O ultraparasitário sistema financeiro mundial conta com uma proteção inabalável
François Chesnais, A l’Encontre / Viento Sur, julho de 2020. Tradução: Maria Lima
Ao longo da evolução da pandemia na Europa, o sistema financeiro fez-se pouco comentar nos meios de comunicação. Foi apenas no fim de fevereiro e início de março que uma queda muito forte das bolsas se tornou manchete nos jornais e noticiários de tevê. Efetivamente, entre 20 de fevereiro e 9 de março, os índices da bolsa despencaram entre 23 e 30%, segundo os mercados financeiros. Agora, sabemos que foi graças à intervenção do FED (banco central dos Estados Unidos), que não falha em oferecer seu apoio aos investidores financeiros. Em 12 de junho, o FED baixou suas taxas de juros a 0% e anunciou a compra ilimitada de bônus do Tesouro. [1] Em 18 de junho, o Banco Central Europeu (BCE) anunciou, na sequência, que emprestaria aos bancos da Zona do Euro 1.31 bilhões de euros a uma taxa de -1%. Em abril de 2019, concluí desta forma um artigo para À l’Encontre: “A questão política que poderá se colocar em um ou mais países europeus, segundo as circunstâncias, é um novo resgate dos bancos pelo Estado e a consequente ‘socialização das perdas’ às custas dos/as assalariados/as.” [2]
Aqui estamos. O periódico econômico Les Echos sublinha que, no que concerne o BCE, o montante é recorde para um programa conhecido como TLTRO (Targeted Long Term Refinancing Operation): “A oferta é especialmente atrativa. Aos estabelecimentos que subscreveram esses empréstimos se aplicará uma taxa de juros negativa. Em outras palavras, o BCE vai pagar os bancos para que eles emprestem a seus clientes. E o nível dessa remuneração, -1%, é totalmente inédito. Para isso, os bancos devem manter seus créditos à economia nos níveis anteriores à pandemia. Uma condição que deveria ser facilmente cumprida graças às garantias oferecidas pelos governos para permitir às empresas sobreviver à crise.”
O objetivo declarado é reforçar a capacidade de empréstimo dos bancos, notadamente às pequenas e médias empresas (PME), mas “diversos estabelecimentos poderiam optar por investir, parcialmente, esses fundos a -1% em títulos do Estado que ofereçam um rendimento positivo, como os da Itália.” [3] Em suma, trata-se de restabelecer a rentabilidade dos bancos e sua capacidade de distribuir dividendos a seus acionistas.
Mas as coisas não são assim tão simples. Ao contrário, o relatório trimestral do Fundo Monetário Internacional (FMI) sobre a estabilidade financeira mundial, o Global Financial Stability Report, de abril de 2020, e o artigo postado por economistas do FMI em seu blog dão uma ideia da nova situação revelada pela pandemia, com instituições – bancos centrais e FMI – confrontadas a uma situação inédita de ingovernabilidade e de dissociação entre os mercados e a ‘economia real’, a começar pelas bolsas. As duas principais tendências sistêmicas de longo prazo foram examinadas em artigos anteriores e ajudarão a compreender suas origens.
O contexto de longo prazo: uma acumulação financeira sem fim e uma baixa contínua das taxas de juros
A primeira tendência é o movimento mundial que viu os ativos financeiros globais crescerem a um ritmo bem superior ao PIB mundial.
Eu falei sobre isso em numerosos artigos publicados em À l’Encontre. Essa tendência resulta do mecanismo específico de acumulação do capital-dinheiro/capital-de empréstimo em oposição à “acumulação verdadeira de capital” que Marx estuda nos três capítulos intitulados “capital-dinheiro e capital real” da Seção 5 do Livro III. [4] No momento em que Marx o estuda, o movimento é ligado ao ciclo econômico: uma parte do capital acumulado pelos capitalistas industriais na fase de expansão vai, durante o período de crise e de recessão, valorizar-se como capital de empréstimo. Marx adiciona, um pouco laconicamente, que a acumulação de capital dinheiro pode ser “o resultado de fenômenos que acompanham a acumulação real, mas que diferem dela totalmente”. [5]
O que era, no século XIX, um fato conjuntural, tornou-se, no caso do capitalismo contemporâneo, um processo sistêmico, primeiramente nascido das relações imperialistas “Norte-Sul”, depois de mecanismos institucionais de transformação dos salários em capital-dinheiro por meio dos sistemas de aposentadoria por capitalização, e, em seguida, alimentado pela emissão de títulos de dívida privada e, cada vez mais, de dívida pública nos países capitalistas centrais. Estamos diante de direitos de saque virtuais sobre a mais-valia atual e a futura, diretos no caso das ações e obrigações emitidas pelas empresas, e indiretos no caso dos títulos da dívida pública. Eles representam um capital para aqueles que os detêm e esperam deles um rendimento, mas são capital fictício sob o ângulo do movimento do capital como um todo. [6]
O McKinsey Global Institute calculou que as ações medidas por sua capitalização na bolsa, os títulos de dívida privada e pública e os depósitos bancários passaram de 100% a 200% do PIB mundial entre 1990 e a crise econômico-financeira mundial de 2007-2009.
Figura 1 – Crescimento dos ativos financeiros globais e do PIB mundial 1990-2010 (eixo da esquerda e em vermelho os ativos financeiros globais em % do PIB mundial; eixo da direita, seu montante em trilhões de dólares nas taxas de câmbio de 2011). Fonte: McKinsey Global Institute, Financial Globalization, Retreat or Reset? 2013
O Instituto McKinsey parou de publicar suas estimativas. Por outro lado, o sítio Visual Capitalist publicou, em maio, números que mostram que o movimento continuou. [7] As ações medidas por sua capitalização na bolsa (89,5 trilhões de dólares) e os títulos da dívida pública e privada (253 trilhões de dólares, dos quais 27,4% de dívida dos Estados) atingem um total de 342,5 trilhões de dólares, 95,5 trilhões em depósitos bancários (sem contar os 35,2 trilhões de agregado monetário estrito), ou seja, um total de 438,2 trilhões de dólares. Note-se que, em 2012, isso correspondia a 225 trilhões de dólares – um crescimento de 98%, portanto. Acresce-se a isso 280,6 trilhões de dólares em ativos imobiliários.
A segunda tendência de longo prazo é a baixa contínua das taxas de juros.
Figura 2 – Estados Unidos: taxas de juros sobre os títulos do Tesouro em dez anos, a preços constantes. Fonte: Federal Reserve Bank of Saint-Louis Economic Research
As políticas (o termo ‘não ortodoxas’, utilizado durante longo tempo, progressivamente desapareceu dos comentários) de criação monetária massiva e de apoio permanente aos bancos seguidas pelo FED e demais bancos centrais contribuíram para essa baixa. O departamento de estudos do grupo Natixis estimou, inclusive, que essas políticas explicariam os dois terços da baixa das taxas a partir de 2009. [8] Mas os economistas do BPI (Banco de Pagamentos Internacionais) da Basileia (Suíça) insistiram, categoricamente, no fato de que isso não era suficiente para explicar a queda, já que esta havia começado em 1995. Nessa baixa é impossível, dizem eles, “distinguir o que é secular e o que é cíclico, e no cíclico a importância respectiva dos fatores monetários e não monetários”. [9] Efetivamente, as principais causas da prolongada baixa das taxas sobre os mercados de títulos da dívida se encontram na partilha dos ganhos de produtividade comandada pela relação entre capital e trabalho, na vertente da renovação tecnológica e no bloqueio dos mecanismos de acumulação que eles criam. O crescimento da mais-valia atual e futura dos direitos de saque virtuais, constitutivos do capital fictício, desacelera. A insuficiência de oportunidades de investimentos rentáveis faz com que a oferta de capital seja superior à demanda. [10] As taxas só podem baixar. Em resposta, os investidores aumentaram, ano após ano, o que chamamos, a partir do início dos anos 2010, o apetite para o risco ou o apetite do risco (risk appetite) e se voltaram para as oportunidades de microlucro oferecidas pela inteligência artificial.
A irrupção do big data e dos algoritmos
As transações em alta frequência (high-frequency trading – HFT-, em inglês) foram a primeira modalidade de trading automático baseado na decisão estatística, que administra o big data dos dados financeiros. Esses operadores de mercado virtuais utilizam algoritmos complexos para analisar, simultaneamente, vários mercados e executar ordens em função de sua condição. Enquanto a velocidade de transação do HFT era de 20 milissegundos no início da década de 2010, ela passou a 113 microssegundos em 2011.
Os não especialistas dos mercados financeiros descobriram o HFT em 6 de maio de 2010. Enquanto os mercados europeus tinham aberto em leve recuo em razão de inquietudes em Wall Street provenientes da Grécia sem sinal precursor nem razão aparente, o índice Dow Jones perdeu quase 10% em alguns minutos. [11] Após pesquisa, as autoridades de regulação americanas (SEC e CFTC) impugnaram a técnica de compra e venda de ativos baseadas em algoritmos. Estudando os contratos ditos ‘e-mini’ do S&P 500, os pesquisadores constataram que os traders HFT tiveram um lucro médio de 1,92 dólares para cada transação efetuada para grandes investidores institucionais e uma média de 3,49 dólares para aquelas efetuadas por investidores nas transações no varejo. [12]
Aos HFT seguiu-se o que chamamos de «robo-investing», que representava, em 2019, de acordo com The Economist [13], 35% da capitalização financeira em Wall Street, 60% dos ativos dos investidores institucionais e 60% das compras e vendas de títulos nos mercados americanos. Essa gestão assume diferentes formas. Nos mercados de ações, a mais frequente é aquela do ETF (exchange-traded fund). Programado para seguir as flutuações de um índice de referência, sem tentar obter uma performance melhor que a média do mercado, eles são descritos como de ‘gestão passiva’. É, particularmente, na gestão das carteiras privadas que se encontram as plataformas de investimento on line inteiramente automatizadas, denominadas ‘conselheiros-robôs’. Os fundos negociados em bolsa (exchange-traded funds) rastreiam, automaticamente, os índices de ações e de obrigações. Em outubro de 2019, esses veículos administravam 4,3 trilhões de dólares estadunidenses, ultrapassando, pela primeira vez, as somas geridas por seres humanos. Um programa denominado start-beta isola uma característica estatística – a volatilidade, por exemplo – e se concentra sobre os títulos que a apresentam. Como os algoritmos demonstraram sua utilidade através das ações e dos produtos derivados, eles estão sendo desenvolvidos, também, nos mercados da dívida.
Os gestores de fundos leem relatórios e encontram-se com empresas em virtude de leis estritas sobre o delito de abuso de informação privilegiada e de divulgação de informação, concebidas para controlar o que é de domínio público e garantir que todos acedam por igual a essas informações. Atualmente, uma acumulação quase infinita de novos dados e o constante aumento do poder dos algoritmos criam novas maneiras de avaliar os investimentos. Eles possuem informações mais atualizadas sobre as empresas do que os próprios conselhos de administração dessas. Até o momento, o aumento do poder dos computadores democratizou as finanças, reduzindo seus custos. Um FNB típico fatura 0,1% por ano, comparado a, talvez, 1%, para um fundo ativo. Podem-se comprar ETFs por telefone. Uma guerra dos preços em curso significa que o custo das transações desmoronou e que o conjunto dos mercados está mais líquido do que nunca. [14]
A revista The Economist se pergunta se os ETF são uma ameaça para a estabilidade financeira. [15] “Os computadores podem distorcer os preços dos ativos, já que muitos algoritmos se aplicam, simultaneamente, aos valores com uma determinada característica e, depois, os abandonam repentinamente. Os reguladores receiam que a liquidez se evapore à medida que os mercados caem. Isso é esquecer que os humanos são perfeitamente capazes de causar danos também, e que os computadores podem ajudar a gerir os riscos. No entanto, uma série de “flash-crashes” e de incidentes bizarros se produziram, inclusive um crash da libra esterlina, em outubro de 2016, e uma queda dos preços da dívida em dezembro de 2018. Esses incidentes poderiam tornar-se mais sérios e frequentes à medida em que os computadores se tornam mais potentes.”
O estado atual do sistema financeiro mundial
Em abril, o FMI publicou seu primeiro relatório trimestral do ano de 2020, o Global Financial Stability Report. O diretor do departamento dos mercados monetários e de capitais antecipou, em seu blog, as grandes linhas do relatório de junho. [16] Ele recordou que, se o sistema financeiro só se expôs ao grande público no início de março, a situação foi muito tensa durante várias semanas. “Em meados de fevereiro, quando os investidores começaram a temer que a epidemia se transformasse em pandemia mundial, os preços das ações caíram bruscamente com relação aos níveis excessivos que elas haviam atingido. Nos mercados de crédito, as margens de crédito dispararam, especialmente nos segmentos de risco, como os bônus de alto rendimento, os empréstimos alavancados e a dívida privada, nos quais as emissões praticamente pararam. Os preços do petróleo desmoronaram em função do enfraquecimento da demanda mundial e da ausência de um acordo entre os países da OPEP+ sobre baixas da produção, o que reduziu, ainda mais, o apetite para o risco. Essa volatilidade dos mercados provocou uma corrida para os ativos de qualidade e o rendimento das ações de refúgio caiu bruscamente.” [17] Os países emergentes experimentaram uma terrível fuga de capitais.
Figura 3. Países emergentes: uma terrível fuga de capitais. Fonte: Financial Times - https://www.ft.com/content/e3634816-66bd-4355-bc71-156016761dab
Foram, principalmente, países africanos muito vulneráveis que testemunharam a mais forte inversão de fluxos de investimento de portfólio já registrado por países emergentes, em montante de dólares e em porcentagem de seu PIB. A velocidade com a qual se movem os capitais especulativos traduz o medo dos fundos especulativos face à situação.
O FMI felicita-se de que “os bancos centrais, em seu conjunto, se mobilizaram para evitar que a crise sanitária se transformasse em furacão financeiro. Seja pela redução de suas taxas de juros, pela extensão de seu programa de compras de ativos financeiros, pela implementação de linhas de intercâmbio (swaps) de divisas entre eles ou a concessão de facilidades em matéria de crédito e de liquidez”. A configuração que os economistas da corrente hegemônica (mainstream) nomeiam, contraintuitivamente, de risco moral (moral hazard), quando uma entidade (neste caso, um banco ou um fundo de pensão) é incitada a aumentar sua exposição ao risco porque ela sabe que não vai suportar todos os custos desse risco” remonta à doutrina do too big to fail, (“grande demais para quebrar”) ou seja, ao resgate do Continental Illinois National Bank em 1983 [18], que não parou de se difundir desde então, sendo o banco Lehman Brothers, em setembro de 2008, a única exceção. O FMI reconhece que, em 2020, o risco moral desempenhou plenamente seu papel e adverte que “a utilização sem precedentes de ferramentas não convencionais, sem sombra de dúvidas, amortizou o golpe desferido na economia mundial pela pandemia e reduziu o perigo imediato para o sistema financeiro mundial, o que era seu objetivo previsto. De toda forma, os responsáveis políticos devem estar atentos às possíveis consequências imprevistas, como o crescimento contínuo de vulnerabilidades financeiras em um ambiente de condições financeiras fáceis. A expectativa de um apoio contínuo da parte dos bancos centrais poderia transformar as já dilatadas valorizações de ativos em vulnerabilidades, especialmente em um contexto no qual os sistemas financeiros e setores privados esgotaram suas reservas durante a pandemia”.
Os bancos centrais são tão bem-vindos no socorro aos bancos, fundos de pensão e outros investidores que, desde a queda do fim de fevereiro, o preço dos ativos de risco se recuperou, começando pelas ações. Os mercados financeiros estão registrando uma dissociação sem precedentes entre a evolução dos preços e a realidade da atividade econômica, marcada pela queda do PIB e o aumento rápido do desemprego. É testemunha disso a subida radical dos índices financeiros estadunidenses e a queda da confiança dos consumidores, dois indicadores que evoluem, historicamente, de maneira paralela, “o que levanta questões sobre a durabilidade da recuperação, se não fosse pelo empurrão do banco central”. [19]
Figura 4 – Estados Unidos: os caminhos se separam, as bolsas e a confiança não estão mais sincronizados
A dissociação entre a situação econômica e o nível das ações vale para outros países. Na França, por exemplo, enquanto o PIB já caiu 8% e o desemprego atingiu seu mais alto nível desde 1996, com a destruição de 500 mil postos de trabalho em maio, o CAC 40 (índice da bolsa de valores) recuperou-se de 3.755 pontos, em 18 de março, para 5.198, em 6 de junho, ou seja, uma recuperação de 864 pontos relativamente a 20 de fevereiro.
O tratamento da mudança climática pelo FMI
No relatório de abril, há um capítulo que não tem nada a ver com a pandemia. Ele é consagrado à mudança climática. [20] Redigido por demanda do Network for Greening the Financial System [21], ele mostra de maneira espetacular a solicitude do FMI para com os investidores. Vou citá-lo longamente então. O FMI nota que, no que diz respeito “às tendências climáticas, as autoridades da estabilidade financeira receiam que o sistema financeiro não esteja preparado para fazer frente a esse aumento potencialmente grande do risco físico, nem ao risco de transição devido às mudanças políticas, tecnológicas, jurídicas e do mercado que se produzirão no curso da passagem a uma economia de baixo carbono”. E prossegue: “Primeiramente, um risco climático pode transformar-se em catástrofe se ele acontece em uma zona onde a exposição e a vulnerabilidade são elevadas. Uma tal catástrofe atinge os lares, as empresas não financeiras e o setor público pela perda de capital físico e humano, provocando perturbações econômicas que podem ser significativas. As empresas do setor financeiro estão expostas a esses choques através de suas atividades de subscrição (seguradoras), de suas atividades de empréstimo (principalmente bancos) e de suas carteiras de valores afetadas (todas as empresas financeiras).
As instituições financeiras, por sua vez, poderiam igualmente estar expostas a riscos operacionais (nos casos em que suas estruturas, seus sistemas e seu pessoal são diretamente afetados por um evento) ou a um risco de liquidez (se um desastre provoca saques importantes dos depósitos dos clientes). As seguradoras cumprem um papel particular na absorção dos choques, concentrando o choque no setor dos seguros e reduzindo seu impacto em outros agentes econômicos. Os governos costumam desempenhar uma importante função de amortecimento, fornecendo certas formas de seguro, assim como socorros e apoio na sequência de uma catástrofe. A pressão exercida sobre as contas governamentais depois de uma catástrofe poderia ter repercussões sobre a estabilidade financeira, considerando a ligação estreita entre os governos e os bancos em muitas economias. (...) Grandes catástrofes poderiam expor as instituições financeiras aos riscos do mercado se elas levam a uma forte queda do valor das ações devido à destruição generalizada dos ativos e da capacidade de produção das empresas ou de uma baixa da demanda por seus produtos”.
Ingovernabilidade de uma parte do sistema financeiro mundial e os mercados “não correlacionados”
O artigo publicado no blog do FMI é surpreendente, porque admite abertamente a “existência de um sistema do governança enredado em suas próprias contradições”. Com efeito, se “os bancos foram obrigados, com o acordo internacional conhecido como Basileia III, a manter coeficientes de liquidez, requisitos de capital e mesmo um controle de seus empréstimos alavancados, este fato deslocou o mercado dos empréstimos alavancados ao setor não regulamentado, permitiu que prosperassem as CLO (Collateralized loan obligation: títulos de dívida emitidos por um veículo de titularização, que é a transformação dos créditos em poder de um banco em títulos negociáveis. N.T.) e estimulou o volume de negócios dos fundos de investimento altamente especulativos. As fronteiras do sistema financeiro paralelo (aquele do shadow banking) estão ainda mais difíceis de rastrear do que em 2008”.
O capítulo 2 do Global Financial Report descreve, na medida do possível, “o ecossistema financeiro dos mercados de alto risco de crédito às empresas, no qual o papel das instituições financeiras não bancárias cresceu e o sistema se tornou mais complexo e opaco”. Para dar um gostinho, eu deixo em inglês o primeiro subtítulo, “Rapid Growth of Risky Credit Has Raised Red Flags” (“O rápido crescimento do crédito de risco acionou sinais de alerta”). As vulnerabilidades potenciais compreendem “a qualidade de crédito mais fraca dos devedores, normas de subscrição mais flexíveis, riscos de liquidez nos fundos de investimento e uma interconexão acrescida. Se, por um lado, os bancos se tornaram mais seguros, por outro lado, não conhecemos as ligações entre os investidores institucionais e o setor bancário e o risco de os primeiros infligirem ao segundo perdas em caso de perturbações no mercado”. Os bancos centrais dispõem de “poucos instrumentos para enfrentar os riscos de crédito e de liquidez nos mercados globais de capitais”, ao passo que o “apetite pelo risco se estendeu até aos mercados emergentes. As consolidações de carteira estabilizaram-se e alguns países voltaram a registrar entradas modestas”.
A conclusão figura nas “Perspectivas da economia mundial” (PEM), publicadas no início de julho. Lê-se aí, que “segundo as novas projeções, o PIB mundial deveria contrair-se 4,9% em 2020, ou seja, 1,9% a mais do que o previsto no PEM de abril de 2020. A pandemia de COVID-19 teve um impacto negativo maior do que o previsto na atividade ao longo do primeiro semestre de 2020, e a retomada deverá ser mais lenta do que se esperava. Em 2021, o crescimento mundial deveria ser de 5,4%. Globalmente, o PIB de 2021 deveria, então, situar-se aproximadamente 6,5% abaixo do nível projetado em janeiro de 2020, antes da pandemia de COVID-19. O impacto negativo sobre as famílias de baixa renda é particularmente severo, e poderia comprometer os progressos consideráveis alcançados em matéria de redução da extrema pobreza no mundo desde os anos 1990”. E bate o martelo: “A recente melhora nos mercados financeiros parece estar dissociada da evolução das perspectivas econômicas, como indicado na atualização do ‘Relatório sobre a estabilidade financeira no mundo (GFSR)’. [22]
Notas
1) https://www.federalreserve.gov/monetarypolicy/2020-06-mpr-part2.htm
4) Marx, Le Capital, livro III, Editions Sociales t.8, p. 139.
5) Ibid., p. 168.
6) Para uma apresentação mais longa, vide meu artigo de 26 de abril de 2019, “La théorie du capital de placement financier et les points du système financier mondial où se prépare la crise à venir”, em http://alencontre.org/economie/la-theorie-du-capital-de-placement-financier-et-les-points-du-systeme-financier-mondial-ou-se-prepare-la-crise-a-venir.html
7) https://www.visualcapitalist.com/all-of-the-worlds-money-and-markets-in-one-visualization-2020/
9) Peter Hördahl, Jhuvesh Sobrun and Philip Turner, Low long–term interest rates as a global phenomenon, BIS Working paper n° 574 August 2016.
10) Esse uso da oferta e da demanda é legítimo no plano da teoria. No capítulo XXII do Livro III, que trata da determinação do nível da taxa de juros, Marx escreve que “o capital que produz juros, ainda que seja uma categoria econômica absolutamente diferente da mercadoria, converte-se, como vimos, em uma mercadoria sui generis; em consequência, os juros convertem-se no preço que é fixado, em cada caso, pela oferta e pela demanda, exatamente como o preço de mercado de una mercadoria comum. (….) A taxa geral de lucro é determinada por causas muito distintas e muito mais complexas que as que determinam a taxa de juros do mercado, que é estabelecido direta e imediatamente pela relação entre oferta e demanda”. O Capital, livro III, Editions Sociales tomo 7, p. 33.
11) https://en.wikipedia.org/wiki/High-frequency_trading#May_6,_2010_Flash_Crash
12) https://sevenpillarsinstitute.org/high-frequency-trading-1-empirical-assessment/ 13 mars 2020
13) https://www.economist.com/leaders/2019/10/03/the-rise-of-the-financial-machines
15) https://www.economist.com/leaders/2019/10/03/the-rise-of-the-financial-machines
16) https://blogs.imf.org/2020/06/25/financial-conditions-have-eased-but-insolvencies-loom-large/
17) Executive summary https://www.imf.org/en/Publications/GFSR/Issues/2020/04/14/global-financial-stability-report-april-2020https://www.imf.org/en/Publications/GFSR/Issues/2020/04/14/global-financial-stability-report-april-2020
18) https://en.wikipedia.org/wiki/Too_big_to_fail#Moral_hazard
19) https://blogs.imf.org/2020/06/25/financial-conditions-have-eased-but-insolvencies-loom-large/
20) https://www.imf.org/en/Publications/GFSR/Issues/2020/04/14/global-financial-stability-report-april-2020, capítulo 5.
21) O Network for Greening the Financial System é um grupo de bancos centrais e de autoridades de supervisão. Pode-se perceber, consultando-se a internet, que o Bundesbank alemão e o Banco da França apresentam o grupo de maneiras bem distintas. Para o primeiro, o grupo expressou sua preocupação com o fato de que os riscos financeiros associados à mudança climática não estejam plenamente refletidos nas avaliações de ativos e pediu que esses riscos fossem integrados na vigilância da estabilidade financeira (https://www.bundesbank.de/ Bundesbank/green-finance/network-for-greening-the- système financier-808978). Para o segundo, o objetivo do grupo é ajudar a fortalecer a resposta mundial necessária para alcançar os objetivos do Acordo de Paris e reforçar o papel do sistema financeiro na gestão do risco e na mobilização de capitais para investimentos ecológicos e com baixa emissão de carbono, no contexto mais amplo do desenvolvimento ecologicamente sustentável (https://www.banque-france.fr/en/financial-stability/international-role/network-greening-financial-system).