Gilbert Achcar, Esquerda.net, 25 de dezembro de 2020
A 17 de dezembro de 2010, há apenas dez anos, um jovem vendedor ambulante em Sidi Bouzid, no centro da Tunísia, provocou ao imolar-se uma tempestade política, “a primavera árabe”. A primeira década do processo revolucionário árabe confirmou que este é realmente um processo a longo prazo.
Os primeiros meses desta "primavera" foram eufóricos: uma imensa vaga de protestos massivos varreu a região, culminando em seis grandes levantamentos - Egito, Iémene, Bahrein, Líbia e Síria, seguindo o exemplo da Tunísia. Mas logo após este primeiro fluxo, a vaga revolucionária refluiu e foi seguida de uma ofensiva contrarrevolucionária. A revolução do Bahrein foi cercada e reprimida. O regime sírio conseguiu resistir ao levantamento popular, que se tinha transformado numa guerra civil, até que o Irão veio em seu auxílio em 2013. Pouco depois, um golpe militar reacionário ocorreu no Egito, seguido de novos reveses, assim como a eclosão de guerras civis na Líbia e no Iémene. Esta pesada derrota dissipou as últimas ilusões; a euforia cedeu lugar ao pessimismo, enquanto muitos anunciavam o fim dos sonhos da “primavera árabe”.
Tanto a euforia quanto o desânimo, porém, foram reações impressionistas superficiais à vaga revolucionária e ao refluxo que se seguiu. Ambos negligenciavam duas caraterísticas fundamentais do big-bang que abalou a região em 2011.
A primeira característica é que a explosão teve causas profundas na intransponível crise estrutural resultante da transformação do sistema sociopolítico dominante num entrave ao desenvolvimento, resultando em taxas de crescimento económico muito baixas e, por consequência, níveis de desemprego muito elevados, em particular entre os jovens e as mulheres. O refluxo da vaga revolucionária e o assalto reacionário que se seguiu não resolveram em nada esta crise estrutural fundamental. Pelo contrário, ela agravou-se nas condições de instabilidade política que prevalecem a nível regional desde o início da crise. Isto significa que os acontecimentos de 2011 foram apenas a fase inicial de um processo revolucionário de longo prazo que só chegará ao fim quando ocorrer a tão necessária mudança radical do sistema sociopolítico dominante. Sem essa mudança, a região corre o risco de mergulhar num declínio desastroso, anunciando um longo período histórico de decadência.
A segunda característica negligenciada é o estrito controle exercido pelo sistema político e social na região árabe sobre as principais alavancas do poder do Estado - em particular as forças armadas. A esperança, muito propagada nos primeiros meses da “primavera árabe”, de que a região conheceria uma “transição democrática” tão suave quanto a experimentada noutras partes do mundo baseava-se numa subestimação ingénua da solidez do corpo principal do Estado e da sua coluna vertebral repressiva, bem como da disposição das elites dirigentes para destruir o seu país, massacrar as suas populações ou afastá-las para preservar poder e privilégios - como fez o regime sírio. Essa ilusão ingénua foi reforçada quando o que aconteceu na Tunísia e no Egito - onde o "Estado profundo" sacrificou a sua cúpula [Ben Ali, Mubarak] para preservar as suas fundações até que uma nova cúpula aparecesse como a parte emergente do iceberg - foi confundido com o “derrube do regime” que o povo queria, segundo o célebre slogan.
Consideradas em conjunto, estas duas características levam à conclusão de que a mudança de que a região necessita para superar a sua crise crónica requer lideranças ou dirigentes do movimento popular com alto grau de determinação revolucionária e fidelidade ao interesse popular. Essas lideranças são indispensáveis para gerir o processo revolucionário e superar as difíceis provas e desafios a que inevitavelmente devem fazer frente para derrotar os regimes existentes e ganhar a sua base social, tanto civil como militar. São precisas direções capazes de se elevar ao nível necessário para garantir a transformação do Estado, de máquina de extorsão social em benefício de uma minoria em instrumento ao serviço da sociedade e da maioria trabalhadora. Até que tais órgãos dirigentes surjam ou tenham sucesso a ganhar a direção, o processo revolucionário continuará inexoravelmente através de fases de fluxo e refluxo, avanços revolucionários e regressões contrarrevolucionárias.
A primeira década do processo revolucionário árabe confirmou que este é realmente um processo a longo prazo. O fracasso da "primavera árabe" - com guerras civis em três países e o restabelecimento do antigo regime noutros, com uma nova figura de proa ainda pior no caso do Egito - de forma alguma trouxe estabilidade social para a região. Irrupções sociais e protestos políticos continuaram a ocorrer país após país, e região a região dentro do mesmo país, como aconteceu em Marrocos, na Tunísia, no Egito, no Sudão, na Jordânia, na Síria, no Iraque e noutros lugares.
Oito anos após a primeira vaga revolucionária, a região conheceu uma segunda vaga inaugurada no levantamento sudanês, que começou há dois anos em 19 de dezembro de 2018. Foi seguido em 2019 pelo argelino Hirak e pelos levantamentos no Iraque e no Líbano. Ao todo, dez estados árabes tiveram levantamentos na última década. Por outras palavras, quase metade dos países da região e a grande maioria da sua população conheceram explosões revolucionárias massivas. Além disso, quase todos os outros países árabes viram um aumento notável de protestos sociais e políticos ao longo da década. E, embora seja verdade que a pandemia de Covid-19 dificultou as lutas sociais em curso e inibiu o surgimento de novas, esse impacto não vai durar, especialmente porque a exacerbação pandémica da crise económica regional não pode deixar de alimentar ainda mais a cólera popular.
O maior desafio com que está confrontada a atual geração de revolucionários, politizada durante os levantamentos - e a condição fundamental para a sua capacidade passar do levantamento à revolução vitoriosa - reside na já mencionada questão da direção, nas duas dimensões, organizacional e política. Não apenas na região árabe, mas em todo o mundo, a nova geração rebelde suspeita, com razão, das velhas formações políticas e ideológicas, sabendo que elas resultaram em autoritarismo burocrático ou liderança individual, e que elas traíram os princípios que afirmavam incorporar a fim de acomodar diversos tipos de opressão social, política e cultural. A nova geração rebelde adota a organização horizontal na base; rejeita o centralismo hierárquico e opta pela coordenação em rede, como exemplificaram os "comités de resistência" no Sudão.
Politicamente, como todos os processos revolucionários de longo prazo da história, o processo regional é cumulativo. Cada geração tira as lições das experiências e fracassos, lições que são transmitidas de geração a geração e de um país a outro, no mesmo longo processo histórico. Vimos assim como a segunda vaga revolucionária - ou o que alguns comentaristas chamaram de “segunda primavera árabe” - evitou as ilusões que enfraqueceram a vaga anterior. Basta comparar os três países da região que têm em comum o facto de serem governados pelas suas forças armadas: Egito, Sudão e Argélia. Enquanto em 2011 e depois em 2013, as ilusões sobre o papel de "salvador" das forças armadas prevaleceram no Egito, os movimentos populares posteriores no Sudão e na Argélia evitaram essa armadilha e reafirmaram a sua exigência de um governo civil, como um pré-requisito à democracia. Da mesma forma, os movimentos no Iraque e no Líbano tiveram ambos sucesso em evitar cair na armadilha das clivagens confessionais, há muito usadas pelos grupos no poder para dividir o povo e consolidar a sua hegemonia.
É certo que ainda há um longo caminho a percorrer entre o estado atual dos movimentos populares, especialmente os movimentos de jovens, e a realização das aspirações progressistas revolucionárias da nova geração. Enquanto isso, a ordem árabe reacionária continua a refinar as suas armas, enquanto os seus dirigentes se unem em oposição ao processo revolucionário regional. O caminho para a desejada emancipação revolucionária é longo e árduo, mas a determinação em percorrê-lo é reforçada pela consciência de que a única alternativa é a ignomínia e a barbárie.
Gilbert Achcar é professor no SOAS (faculdade de estudos orientais e africanos da Universidade de Londres). Artigo publicado em árabe no diário Al-Quds al-Arabi, em 16 de dezembro de 2020. Tradução de árabe para francês por A l’encontre e do francês para português por Carlos Santos para esquerda.net.