que sejam as reticências sobre as suas contas, é indiscutível que a economia da China será a vencedora de 2020. Já no terceiro trimestre a recuperação era forte, com um crescimento de 4,9%, e, enquanto o PIB mundial cairá 5% no ano, a China será a única economia com saldo positivo (o FMI prevê um crescimento de 1,85% em 2020 e de 8% em 2021). A razão mais importante para este relançamento, depois de um confinamento drástico que congelou a produção, foi um investimento massivo: em julho, a formação bruta em capital fixo cresceu 8,3%, em agosto 9,3% e a indústria 5,6%. Foram feitos investimentos gigantescos em logística, infraestruturas e na retoma de atividade das empresas. Por isso, a dívida pública disparou para 285% do PIB (percentagem superior à portuguesa), mas nove décimos são poupança interna e não dependem de moeda estrangeira, pelo que é controlável.
A razão do sucesso é por isso fácil de identificar: é o investimento público que responde a uma recessão, nem há outro recurso. Assim foi sempre, e, ao longo da história recente da China, esse êxito pode ser medido de várias formas. O Banco Mundial indica que em quatro décadas houve 800 milhões de pessoas que saíram da pobreza, as autoridades nacionais anunciaram mesmo o fim da pobreza extrema (quem recebe menos de 2 euros por dia ou 60 por mês).
O mundo dos negócios
No entanto, o autoritarismo social que acompanha este sucesso económico é a razão mais apelativa para a localização de empresas estrangeiras. Elas contam com o Partido Comunista Chinês para impedir a liberdade sindical e a organização dos trabalhadores. Mas há também o mercado gigantesco, mesmo para produtos de luxo: além da Unilever (alimentação), empresas como a Adidas (equipamentos de desporto) e a L’Oréal (cosméticos) fazem mais vendas na China do que nos EUA.
Além disso, a China domina na capacidade inovadora nos mercados que crescem mais depressa: desde 2013 que o seu sistema de vendas online ultrapassou o norte-americano e hoje já tem um volume superior ao dos EUA e Europa juntos. As empresas chinesas criaram plataformas de vendas que multiplicam serviços, jogos, acesso crédito, informação, atividades sociais, entretenimento, o mundo num telemóvel. Essa é, porventura, a inovação económica mais importante da década e só agora começa a ser imitada.
Não há bela sem senão
E depois vêm os problemas. Em novembro passado, dois dias antes da maior operação de venda de ações da história do capitalismo moderno, que era a abertura do capital da Ant, o braço financeiro da Alibaba, de Jack Ma, o processo foi suspenso pelas autoridades chinesas. A empresa foi acusada de práticas monopolistas: a Alibaba forçaria os fornecedores a contratos exclusivos. A imprensa sugeriu que se tratava de uma retaliação contra um discurso recente do empresário, que escarnecia da banca nacional. De qualquer maneira, foi uma reafirmação de poder perante uma parte do sistema financeiro privado que se agiganta. A Ant tem, aliás, um sistema de negócio que só financia por si própria 2% do crédito que concede e vai buscar os outros 98% a essa banca tradicional, jogando sempre pelo seguro. Em todo o caso, a luta pelo controlo do crédito é revelada por esta disputa, e a tensão vai crescer.
O segundo fator de tensão é a resistência social. Há poucos dias, a 19 de dezembro, os trabalhadores da Pegatron, uma fábrica em Xangai, de capital de Taiwan e que produz para a Apple e para a Microsoft, entraram em greve para recusar a sua transferência para uma cidade a 70 quilómetros. Uma publicação especializada de Hong Kong, o “China Labour Bulletin”, regista 503 greves deste tipo nos últimos seis meses. Sabendo o valor que produzem, os trabalhadores chineses não parecem dispostos a festejar que o país tenha salários reprimidos e um nível de pobreza nos 60 euros por mês. E essa exigência de democracia laboral é a outra face do modelo.
Artigo originalmente publicado no jornal “Expresso” a 8 de janeiro de 2021.