Espanha. Miguel Urbán Crespo. Novembro de 2022
Com o coração em um punho e com 67% dos votos apurados, Lula conseguia ultrapassar Bolsonaro, encarrilhando assim uma vitória que se saldou por uma margem estreita, de um ponto e meio percentual, pouco mais de dois milhões de votos de diferença. Uma vitória popular importantíssima para a democracia no Brasil e que tem uma repercussão geopolítica fundamental para o continente, já que implica não só em uma derrota para a internacional reacionária que durante esses anos teve em Bolsonaro seu principal bastião regional, mas também na consolidação de uma nova onda de governos progressistas na região.
Uma vitória que também traz lições para a esquerda, tanto na América Latina quanto no resto do mundo. Talvez uma das mais importantes seja ter subestimado o bolsonarismo e a capacidade do neoliberalismo autoritário para se converter na direção política da fração dominante da burguesia brasileira. Porque, se Bolsonaro foi derrotado nas urnas, o bolsonarismo segue muito vivo no Brasil. A margem de votos entre ambas as candidaturas, a mais estreita na história desde que o Brasil recuperou a democracia, é um bom indicativo da implantação do bolsonarismo e de sua resiliência.
Bolsonaro é o primeiro presidente brasileiro a não conseguir a reeleição, mas o bolsonarismo conseguiu ser a primeira força nas eleições presidenciais na maioria dos estados do país: controlará o Senado; será a principal força no Congresso e ganhou os governos dos estados mais populosos do país, a começar por São Paulo. Assim que estamos diante de uma derrota de Bolsonaro, mas uma vitória do bolsonarismo. Creio que esta seria a melhor definição do processo eleitoral que acaba de terminar no Brasil.
Bolsonaro conseguiu chegar ao poder em 2018 depois de um exitoso golpe de Estado contra Dilma Rousseff, o encarceramento de Lula no caso Lava Jato e uma profunda decomposição dos partidos tradicionais da política brasileira, especialmente da direita. Uma boa mostra disso foi a candidatura presidencial do neoliberal Geraldo Alckmin pelo PSDB. Apesar de contar com o apoio dos meios de comunicação e do establishment, conseguiu apenas 4,76% dos votos no primeiro turno.
A vitória de Bolsonaro em 2018 foi um voto de protesto que se conectou com mal-estares diversos e paixões obscuras da sociedade brasileira, mas que não teria sido possível sem a crise orgânica da direita brasileira. Nesse contexto particular, a figura de Bolsonaro emergiu como uma opção “bonapartista” de um setor da burguesia brasileira, para suturar sua crise e tentar aplicar um programa de aniquilação da herança política das vitórias operárias da década de 1980, das quais o PT e o próprio Lula são herdeiros, bem como para acabar com as tímidas políticas redistributivas dos governos progressistas.
Uma das regras de ouro de Roger Stone, assessor de Richard Nixon e de Donald Trump, consiste em usar o ódio nas campanhas eleitorais, que considera um fator mobilizador mais forte na política que o amor ou a solidariedade. O ódio foi a gasolina que moveu o motor da campanha de Bolsonaro em 2018, possibilitando-lhe ganhar aquelas eleições, e o que guiou o exercício do poder nestes anos de governo.
Um ódio à herança dos primeiros governos Lula e do PT, mas também à nova onda do feminismo que está se desenvolvendo no continente; contra os povos originários e sua defesa do território; contra as pessoas afrodescendentes e sua incorporação à vida política do país; contra as diversidades sexuais e o questionamento à ordem moral neoconservadora. Um ódio ao diferente, àqueles sujeitos que, com sua própria existência, questionam o avanço do neoliberalismo autoritário e sua ordem moral.
O fenômeno de Bolsonaro no Brasil, como afirmava Micaela Cuesta, “não é um caso isolado, é o ‘filho pródigo’ do atual momento neoliberal, indissociável de um autoritarismo social cada vez mais estendido. É nele que se reclamam ‘figuras fortes’”. Porque Bolsonaro representa uma extrema-direita descomplexada, explicitamente racista, misógina, anti-LGBTI, fundamentalista religiosa, anticomunista e negacionista climática. Mas uma extrema-direita que não deixa de defender o mesmo programa econômico ultra-neoliberal das elites brasileiras que representou Temer depois do golpe contra Dilma: uma ambiciosa reestruturação econômica às custas da classe trabalhadora, com métodos brutais. E, nesse processo, o bonapartismo bolsonarista se mostrou como elemento fundamental para erigir-se na “direção política” da fração majoritária da burguesia brasileira. De fato, a ruptura com Moro, um dos personagens mais queridos da direita, evidenciou a dura batalha durante seu governo pela direção política do bloco da direita. Uma batalha que, contra os prognósticos, ganhou Bolsonaro, o filho bastardo da Lava Jato, e não Moro, seu verdadeiro paladino.
Desta forma, Bolsonaro conseguiu nestes anos de governo passar de um outsider à construção de um movimento orgânico com um programa baseado, fundamentalmente, em três pontos: o “Estado mínimo” a serviço do programa neoliberal das elites brasileiras, com a aplicação de reformas estruturais contra direitos sociais conquistados na etapa anterior; o questionamento da democracia liberal, com uma liderança bonapartista autoritária, reclamando de forma insistente o legado da ditadura e que teve no exército e na polícia seus principais elementos de ancoragem; e o conservadorismo moral da “nova direita cristã”, representado especialmente pelas igrejas pentecostais e neopentecostais. O bolsonarismo como movimento orgânico e essa capacidade de direção política do bloco dominante da burguesia brasileira é o que lhe torna tão perigoso, ao mesmo tempo que explica em grande parte sua implantação social e sua resistência eleitoral, que pudemos comprovar no último 30 de outubro.
É indubitável que o enorme gasto de ajudas sociais, muitas delas dirigidas diretamente a setores destacados da base bolsonarista, como caminhoneiros e taxistas, ajudou a melhorar seus resultados eleitorais. Mas não explicam por si só os resultados das eleições legislativas ou aos governos estaduais, onde o bolsonarismo conseguiu superar a esquerda. Ninguém duvida que a vitória da esquerda não teria sido possível sem a figura de Lula, o que lhe torna imprescindível. De fato, é difícil imaginar um lulismo sem Lula, como demonstram as derrotas de Fernando Haddad. Não obstante, é factível pensar em Bolsonaro como figura intercambiável, o que nos permite falar de um movimento bolsonarista para além de seu atual líder.
Ainda que importantes, os protestos posteriores ao resultado eleitoral representam mais um exercício de ginástica reacionária, e um aviso aos navegantes para a legislatura, que uma tentativa séria de reverter o veredicto das urnas. Mas as pressões não vêm apenas da rua: a grande patronal brasileira e seus meios de comunicação afins já se apressaram a manifestar que a vitória não é de Lula, e sim de todos os que se opuseram a Bolsonaro e que, portanto, o novo presidente não pode aplicar seu próprio programa, mas sim acertá-lo com os interesses das elites brasileiras. Outro aviso para moderar qualquer veleidade redistributiva do governo Lula que possa reverter as reformas estruturais empreendidas pelo Executivo anterior.
Todos esses “avisos” nos deveriam alertar sobre a capacidade do bolsonarismo para maturar as condições para um novo golpe de Estado ao estilo do efetuado contra Dilma. Não esqueçamos que, como em seu momento ocorreu com Temer, o cavalo de Tróia já estaria dentro, não esqueçamos o passado recente do atual vice-presidente. Uma espada de Dâmocles que pairará sobre o novo governo e a esquerda brasileira. Uma situação que, não é contraposta pela construção de um forte movimento popular independente, será a pressão perfeita para a moderação das políticas governamentais e a resignação da esquerda.
Em tal contexto, não podemos deixar de recordar a clássica tese de Walter Benjamin: “cada ascenso do fascismo dá testemunho de uma revolução falida”. Uma afirmação que não apenas continua sendo atual hoje em dia, mas talvez seja mais pertinente do que nunca, ainda que não de forma estritamente literal, para compreender como o ascenso do neoliberalismo autoritário e/ou do neofascismo está estreitamente relacionado com as debilidades atuais da esquerda. Uma tese útil para ter em conta os riscos de um governo que modere e não cumpra com as expectativas de mudança das classes populares. Porque quando as expectativas são frustradas, surge a insatisfação e a frustração que alimentam as paixões obscuras sobre as quais se constrói a internacional reacionária.
E é aí onde se torna fundamental o papel que pode desempenhar o PSOL, que não apenas é o segundo partido da esquerda no Congresso brasileiro, mas também a força política que melhor soube representar a emergência da nova esquerda latino-americana: jovem, feminista, negra, favelada, ecologista e anticapitalista. Essa jovem formação tem a tarefa de acompanhar o novo governo Lula reafirmando sua independência política e orgânica para poder pressionar o Executivo pela esquerda. Se conseguir fugir à tentação de conformar-se com sua conversão em “ala esquerda” do bloco do governo, seu papel poderá ser muito mais ambicioso.
O PSOL tem a possibilidade de ajudar a construir e dinamizar um movimento que ensaie experiências de poder popular que enfrentem o bolsonarismo e que vislumbrem um horizonte ecossocialista contra a crise orgânica da burguesia brasileira. Porque é, é construir um movimento político em que Lula seja uma figura intercambiável não imprescindível. No domingo se ganhou um tempo precioso para conseguir isso.