O vice de Lula será um herdeiro de 1932, do velho Partido Democrático, do velho Partido Constitucionalista: um conservador de Pindamonhangaba
Lincon Secco, A terra é redonda, 19 de abril de 2022
Em pleno ano de 2022, Lula reeditou a mesma aliança com a direita feita vinte anos atrás. Em 2018 o PT confrontou uma situação inédita: a direita assumiu uma retórica anti-sistêmica e venceu as eleições. Com o sistema político abalado, o Partido dos Trabalhadores foi visto cada vez mais como um polo radical e a chapa voltou a ser montada no campo restrito da esquerda com o PC do B. Mas, em 2022, Lula deu um banho de água fria naqueles que acreditavam que 2018 tinha sido uma inflexão e escolheu o ex-governador paulista Geraldo Alckmin como seu vice.
Situação decidida, cabe perguntar: quem é realmente o vice da chapa de Lula?
Geraldo Alckmin
Geraldo Alckmin não pertence à elite histórica do PSDB, legenda criada em 25 de junho de 1988. Os fundadores do novo partido eram intelectuais uspianos que fizeram oposição à ditadura militar no MDB e teceram, ao longo dos anos, relações nos meios empresariais. José Serra, Luiz Carlos Bresser-Pereira, Fernando Henrique Cardoso e Aloysio Nunes foram os mais proeminentes.
Mário Covas e Franco Montoro tinham trajetórias diferentes. Não cultivaram uma atividade acadêmica, embora também fossem uspianos; e tiveram uma carreira política anterior a 1964, especialmente Montoro no Partido Democrata Cristão. Mas mesmo Mário Covas, estudante da Poli na mesma época que Paulo Maluf, tinha atuado no Partido Social Trabalhista. Além disso, Montoro era de uma geração mais velha e já estava no fim de sua trajetória política quando o PSDB foi fundado.
O outro polo fundador importante do PSDB foi o cearense, liderado por Tasso Jereissati, líder do Centro Industrial do Ceará e governador do Estado.
Nesse conjunto, era improvável a ascensão no PSDB de um provinciano como Geraldo Alckmin, um católico praticante, médico formado em Taubaté e ex-prefeito de um pequeno município do Vale do Paraíba.
Mas não se pode dizer que Geraldo Alckmin não fez escolhas em sua vida. Ele não tinha pertencido à direita como foi o caso de seu conterrâneo tucano Ciro Gomes, que integrou o PDS no Ceará. Alckmin elegeu-se vereador do MDB em Pindamonhangaba na oposição à ditadura em 1972. Quando anunciou-se a cisão no PMDB ele não escolheu ficar no partido que tinha o governador do estado, Orestes Quércia.
Apesar de ter sido deputado constituinte, Geraldo Alckmin só se projetou quando foi escolhido exatamente por Covas, um outsider naquele partido de intelectuais como vimos, para ser vice-governador em 1994. Alckmin chefiou o Programa Estadual de Desestatização, foi responsável pelo desmantelamento da malha ferroviária paulista e pela privatização de instrumentos estratégicos do governo, como o Banespa.
Favorecido pelo acaso, devido a morte de Covas, Alckmin foi Governador de 2001 a 2006 e de 2010 a 2018. Foi adversário de Lula em 2006. Manteve relação cordial com Dilma Roussef, a quem chamava de “presidenta”, ao contrário do establishment político e midiático. Em 21 de março de 2016 a página oficial do PSDB anunciou “Alckmin concorda com FHC e defende impeachment de Dilma”.
Valendo-se da aparente derrocada do PT nas eleições municipais de 2016, apoiou João Doria Júnior, representante de uma nova ala partidária que pretendia substituir os velhos intelectuais que sempre torceram o nariz para o provinciano de Pindamonhangaba. A vingança de Alckmin parecia certa, pois em seguida ele seria candidato a presidente da República.
Mas Doria não era nem um mero apresentador de TV e nem um neófito na política como fez seu novo mentor acreditar. Ele é filho de um deputado baiano do antigo PDC que era amigo de Montoro. Foi Secretário Municipal de Turismo e Presidente da Paulistur na gestão do prefeito Mário Covas. Depois presidiu a Embratur. Embora tenha se filiado ao PSDB em 2001, já tinha relações com tucanos importantes. Alckmin pagou caro pelo erro de colocá-lo na prefeitura da capital e, depois, no governo estadual. Foi traído durante a campanha presidencial de 2018 e teve votação pífia no seu próprio estado.
A escolha
Traições de sucessores são frequentes. Fleury traiu Quércia, por exemplo. E entre vices trata-se quase de uma norma. Vices não são meros substitutos eventuais. São alternativa de poder. Pense-se em Café Filho, João Goulart[i], Itamar Franco e Michel Temer. Trata-se de um cargo que poderia ser extinto, mas essa é outra história.
Alckmin tem um retrospecto eleitoral de forte apoio no interior paulista, mas não na capital. Foi candidato derrotado à prefeitura de São Paulo duas vezes. Ele estruturou uma rede de apoio inicial no Vale do Paraíba em suas campanhas eleitorais proporcionais e, depois, no Estado inteiro quando foi presidente estadual do PSDB entre 1991 e 1994. Mais tarde, como governador, ampliou e aprofundou a aliança com prefeitos e vereadores.
Traído, como vimos, pelo seu pupilo João Doria Junior e distante do poder estadual desde 2018, não é este capital político imediato que ele trouxe à chapa de Lula.
Porém, o mais importante não está na superfície dos fatos. Desde a derrubada de Collor e a entrega do Ministério da Fazenda a FHC, as elites paulistas exercem um freio na presidência da República. Nos governos de Lula com tentativas de desestabilização. E nos governos de Dilma Roussef com um vice paulista que era exímio conspirador político.
Trata-se de uma versão do que chamei de poder moderador[ii] que São Paulo exerce no país desde 1930 e que, com o escorrer dos anos, dilatou sua incidência para outras regiões em que o agronegócio se “modernizou”.
Hegemonia
O estado de São Paulo jamais foi governado pela esquerda em toda a sua história[iii]. As votações percentuais do PT são muito inferiores às da Bahia, por exemplo. Mas sem os votos paulistas a esquerda não teria ganho nenhuma eleição presidencial. Não é a percentagem que determina uma vitória, mas os números inteiros e Lula sabe disso. Na Primeira República São Paulo tinha o predomínio por sua economia, mas Minas Gerais pelo seu peso populacional. O Estado de São Paulo teve, durante os governos petistas, peso econômico e populacional, mas não poder político.[iv]
Onde nasce a hegemonia? O Estado de São Paulo representa 1/3 do PIB brasileiro. Não se deve desconsiderar que isso tem alguma importância na vida política. A sensação de quem habita as cidades médias e pequenas paulistas é de que tudo funciona, ainda que mais ou menos: estradas, segurança, serviços de saúde, universidades, escolas, comércio e serviços em geral. Alckmin é o retrato desse “mais ou menos”.
Sua imagem é a de um político honesto, sorriso contido, discreto, meio sonso, tímido e conservador sem ser reacionário. Daí o acertado apelido de picolé de chuchu, o que não lhe tira voto algum. Ele é o primeiro governador em décadas que não fez carreira na capital. Quércia fez sua carreira em Campinas, mas logo adquiriu envergadura estadual. Fleury e Covas tiveram longo tirocínio na capital, onde estudaram, trabalharam e consolidaram suas carreiras. Franco Montoro e Paulo Maluf nasceram na capital.
Evidentemente, o ensino precário, o preço dos planos de saúde, a criminalidade, pedágios, falta de energia e água e outras reclamações compõem o rol de críticas aos governos tucanos. Mas a solução imaginada é sempre o fim da corrupção e diminuição dos impostos: uma utopia anarco-capitalista que esbarra no fato de que o Estado atua e até amplia gastos, só que mediante organizações sociais que cobram mais e oferecem menos ao público.
As elites dos pequenos e médios municípios de São Paulo, como as de outros estados, frequentam espaços de sociabilidade centenários como sindicatos empresariais e associações de ruralistas, a maçonaria, clubes esportivos e outras instituições, em geral masculinas. O Rotary, por exemplo, aportou no Brasil na década de 1920 e obteve ampla capilaridade no interior paulista. Mas as trocas de favores em regiões de grande arrecadação dão mais poder a essas elites e um falso ar de segredo a essas associações. Um exemplo são os investimentos de Fernando Henrique Cardoso em Botucatu e as relações políticas que ele estabeleceu naquela cidade.[v].
Não é fácil para a esquerda quebrar relações locais. O mais comum é adentrá-las ou ao menos coabitar com elas.
Poder Moderador
O poder moderador[vi] paulista é a liderança frustrada de uma classe social poderosa, baseada num espaço econômico dominante, mas incapaz de fazer sacrifícios corporativos para conquistar apoio nacional. Também não possui armas para impor o seu programa, como aliás tentou em 1932.
Não podendo constituir uma hegemonia nacional, sobra-lhe a força política que ou modera ou desestabiliza a ordem, abrindo o espaço para tenentes de farda ou toga, sempre amparados na grande mídia corporativa paulista.[vii]
As forças da ordem basearam-se numa economia industrial até os anos 1980, mas que nunca deixou de depender do agronegócio. Com uma máquina de arrecadação moderna e serviços públicos degradados e semi-privatizados, ainda assim contam com mais externalidades econômicas que o restante do país e essa é a base material da hegemonia no estado.
No momento em que escrevo (2022) desenha-se ampla frente democrática e um partido de trabalhadores assume a dianteira; mas quando tem tudo para vencer, ele para, hesita e olha para trás, sendo puxado por alianças moderadoras que lhe tiram qualquer ímpeto radical.
A opção do PT foi mostrar um salvo conduto assinado por Geraldo Alckmin para Lula atravessar o terreno movediço das classes dominantes. As mesmas que apoiaram e, em grande parte, ainda apoiam Bolsonaro. Lula entendeu que sem esse salvo conduto, ele poderia agregar contra sua candidatura as classes dominantes do país (e de São Paulo em particular). Classes que lideram amplos estratos médios, têm dezenas de milhões de votos e um desmedido poder desestabilizador da vida política nacional.
Claro que a história é sempre um processo aberto. Para o PT trata-se, antes de tudo, de derrotar um presidente que coloca em perigo a continuidade do Brasil enquanto país e fazer mudanças seguras que possam se apoiar em amplas maiorias sociais. Se Lula fez a aposta certa, o tempo dirá.
O fato é que nos 90 anos do levante constitucionalista, o vice de Lula será um herdeiro de 1932, do velho Partido Democrático, do velho Partido Constitucionalista: um conservador de Pindamonhangaba, aliado ao PSB em 2014 e agora integrante deste partido. Lampedusiano, o poder moderador muda tudo, mas para que tudo continue como sempre foi.
Lincoln Secco é professor do Departamento de História da USP. Autor, entre outros livros, de História do PT (Ateliê).
Notas
[i] Antes de 1964 houve eleição direta separada para vice.
[ii] Secco, L. O poder moderador de São Paulo na política nacional, Folha de São Paulo, 4/10/2015.
[iii] Logo após a Revolução de 1930 houve dois interventores federais contrários aos interesses das classes conservadoras paulistas (João Alberto e Manuel Rabelo), mas dificilmente podem ser classificados como de esquerda.
[iv] Obviamente eu faço um tour de force e exagero para relembrar que, embora as classes sociais tenham peso decisivo, a política regional não desapareceu no Brasil depois de 1930. Quando me refiro ao Estado de São Paulo, é às suas velhas classes conservadoras que faço alusão. São elas que usam seu poder empresarial e financeiro, midiático e editorial para esparramar pelo Brasil sua ideologia liberal conservadora. Hoje, em grande medida, essas classes conservadoras não se resumem a São Paulo, é evidente. O sul, o centro oeste e o norte são tão ou mais conservadores. E setores médios de algumas capitais do nordeste também, como demonstraram as eleições de 2018. Nesse sentido, a pretensão do ex juiz Moro de mudar seu domicílio eleitoral de Curitiba a São Paulo é coerente.
[v] A literatura regional paulista, pouco estudada, mostra as reações locais aos grandes processos nacionais, a formação do coronelismo paulista, suas articulações políticas e traços de sua mentalidade.
[vi] A origem do termo remete às teses de Benjamin Constant, teórico francês da Restauração. Ao monarca caberia o Poder Moderador, o poder neutro que mantém os demais em equilíbrio. Foi adotado na Constituição brasileira de 25 de março de 1824.
[vii] Os maiores grupos de mídia tem sede em São Paulo. O maior deles, a Globo, tem sede no Rio de Janeiro. A sede da grande maioria desses grupos (73%) fica na região metropolitana de São Paulo. No total, 80% estavam, em 2017, localizados no sul e no sudeste do país, de onde dominavam a “audiência nacional da mídia”. https://rsf.org/pt/noticia/oligopolios-de-midia-controlados-por-poucas-familias-reporteres-sem-fronteiras-e-o-intervozes-lancam.