Gil Alessi, El País Brasil, 29 de novembro de 2020
Em um de seus últimos discursos antes de ser preso, em abril de 2018, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva se referiu a Guilherme Boulos como um “menino” —à época ele tinha 35 anos. Ao lado do petista na ocasião, o coordenador nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto sorriu. De cima de um carro de som que contava com a presença de Dilma Rousseff e da alta cúpula petista, Lula destacou que este “menino” era “um companheiro da mais alta qualidade (...) e tem futuro, meu irmão, é só não desistir nunca”. À época do discurso, Boulos se preparava para disputar um cargo eletivo pela primeira vez. Candidato do PSOL à presidência da República naquele ano, amargou o pior resultado do partido nas eleições nacionais, com apenas 0,58% dos votos válidos, ou 617.000 votos, em meio a um contexto de ascensão do bolsonarismo no qual as esquerdas sairiam massacradas das urnas. Boulos parecia fadado ao destino de candidatos progressistas que disputam por partidos nanicos, de ficar à sombra do PT. E aí veio 2020.
Com o resultado das urnas neste domingo, no qual Boulos teve 40% dos votos válidos (mais de 2 milhões de votos), ele conseguiu em uma única eleição desbancar o PT como o partido do eleitor de esquerda paulistano, e ainda aglutinar, no segundo turno, todos os partidos do campo progressista. A chamada “frente única conta Bolsonaro”, que não se concretizou em 2018 e que é discutida para 2022, teve seu ensaio paulistano. Além de Lula, Ciro Gomes (PDT) —que viajou para Paris no segundo turno das últimas eleições presidenciais e não apoiou Fernando Haddad—, Marina Silva (Rede) e Flávio Dino (PC do B) participaram da propaganda eleitoral de Boulos, feito que o PT não conseguiu tirar do papel em 2018. Além disso, o PSB também declarou apoio à chapa do PSOL, ainda que seu candidato derrotado este ano, Márcio França, tenha ficado neutro. Resta saber como estas peças do xadrez político se moverão nos próximos meses.
Em discurso após o término da apuração, Boulos, que foi diagnosticado com covid-19 na sexta-feira e ficou fora da reta final do pleito, mencionou o apoio destes caciques partidários, e afirmou que irá trabalhar “para que o que a gente conseguiu construir e unir aqui em São Paulo, sirva de inspiração para o Brasil, para ajudar a derrubar o atraso e o autoritarismo”. Ele se colocou “à disposição como sempre (...) das lutas do nosso povo, em São Paulo e no país”. O feito de Boulos nesta eleição contrastam com resultados recentes de partidos de esquerda em São Paulo. Nas eleições de 2016, por exemplo, Haddad recebeu 967.000 votos, menos da metade de Boulos —a eleição daquele ano foi vencida por João Doria no primeiro turno. Já Erundina, que à época foi a cabeça de chapa do PSOL, teve 184.000 votos.
O fato é que muitos petistas da velha guarda veem Boulos com bons olhos. “Ele já está firmado politicamente como uma grande liderança da esquerda do país. É claro que isso não diminui as demais lideranças, mas é inequívoco que ele, com a ligação com movimentos sociais e a formação intelectual e política que tem, é natural que ele se torne um dos líderes mais proeminentes do país”, afirma o ex-governador do Rio Grande do Sul e ex-ministro de Lula, Tarso Genro. Ele foi um dos primeiros quadros históricos do PT a defender a retirada de candidatura de Jilmar Tatto e o apoio integral do partido a Boulos. Mas Genro destaca que o bom desempenho do PSOL só foi possível graças à ação da militância petista. “Eu acho que o PT não sai enfraquecido com a preferência ao Boulos na cena política. O Boulos só foi possível em parte porque houve uma adesão massiva da base do PT no primeiro e no segundo turno. Nosso partido teve uma importância estratégica para ele”, diz.
A afirmação de Genro vai de encontro aos dados sobre o perfil do eleitor de Boulos. O PSOL conta com a simpatia do paulistano jovem (70%, segundo o Datafolha) de classe média e alta escolaridade. A campanha psolista foi construída com forte presença nas redes sociais, lançando mão de memes e outros conteúdos que dialogam diretamente com este eleitor mais novo, da geração TikTok. Mas o partido patinou com o eleitorado mais pobre e como menos escolaridade, evidenciando o fato de que o PSOL ainda conta com pouca capilaridade nas periferias. Por outro lado, o PT acumula a experiência de anos de trabalho de base nas franjas da cidade, ainda que após a eleição de Lula o partido tenho tido —com exceção do pleito de 2012, que levou Haddad ao poder— um desempenho ruim nas regiões que eram conhecidas como o cinturão vermelho paulistano.
Apesar dos reveses petistas na quebrada, a legenda ainda conta com uma infraestrutura partidária superior à do PSOL, seja com um número maior de vereadores, líderes comunitários ou militância. A própria Luiza Erundina, candidata a vice de Boulos, reconheceu essa deficiência do partido em conversa com o EL PAÍS: “Isso [o crescimento do PSOL nas periferias] é uma questão de tempo. O partido é como um ser vivo (...) Agora, o seu tamanho ainda é pequeno”.
Se a união dos partidos terá fôlego para além dessa disputa e que lugar Boulos ocupará no xadrez de 2022 ainda é una incógnita. De qualquer forma, Genro é otimista. “Isso para mim é o início de uma unidade política das esquerdas que pode oferecer uma possibilidade participativa e democrática à população, inclusive dialogar com centro democrático”, diz. Para ele existe a tendência de que nos próximos anos uma série de novas lideranças de esquerda cresça e se fortaleça, assim como ocorreu com Boulos, apesar das derrotas. “O caminho está posto: o exemplo da Marina Arraes [PT], no Recife, Edmilson Rodrigues [PSOL], em Belém, Manuela D’ávila [PC do B], em Porto Alegre e Pepe Vargas [PT] em Caxias do Sul. Emerge um conjunto de lideranças novas com um discurso mais integrado e adequado à nossa sociedade”, afirma.
Outro fator que também provocou o bom desempenho de Boulos, na opinião de Hannah Maruci Aflalo, cientista política da Universidade de São Paulo, foi a falta de um nome relevante do PT para este pleito. “O partido não se destacou como a opção da esquerda nas eleições para a prefeitura de São Paulo pois não apresentou um quadro forte e popular como candidato”, afirma. Tatto, que já havia sido secretário de transportes em várias gestões petistas, nunca foi visto nem mesmo dentro do PT como um nome capaz de aglutinar o eleitorado progressista. Hanna destaca ainda o papel da aliança com Erundina para aproximar o candidato de pessoas que o consideravam “radical”. Com relação a uma frente para derrotar o bolsonarismo em 2022, ela afirma que “ainda não é possível fazer previsões”, mas que “sem dúvida nenhuma, Boulos já é uma liderança de muita importância para a esquerda”.
Antes mesmo do início da campanha, a candidatura de Boulos e Erundina para o executivo municipal conseguiu dividir o PT. Lideranças históricas do partido e ex-ministros de Lula, como Celso Amorim e Genro, endossaram o nome do “menino” do PSOL, ante Tatto. No meio artístico e intelectual, outra debandada para o lado de Boulos: Chico Buarque, Wagner Moura, André Singer e outros declararam apoio a ele. Tatto chegou a ser pressionado por dirigentes do PT para desistir da candidatura que não decolava, mas se manteve firme, sempre deixando claro que apoiaria o candidato de esquerda que fosse para o segundo turno.