Daniel Tanuro, Europe Solidaire Sans Frontièrre, 21 de dezembro de 2020
As zoonoses não são novas. A praga que assolou a antiguidade e a Idade Média foi uma zoonose. O que é novo é que um número crescente de doenças infecciosas são zoonóticas. Em trinta anos, sua participação subiu de cerca de 50% para 70% [1]. Três quartos dos novos patógenos nos seres humanos são originários de espécies animais. AIDS, Zika, Chikungunya, Ebola, H1N1, Síndrome Respiratória do Oriente Médio, H5N1, SARS, Doença de Creutzfeldt-Jakob e COVID19 são zoonoses.
O crescimento das zoonoses não é uma surpresa para biólogos e epidemiologistas. Nos últimos anos, a OMS tem se preocupado com o fato de que a maior ameaça à saúde humana vem de uma "doença X" desconhecida, provavelmente uma zoonose. Este prognóstico não vem do nada, mas da observação de que a destruição da natureza favorece a transmissão ao Homo sapiens de patógenos presentes em outros animais.
Crise pandêmica e ecológica
Cinco fatores de destruição ecológica tem, concretamente, que ser levados em conta.
Primeiro fator: o desaparecimento ou a fragmentação de habitats naturais. As florestas são arrasadas, as áreas úmidas são drenadas, a infra-estrutura é construída e as minas são abertas na natureza: tudo isso reduz a distância entre o homem e outros animais, aumentando o risco do " salto entre as espécies”.
O segundo fator é o colapso da biodiversidade. Quando as espécies se extinguem, aquelas que sobrevivem e prosperam - como ratos e morcegos - são mais propensas a abrigar patógenos que podem ser transmitidos aos humanos.
O terceiro fator é a "indústria da carne". Além de serem eticamente e ecologicamente reprováveis, as enormes concentrações industriais de animais idênticos, estacionados e engordados para serem mortos o mais rápido possível, proporcionam um terreno propício à propagação de infecções e transmissão para nossa espécie.
Quarto fator: a mudança climática. Não há evidência direta de que favoreça as zoonoses, mas poderia fazê-lo, pois os animais migram em direção aos pólos e entram em contato com outros que normalmente não encontrariam. Isto permite que os patógenos encontrem novos hospedeiros.
Estes quatro fatores de aumento do risco de epidemia são devidos principalmente à sede de lucro das empresas multinacionais - particularmente mineração, energia, agronegócios, pecuária e madeira. O quinto fator é um pouco diferente. As atividades que ela agrupa - tráfico de espécies, "bushmeat", panela de ouro - são orientadas para o lucro, mas fazem parte da economia informal ou mesmo do crime organizado. Seu impacto na saúde é significativo: o “comércio úmido” (no mercado de Wuhan) está provavelmente na raiz da atual pandemia.
No caso do SARS-CoV2, um sexto fator parece ser a poluição do ar por partículas finas. Sabe-se que aumenta o risco de doenças respiratórias e cardiovasculares causando milhões de mortes a cada ano. Não surpreende, portanto, que também possa aumentar os perigos da COVID-19.
Um futuro muito sombrio
Estes seis fatores lançam luz sobre uma realidade que não é suficientemente mencionada: a pandemia não é um golpe do destino, mas uma faceta da crise ecológica. A Plataforma Intergovernamental para a Biodiversidade (IPBES) é categórica: mais pandemias virão. O risco de uma epidemia se soma, portanto, aos quatro principais riscos, que são as mudanças climáticas, a perda de biodiversidade, a eutrofização das águas e a perda de solo.
Separadamente, cada um desses riscos é assustador. Juntos, e combinados com as desigualdades sociais, eles estão levando a humanidade para um futuro muito sombrio, do qual a pandemia dá um gostinho antecipado. Se nada mudar, os mais pobres, mulheres, crianças e idosos serão ameaçados em massa - especialmente se forem migrantes ou pertencerem a comunidades racializadas.
Como chegamos aqui? Para alguns, a pandemia e a crise ecológica em geral mostrariam que nossa espécie ultrapassou a "capacidade de carga" da Terra. Somente os mais fortes poderiam sobreviver, os outros estariam condenados à extinção, de acordo com a lei da seleção natural, conforme delineada por Darwin...
Há alguns meses, um político norte-americano chamou os idosos, que são mais sensíveis à COVID, a se sacrificarem para salvar "a economia" e "a liberdade". Ao tripudiar das medidas de precaução, ao implorar para que a "pequena gripe" circule, Trump nos Estados Unidos, o Bolsonaro no Brasil e outros estão indo na mesma direção. Isto é o que se chama de "darwinismo social", que deve ser combatido vigorosamente.
Seja em face da COVID ou da ameaça climática, os defensores do "darwinismo social" se apresentam como defensores da liberdade de viver, desfrutar, consumir e fazer negócios sem limites ou impedimentos. Eles frequentemente denunciam as tramas de certos capitalistas, mas isto é apenas demagogia: eles nunca denunciam o capitalismo.
Pelo contrário: o que essas pessoas realmente defendem é a liberdade de ser rico ou de se tornar rico às custas dos outros e do planeta. Sob a máscara da "liberdade" e das "leis da natureza" está o velho projeto fascista: dominar, explorar, eliminar. A máscara deve ser arrancada, caso contrário o mundo corre o risco de mergulhar novamente na barbárie.
O que dizer, o que fazer?
Antes de mais nada, é completamente falso afirmar que a teoria darwiniana justificaria a eliminação dos humanos mais fracos! É o oposto: Darwin escreve em preto e branco que as leis da evolução selecionaram comportamentos empáticos em humanos que vão contra a luta de todes contra todes. A seleção natural favoreceu seu oposto: a solidariedade. [2]
Em segundo lugar, é preciso ressaltar que não somos animais como os outros. Nós produzimos coletivamente nossa existência social através do trabalho, que é uma atividade consciente. Como resultado, a população humana depende não apenas da produtividade natural, mas também da forma social em que ela é utilizada. Isto não significa, é claro, que o desenvolvimento ilimitado seria possível. Isso significa que nossa "capacidade de carga" não é apenas uma função do número máximo de pessoas que um modo de produção pode alimentar; é também uma função do número mínimo de pessoas necessárias para um determinado modo.
Leis de mercado e predação
Tomemos um exemplo concreto. A pesca industrial e em pequena escala leva trinta milhões de toneladas de peixe para consumo humano todos os anos. A primeira recebe de 25 a 27 bilhões de dólares em subsídios, emprega 500.000 pessoas, consome 37 milhões de toneladas de óleo combustível, joga 8 a 20 milhões de toneladas de animais mortos no mar e processa outros 35 milhões de toneladas em óleo ou ração animal. A seguna recebe apenas 5 a 7 bilhões em subsídios, emprega 12 milhões de pessoas, consome 5 milhões de toneladas de óleo combustível, descarta uma quantidade insignificante de capturas e quase não produz óleo ou ração animal. A eficiência dos dois sistemas? uma a duas toneladas de peixe por tonelada de combustível para a pesca industrial, quatro a oito toneladas para a pesca artesanal! [3]
A comparação é indiscutível: a pesca em pequena escala é boa para o emprego, para a biodiversidade, para o clima, para a saúde e para as finanças públicas. Então por que é que a pesca grande está esmagando a pesca pequena? Porque as leis do mercado favorecem os capitalistas que investem neste setor.
Podemos comparar o agronegócio à agroecologia, a indústria da carne à pastagem, a indústria da madeira à eco-florestação, o extrativismo mineiro ao uso sóbrio e racional dos recursos minerais... A conclusão é sempre a mesma: cada uma destas atividades poderia ter uma forma diferente. Uma forma favorável à biodiversidade, ao clima, ao emprego, à saúde, às finanças públicas. Por que estas formas não são necessárias? Porque as leis do mercado favorecem os capitalistas que investem em formas prejudiciais.
O que tudo isso tem a ver com a pandemia e a crise ecológica em geral? É muito simples: a pesca, a silvicultura, a agricultura, a mineração e a pecuária são atividades fundamentais, implantadas na fronteira entre a humanidade e a natureza. As zoonoses surgem precisamente nesta fronteira.
Uma utopia necessária, urgente e desejável
Além da vacinação necessária, que não resolve o problema fundamental, aproveitemos a crise que estamos atravessando para pensar em soluções estruturais. O que a pandemia nos ensina é que as leis do mercado estão empurrando a humanidade para uma relação cada vez mais predatória com a natureza, que esta relação está se voltando para nós como um bumerangue e que ela deve ser abolida o mais rápido possível. O que a pandemia ainda nos ensina não é que somos muitos em termos absolutos, mas que somos demasiados em relação à forma de organização social que nos domina há dois séculos: o capitalismo.
Outra forma é possível: um eco-socialismo baseado na satisfação das necessidades humanas reais, determinado democraticamente no respeito prudente aos limites do ecossistema. Em tal sistema, o trabalho continuaria sendo a mediação inescapável entre o Homo sapiens e o resto da natureza. Mas seria necessário menos (porque a produção desnecessária e prejudicial seria suprimida), haveria o suficiente para todos e seria focalizada principalmente no cuidado (para as pessoas e os ecossistemas). Em outras palavras, o trabalho se tornaria uma atividade social, ecológica e, portanto, ética digna de uma humanidade verdadeiramente livre, porque consciente dos limites. Utópico? Sim, mas são as utopias que fazem o mundo se mover! Isto não só é urgente e necessário, como também é desejável.
Notas
1] 60% de acordo com a OMS, 70% de acordo com o relatório especial do IPBES sobre a pandemia da COVID19.
2] Darwin desenvolve esta tese em "The Parentage of Man", seu segundo grande trabalho teórico, escrito dez anos depois de "The Origin of Species" (A Origem das Espécies).
3] Jennifer JACQUET & Daniel PAULY, "Funding Priorities : Big Barriers to Small-Scale Fisheries", Conservation Biology, Volume 22, No. 4, 832-835.