Entrevista com Frédéric Keck, antropólogo de biossegurança aplicadas a seres humanos e animais, sobre os desastres sanitários e ecológico
As medidas de quarentena, contenção e vigilância chegam sempre muito tarde. Eles apenas mitigam os efeitos já ativos e invasivos, mas não agem sobre as causas do problema. Covid-19 é, lembremos, uma zoonose: uma doença que é transmitida de animais para humanos. É precisamente na nossa relação com os animais que devemos procurar a razão de muitas crises sanitárias recentes: a encefalopatia espongiforme bovina, a síndrome respiratória aguda grave (SARS), as gripes aviária e suína. Por isso entrevistamos Frédéric Keck, antropólogo que trabalha sobre as normas de “biossegurança” aplicadas a seres humanos e animais e as previsão que elas criam em relação aos desastres sanitários e ecológicos.
Você se distinguiu através de suas pesquisas em antropologia e etnologia sobre doenças zoonóticas (de origem animal) e pandemias. Como você vivenciou pessoalmente a pandemia do coronavírus, desde janeiro até as medidas de contenção anunciadas nos últimos dias?
No dia 1 de janeiro, enquanto comemorávamos o Ano Novo, um colega britânico que trabalha comigo na antropologia das epidemias enviou-me uma mensagem de texto: “Você viu aqueles casos em Wuhan? Isto pode ser o início da pandemia. “Não pude acreditar, porque recebo este tipo de mensagem sempre que há um vírus emergente (a gripe suína H1N1 em 2009, que foi muito menos letal do que o esperado apesar de ser altamente contagiosa, o MERS-CoV em 2012, que permaneceu limitado à Península Arábica, onde é transmitido por camelos, e à Coreia do Sul). Desta vez, no entanto, o cenário pandêmico que enquadrou a propagação da SARS na Ásia e em Toronto em 2003 está se tornando realidade. Pensei na análise de Henri Bergson sobre a declaração de guerra de 1914: li tantas histórias sobre este cenário durante os últimos quinze anos que, quando se tornou realidade, senti que a pandemia sempre esteve lá, como uma presença familiar. É neste sentido que o virtual se torna real.
Parece que estamos para viver um momento histórico de todos os pontos de vista (contágio global, anulação da vida cotidiana, possibilidade de problemas econômicos e sociais). O futuro parece suspenso. É essa a sua impressão?
Sim, acredito que a comparação com 1914 é correta, embora ache que não se deve exagerar com as declarações de guerra e posturas marciais. Em 1914, a França sabia que o conflito econômico e militar em que estava envolvida com a Alemanha desde 1870 – e de fato desde a Revolução Francesa, entendida pelos alemães como uma revelação e uma ameaça – iria desencadear um conflito mundial, e envolveu-se nele num estado de “sonambulismo”. Hoje, os Estados Unidos, que sabiam que a competição com a China seria tanto econômica como sanitária desde 2003, estão engajados nesta mobilização de forma dispersa, e a China aproveitou a oportunidade da SARS para pôr fim a dois séculos de humilhação por parte do Ocidente, equipando-se com hospitais de alto desempenho e biotecnologias de ponta. Não podemos fazer teorias de conspiração, mas a China está guerra contra nós com os vírus. Ou melhor: a China aproveitou a oportunidade de um vírus de morcego que surgiu no seu território para transformar os cenários pandêmicos, construídos de acordo com ela para a humilhar, em ferramentas para humilhar o Ocidente.
A pandemia de coronavírus parece diferente de outras pandemias que você estudou?
A contagiosidade deste novo coronavírus é surpreendente e permanece um misterio, enquanto sua letalidade é baixa e seu DNA é estável (os coronavírus, ao contrário dos vírus da gripe, sofrem pouca mutação porque são muito maiores). O fato deste vírus se poder propagar assintomático durante tanto tempo (talvez semanas) é muito diferente da SARS, que causava sintomas respiratórios após 48 horas. Neste sentido, é o candidato perfeito para desencadear o cenário pandêmico.
As hipóteses iniciais sugerem que o Covid-19 foi transmitido aos humanos através de um pangolim ou de um morcego. Quais são as características das doenças de origem animal, e como são transmitidas? O que explica por que elas possam assumir um caráter epidêmico ou pandêmico?
As doenças de origem animal (ou zoonoses) sofrem mutação entre os animais antes de serem transmitidas ao ser humano, desencadeando fortes patologias, pois não temos imunidade contra elas. Isso explica a mobilização das autoridades sanitárias internacionais contra essas doenças nos últimos trinta anos (especialmente desde o fim da Guerra Fria, que viu a ecologia das doenças infecciosas emergentes se cruzar com o medo do bioterrorismo). As aves são o reservatório dos vírus da gripe porque o espalham através dos seus deslocamentos (especialmente os patos, que são assintomáticos aos vírus da gripe e “largam” eles durante o voo). Os morcegos são um reservatório de muitos vírus (Raiva, Hendra, Nipa, SRA-Cov, MERS-Cov, SRA-Cov2) porque vivem em colônias onde muitas espécies coexistem, e porque desenvolveram um sistema imunológico muito eficiente para voar ao mesmo tempo que continuam “perto” de nós como mamíferos – com o desmatamento levando-os a se aproximarem das cidades.
Você diz em seu próximo livro, Les sentinelles des pandémies, a ser publicado pela Zones Sensibles, que a atual pandemia do coronavírus (Covid-19) está nos levando de volta ao limiar da domesticação, onde a relação entre humanos e animais não humanos podia ser reproduzida. O que quer dizer com isto? A pandemia que estamos vivendo está relacionada à forma moderna de relacionamento entre humanos e animais não humanos?
Esta pandemia começou com um grupo de casos de pneumonia atípica num mercado animal em Wuhan, em dezembro de 2019. O novo coronavírus que está se espalhando entre humanos ao redor do mundo é muito semelhante a um vírus de morcego que foi sequenciado em Wuhan em 2018. Não se sabe exatamente o que estava sendo vendido neste mercado, mas é provável que os comerciantes de pangolins tenham transmitido este vírus do morcego – embora o contacto ainda não esteja comprovado como foi com os civetas que transmitiram a SARS na região de Cantão em 2003. A saúde global depende, portanto, de alguns gestos aparentemente arcaicos em um mercado na China central. Precisamos compreender o que se passa nestes mercados de animais, pois os animais selvagens e domésticos, os produtos da caça e os produtos animais são mistos: há pangolins criados pelas suas virtudes na medicina tradicional chinesa, mas eles são contrabandeados à medida que desaparecem na natureza. Isto está de acordo com grandes histórias como a de Jared Diamond, que explica as novas doenças infecciosas por uma grande transformação na relação entre humanos e animais desde a revolução Neolítica, após a qual espécies domesticadas por humanos lhes transmitiram doenças devido à sua maior proximidade. Pensa-se que a revolução pecuária dos anos 60 tenha tido um efeito semelhante na produção de novas doenças.
Você distingue duas formas de controlar as incertezas sanitárias nas relações entre humanos e não-humanos: “técnicas de caça de preparação” e “técnicas pastorais de prevenção”. Pode explicar esta distinção, e por que é que a sua adesão parece ir mais para as técnicas de caça?
Propus esta distinção para esclarecer os debates sobre o princípio da precaução (forjado na Alemanha nos anos 70 e introduzido na Constituição francesa em 2005), que me parecem confundir estas duas técnicas de gestão de risco, a primeira das quais foi desenvolvida há cerca de um século e a segunda há cerca de dois séculos. Como este é um período de tempo muito curto na história da humanidade, proponho-me a entender como funcionam com base em técnicas que os humanos desenvolveram durante um longo período de tempo para controlar as incertezas de suas relações com os animais na caça (a presa consentirá em ser morta?) e no pastoreio (o rebanho aceitará que um de seus membros seja sacrificado pelo bem-estar coletivo?) Com base nas análises de antropólogos e historiadores, eu suponho que a preparação repousa em uma capacidade humana, particularmente desenvolvida pelos xamãs da Sibéria e da Amazônia, de perceber entidades invisíveis que circulam nas fronteiras entre as espécies (o que Philippe Descola chama de animismo) e a prevenção de uma capacidade humana, particularmente desenvolvido pelos Impérios e Estados modernos, para pôr ordem em tempos de crise, classificando os indivíduos em categorias que excluem a proliferação invasiva (o que Philippe Descola chama de analogia). Em meu livro, eu desenvolvo principalmente as técnicas de preparação cinegética (da caça) postas em prática pelos virologistas quando eles rastream patógenos que são transmitidos dos animais para os humanos, porque elas têm sido menos enfatizadas do que as técnicas pastoris dos epidemiologistas que constroem modelos para prever o efeito desses patógenos em uma população – ao passo que são mais relevantes para pensar sobre as questões ecológicas levantadas pelas pandemias. Estas tensões têm sido observadas entre o trabalho de virologistas publicados no início da epidemia de Covid-19 para rastrear suas origens animais e o trabalho de epidemiologistas publicado posteriormente para justificar a contenção.
Em que sentido você está dizendo, de certa forma contra-intuitivamente para os ecologistas, que a epidemia do coronavírus (Covid-19) é uma questão ecológica?
A ecologia das doenças infecciosas foi inventada na década de 1970 por biólogos como o australiano de origem britânica Frank Macfarlane Burnet e o americano de origem francesa René Dubos. Ela alerta para o surgimento de novas doenças infecciosas devido às transformações que a espécie humana impõe ao seu ambiente: pecuária industrial, desmatamento, empobrecimento do solo – ainda não estávamos falando do aquecimento global, que causa a pandemia de Zika ou dengue, levando as populações de mosquitos a se deslocarem para fora de seus habitats. Estudei como esses alertas foram traduzidos nos piores cenários por virologistas e epidemiologistas durante algumas crises na China. Ainda precisamos compreender como a atual pandemia não só força a humanidade a mudar seu modo de vida, retardando o movimento de pessoas e bens, porém, mais importante ainda, acelera os piores cenários que foram construídos a partir de outros fenômenos ecológicos, que assustam os governos. Pode-se dizer que as novas epidemias nos obrigam a fazer coletivamente as perguntas ecológicas que poderiam parecer reservadas a uma minoria.
As técnicas contemporâneas de preparação para desastres são semelhantes no caso de uma epidemia e no campo do aquecimento global, da extinção de espécies etc.?
A temporalidade não é a mesma: a epidemia obriga-nos a agir em muito pouco tempo, porque se desenvolve ao longo de um ano com possibilidades reais de intervenção. A extinção de espécies e o aquecimento global ocorrem em períodos de tempo muito mais longos, mas também oferecem oportunidades de intervenção. Minha hipótese é que a “galinha com gripe” ou o “morcego com coronavírus” são bons operadores (eu assumo esta noção de Claude Lévi-Strauss em O pensamento selvagem) para pensar sobre questões ecológicas em várias escalas temporais. As técnicas de preparação para desastres não são semelhantes nestas diferentes temporalidades, mas estes operadores permitem-nos compará-las em contextos locais onde estas temporalidades transformam as relações entre humanos e não-humanos (para usar os termos de Philippe Descola).
Quais as “lições” de epidemias anteriores que podem ser úteis para nós na pandemia do coronavírus?
A China fez da SARS um episódio fundador, como a Revolução Francesa ou o Caso Dreyfus é para nós: são histórias de heróis que se sacrificam, de ministros corruptos que se demitem, de cientistas que fazem triunfar a verdade. Não compreendemos este episódio na França porque só percebemos os ecos abafados da onda de calor e da crise do chikungunya. Nós próprios vamos ter de inventar histórias para dar sentido à provação sanitária, econômica e militar que se avizinha. Mas também temos recursos que estão menos disponíveis no espaço chinês, incluindo o fato de que os sentinelas que denunciam as epidemias são protegidos. Talvez o “sacrifício” de Li Wenliang, o jovem oftalmologista que morreu de Covid-19 em fevereiro, após soar o alarme em dezembro e tratar de pacientes em janeiro, seja um ponto de inflexão na defesa dos sentinelas na China. Talvez esta pandemia seja uma oportunidade de trocar nossas histórias fundadoras para construirmos juntos uma política ecológica adaptada às novas doenças, por exemplo, cruzando nossa tradição liberal de destruição ambiental com uma tradição chinesa mais atenta aos ciclos da natureza.
Porque você acha que a OMS foi tão relutante em falar de uma pandemia de coronavírus durante tanto tempo quando concordou em fazê-lo mais cedo para a SARS?
Em 2003, a OMS aproveitou a oportunidade da SARS para se impor na cena internacional quando a ONU tinha sido humilhada pela intervenção unilateral dos EUA no Iraque. Fê-lo aproveitando um período de transição política durante o qual o governo chinês não pôde colaborar com ela – percebida como uma humilhação que prolongava há dois séculos, durante os quais o Ocidente tinha dado lições de saúde à China. Por isso, em abril de 2003, a China deu os passos necessários para controlar a epidemia. Em 2006, as autoridades de Pequim apoiaram fortemente a candidatura de Margaret Chan como chefe da OMS, que geriu as crises da gripe aviária e SARS no Departamento de Saúde de Hong Kong, como sinal da sua vontade de seguir o Regulamento Sanitário Internacional que define os padrões para as pandemias. E também controlaram a eleição do seu sucessor porque têm fortes interesses econômicos na Etiópia. Podemos dizer, portanto, sem entrar na teoria da conspiração, que a China compreendeu que deve ter a OMS com ela e não contra ela, se quiser impor-se como líder mundial. É por isso que a OMS tem sido bastante conciliadora com a China desde o início desta epidemia, e o relatório que divulgou em 28 de fevereiro literalmente apresenta a China como modelo para as medidas que devem ser aplicadas a esta pandemia.
Desde o início de 2020, não se passa uma hora sem que surjam novas informações sobre a epidemia. Covid-19 é a primeira epidemia vivida em tempo real?
A SARS foi a primeira epidemia vivida em tempo real pelos cientistas. Houve um verdadeiro esforço de partilha de informação coordenado pela OMS, graças ao desenvolvimento precoce da Internet. Hoje, a revolução digital permite que todos acompanhem a epidemia em tempo real. A Internet é tanto um remédio como um veneno para a propagação da pandemia: vamos trabalhar online para tornar a contenção aceitável, mas a disseminação de fake news produz comportamentos inadequados para a gestão da pandemia.
Paralelamente à epidemia viral, existe uma “epidemia”, também viral, de informação e efeitos relacionados com o vírus. A viralidade da informação tornou-se, com a Internet e as redes sociais, uma verdadeira característica social do nosso tempo, já que as novas tecnologias de comunicação permitem que a informação circule muito rapidamente e se multiplique. Existe uma relação entre estas duas formas de “viralidade”?
Um vírus é um pedaço de informação genética que procura replicar-se, ou, como diz o imunologista Peter Medawar, “más notícias em um invólucro (o Capsid)”. Na maioria das vezes, os vírus replicam-se nas nossas células de forma assintomática. Mas às vezes os vírus fazem descarrilar a máquina de replicação, causando pânico imunológico ou colapso do sistema. O que acontece a nível molecular tem ecos a nível macro-político.
Que papel desempenham aqueles a quem chama sentinelas e informantes (lanceurs d’alerte) no fluxo de informações sobre o vírus?
As sentinelas percebem patógenos assim que são transmitidos nas fronteiras entre espécies: são tanto animais colocados em locais de emergência viral intensa (hotspots), como aves não vacinadas em uma fazenda, e territórios equipados para perceber esses sinais (como Hong Kong, Taiwan ou Singapura, no caso da gripe aviária, ou Wuhan para coronavírus). Os denunciantes transportam seus sinais para o espaço público a fim de tomar as medidas sanitárias adequadas: Li Wenliang desempenhou esse papel para o Covid-19, mas o geógrafo ativista Mike Davis desempenhou um papel semelhante nos Estados Unidos para a gripe aviária. Estes são dois tipos de atores muito diferentes, mas têm de trabalhar em conjunto. A China desenvolveu suas sentinelas, mas poucos denunciantes. Nós fizemos a escolha oposta.
Na forma como reagem à propagação do vírus, os governos parecem estar presos entre dois imperativos difíceis de conciliar, o imperativo de manter a economia e o imperativo de preservar a saúde, que dá origem a diferentes tipos de reação, mesmo que pareçam convergir neste momento no modelo chinês. Como explica a defasagem temporal entre a França e a China, por exemplo?
A China parece ter inventado um modelo que torna compatível a proteção econômica e a mobilização sanitária, pois tem meios para intervir rápida e maciçamente no caso de um novo surto epidêmico. Nossa tradição liberal é contrária a este tipo de governança da saúde, pois favorecemos a liberdade de movimento e os benefícios políticos que dela decorrem. Vamos ter de encontrar na nossa tradição liberal os meios para justificar as mobilizações sanitárias que serão necessárias face às novas epidemias provocadas pelas transformações ecológicas.
Há alguma forma de resposta ao coronavírus que seja simultaneamente protetora, mas que não signifique mais vigilância e controle das populações?
É isto que está em jogo nas próximas semanas: um esforço de mobilização coletiva que não se baseia na vigilância militar e no controle do Estado, mas na vigilância sanitária e na partilha de informação entre a população.
Em janeiro, o coronavírus era uma pequena “gripe”, e a França atribuiu à negligência dos líderes chineses a propagação da epidemia em seu território. Hoje em dia, a China parece ser um modelo de gestão de crises sanitárias, os países europeus estão sobrecarregados com o progresso da pandemia e os “especialistas” médicos ou científicos na França estão com um discurso muito mais alarmista. O que podemos dizer sobre esta completa inversão no discurso científico e político?
Ela diz muito sobre a dificuldade da França ocupar um lugar central num tabuleiro de xadrez geopolítico que foi perturbado pela entrada da China há cerca de quarenta anos, e sobre a dificuldade de governar um Estado quando as transformações ecológicas produzem agentes patogénicos tão imprevisíveis como a SRA-Cov2.
O Presidente da República acaba de anunciar medidas sem precedentes e radicais para conter a epidemia em França. O que estará em jogo nas próximas semanas, meses e anos? O que você acha que há de novo sobre esta pandemia?
Toda a questão é se a contenção, que é uma medida sem precedentes em França enquanto os chineses se preparam para ela desde 2003, é compatível com a nossa tradição liberal. Temos sido muito críticos dos excessos do liberalismo, dos quais esta crise é um dos efeitos, mas veremos nas próximas semanas qual o grau mínimo de liberdade que temos. Os animais domésticos têm muito pouca liberdade: nós os confinamos e às vezes os abatemos para nos protegermos e nos alimentarmos deles durante os últimos trinta anos. O coronavírus do morcego nos faz a pergunta: qual é o grau mínimo de liberdade que o torna diferente dos outros animais?