O projeto de juventude de um marxismo vivo, aberto e agente, largamente desenvolvido e profundamente reformulado, permanecerá o fio condutor das suas reflexões. A filosofia da praxis, a “nova conceção do mundo” desenvolvida nos Cadernos da Prisão opõe-se a uma compreensão esquemática e economicista do marxismo.
Yohann Douet, Esquerda.net, 31 de julho de 2021
Por ocasião da publicação nas Éditions Sociales da obra Une nouvelle conception du monde – Gramsci et le marxisme, publicamos aqui uma parte da introdução escrita por Yohann Douet que coordenou o livro e é membro da redação da Contretemps.
Este livro inclui contribuições de alguns dos mais importantes especialistas de Gramsci: Fabio Frosini, Francesca Izzo, Pierre Musso, Giuseppe Vacca e os malogrados Domenico Losurdo e André Tosel.
A singularidade do marxismo de Gramsci
Atribuiu-se geralmente a Antonio Gramsci, e justamente, o mérito de ter estudado e iluminado fenómenos sociais que eram largamente relegados para segundo plano na tradição marxista [1]. Nomeadamente através da noção de hegemonia, sublinhou a importância do papel dos intelectuais, da luta cultural ou ainda da sociedade civil [2]. E, ainda que estes aspetos sejam menos conhecidos, produziu análises e reflexões de grande profundidade sobre a religião, a literatura, o jornalismo, o folclore ou a língua. Contudo, apesar destas constatações serem necessariamente partilhadas, deram azo a interpretações divergentes. Gramsci pôde ser visto como um “teórico das superestruturas” [3] que teria estendido e enriquecido o marxismo clássico, estudando novos objetos, mas também se pôde considerar que a atenção particular que dedica à cultura e à sociedade civil corresponderia a um afastamento do marxismo e a um deslizamento implícito para conceções liberais [4].
O nome de Gramsci está igualmente associado a conceções políticas e estratégicas inovadoras. A seus olhos, com efeito, a luta de classes não se limita a uma “guerra de movimentos” cujo desenlace seria rapidamente alcançado, mas consiste também numa “guerra de posições” amarga e complexa que se desenrola no tempo longo e que implica a construção de uma hegemonia alternativa à da classe dominante [5].
A guerra de posições está ligada ao peso das superestruturas, particularmente forte nas sociedades capitalistas mais avançadas. Gramsci distingue estas sociedades – que designa como “o Ocidente” – das do “Oriente” nas quais a sociedade civil está, inversamente, muito pouco desenvolvida e cujo paradigma é a Rússia de antes de 1917; e propõe portanto uma estratégia adaptada às conjunturas diferentes daquelas em que os bolcheviques travaram as suas lutas. Mas estas análises também foram interpretadas de formas opostas: como um complemento ao marxismo revolucionário ou, pelo contrário, como colocá-lo em causa.
Na realidade, a reflexão de Gramsci não implica uma rejeição, nem sequer tendencial, do marxismo de Marx, nem do de Lenine: ele dedica-se a desenvolver o seu verdadeiro significado. Mas, para ele, não se trata simplesmente de contribuir com complementos para a tradição marxista anterior, aliás muito diversa, e a que critica as numerosas deformações. Será mais justo dizer – e o seguimento desta introdução, assim como os diferentes textos deste livro, detalharão esta ideia – que o pensamento gramsciano constitui uma renovação do marxismo ao mesmo tempo fiel e criativa.
Para falar do que é verdadeiramente o marxismo, Gramsci emprega a expressão “filosofia da praxis” e afirma que se trata de “uma nova conceção do mundo” [6]. Para ele, esta deve ser capaz de apreender a história de maneira teórica e prática, ou seja, torná-la inteligível e produzir efeitos decisivos. Esta nova conceção do mundo é um pensamento das contradições sociais e políticas, elaborado a partir do ponto de vista de uma das forças em luta (as classes dominadas) e que trabalha para ultrapassar estas contradições [7]. Enquanto tal, visa intensificar a atividade autónoma dos grupos subalternos e oferecer-lhe uma melhor compreensão de si próprios, o que supõe que deva tornar-se “popular”, ser amplamente difundida nas massas. É enquanto é indissociavelmente atividade consciente e conceção agente, enquanto praxis portanto, que efetiva uma verdadeira unidade da teoria e da prática.
A singularidade da sua conceção de marxismo deve ser apreendida à luz do percurso pessoal, intelectual e militante de Gramsci. Nascido em 1891 na Sardenha, cresce numa região pobre, onde a miséria quotidiana e a falta de desenvolvimento económico se opõem a qualquer visão da história como triunfo do progresso. Devido a contratempos judiciais, o seu pai, fiscal de um cartório, ficou preso durante cinco anos e a família de Gramsci, apesar de pertencer à pequena burguesia, viveu durante este período numa grande pobreza.
Gramsci instala-se em Turim em 1911 para se dedicar aos estudos superiores, equacionando durante algum tempo consagrar-se a investigações em linguística que abandonará porém para fazer a luta política. É então profundamente inspirado pela tradição neo-hegeliana italiana, nomeadamente pelo historicismo de Benedetto Croce (1866-1952) e o atualismo de Giovanni Gentile (1875-1944) que acentuam a atividade humana livre, ao mesmo tempo contra o obscurantismo católico e o determinismo materialista. Gramsci irá propor mais tarde uma crítica radical destes filósofos neo-idealistas por razões tanto teóricas quanto políticas – Gentile tendo-se tornado o filósofo oficial do fascismo e Croce sendo, até à sua morte, o filósofo liberal mais influente de Itália –, mas o seu pensamento constituir-se-á sempre no e pelo diálogo com o diálogo com os dois.
Nos seus primeiros escritos, Gramsci rejeita todas as atitudes passivas e fatalistas face ao curso da história [8]. Ataca mais especificamente as versões positivistas e cienticistas do marxismo, dominantes no seio da IIª Internacional no seu conjunto, mas ainda mais no Partido Socialista Italiano no seio do qual milita a partir de 1913. O reformismo, o gradualismo é, no fundo, o atentismo, do fundador e dirigente do PSI, Filippo Turati (1857-1932), apoiando-se na ideia de que o triunfo do socialismo tinha sido previsto cientificamente. O advento da revolução na Rússia, que ia ao encontro das previsões do socialismo dito “científico”, parece-lhe ser uma refutação em ato deste último, ideia que expõe no artigo “A revolução contra O Capital” (24 de dezembro de 1917) [9], que é várias vezes trazido à baila na presente obra. Mas, como testemunha nomeadamente um outro artigo desta época, intitulado “O Nosso Marx” [10], esta refutação é também o ponto de partida de uma nova conceção do marxismo que não reduz a história a esquemas mecânicos e a determinantes económicas mas deixa todo o seu lugar à atividade humana.
Nos anos seguintes, Gramsci, encabeçando então o Ordine Nuovo [11] com os seus camaradas Angelo Tasca, Umberto Terracini e Palmiro Togliatti, exerceu uma influência profunda no movimento dos conselhos operários de Turim durante o biennio rosso de 1919-1920 [12]. Em conflito com a direção burocratizada e implicitamente reformista do PSI aquando deste movimento, participa na fundação, no Congresso de Livorno em janeiro de 1921, do Partido Comunista de Itália [13]. A partir de 1924, assume a sua direção, afastando Amadeo Bordiga que julgava ter uma linha sectária e análises dogmáticas e economicistas. Deputado desde abril de 1924, é contudo preso pelo regime fascista a 8 de novembro de 1926 e, a partir de 8 de fevereiro de 1929, começa a escrever os seus Cadernos de Prisão.
O seu projeto de juventude de um marxismo vivo, aberto e agente, largamente desenvolvido e profundamente reformulado, permanecerá o fio condutor das suas reflexões até que a saúde o impede de escrever em 1935. Morre a 27 de abril de 1937.[…]
A complexidade das reflexões gramscianas abre um vasto domínio de discussão para os leitores da sua obra. Nas linhas que se seguem, abordarei algumas das questões mais importantes e esboçarei alguns elementos de resposta, mobilizando os estudos reunidos neste livro – evidentemente sem qualquer pretensão de exaustividade.
A Filosofia da Praxis e o materialismo histórico
A “nova conceção do mundo” desenvolvida nos Cadernos da Prisão opõe-se a uma compreensão esquemática e economicista do marxismo em diferentes pontos: abandono da dicotomia entre estrutura económica de um lado e superestruturas políticas e ideológicas por outro; recusa de uma visão determinista do curso da história; rejeição de uma conceção dos sujeitos históricos – das classes neste caso – como dotados de uma identidade fixa e predefinida através de uma essência económica. Sabe-se que Gramsci sublinha a questão da luta hegemónica e, em particular, o papel decisivo desempenhado pelos intelectuais. Ao mesmo tempo, afirma a necessidade de privilegiar, devido à massificação e complexificação das sociedade do século XX e à importância da sociedade civil, uma estratégia política de “guerra de posições” mais do que uma de “guerra de movimentos”, procurando ganhar o consentimento das massas, nomeadamente através da construção de uma cultura popular autónoma e oposta à dos dominantes. Ao invés de fazer da política ou da cultura a expressão passiva da economia, Gramsci considera que entre estes diferentes elementos da realidade sócio-histórica se podem estabelecer relações de “tradutibilidade” recíproca [14] – tal como entre teoria e prática e pensamento e ação.
Por estas diferentes razões, a “filosofia da praxis”, desenvolvida por Gramsci parece afastar-se progressivamente do “materialismo histórico” entendido de uma maneira mecanicista. É o que defendem, utilizando o método diacrónico já descrito, investigadores como Fabio Frosini ou Giuseppe Vacca [15]. Este último, nomeadamente no artigo que publicamos, encontra no coração da “filosofia da praxis” a noção de tradutibilidade e uma teoria da “constituição” política dos sujeitos coletivos. Aos olhos de Gramsci, os sujeitos coletivos não podem ser pensados e determinados sem mais pela situação económica. Concebe-os como estando sempre em construção e em organização, ou seja, tomados num processo de formação histórica. Este processo nunca chega ao fim mas deve ser continuamente retomado e prosseguido. É relacional, no sentido em que coloca em jogo as relações sociais e em particular as relações de forças e as lutas, com outros sujeitos coletivos.
Mas, apesar do seu anti-economicismo, Gramsci não promove um “politicismo” nem o primado da política em detrimento da economia [16]. As contribuições de Pierre Musso e do malogrado Domenico Losurdo, revelam a importância que tem para Gramsci a reflexão sobre o americanismo e o fordismo e mais geralmente a dinâmica e as transformações do sistema económico capitalista. O reconhecimento do terreno económico revela-se neste sentido indispensável a qualquer conceção correta das lutas sociais e dos atores políticos. Se a identidade de um ator sócio-político coletivo (como uma classe) se forma historicamente, e emerge em particular das suas relações com outros atores, depende, não obstante, da sua ancoragem na situação sócio-económica. Por outro lado, se outras relações e grupos sociais podem ser tomados em consideração ao lado das classes, estas são, aos olhos de Gramsci, os atores coletivos que desempenham o papel mais fundamental no seio do processo histórico [17]. De resto, a referência contínua (que Domenico Losurdo sublinha) de Gramsci à revolução russa – verdadeira rutura existencial e política para ele – e ao bolchevismo, permite acreditar que, ao invés de se distanciar dela, procurou aprofundar a política revolucionária de classe da qual o marxismo é indissociável.
É nesta perspetiva que se pode compreender a noção de hegemonia. Assim, a hegemonia de uma classe dirigente, ou seja a sua capacidade de suscitar e organizar um certo nível de consentimento nos outros grupos sociais, não pode ser reduzida à cultura. Por um lado, é sempre igualmente, e indissociavelmente, política. O terreno de exercício da hegemonia é certamente a “sociedade civil”, ou seja “o conjunto dos organismos chamados vulgarmente de privados [18]”, na medida em que a maior parte destas organizações (Igrejas, escolas, universidades, meios de comunicação social, editoras, associações, grupos de interesses, partidos, etc.) produzem, mais ou menos diretamente, a hegemonia da classe dirigente. Mas as classes subalternas dispõem também neste terreno de margens de manobra para se organizar (têm os seus sindicatos, associações, partidos, etc.) e para contestar a hegemonia estabelecida: uma luta de classes desenrola-se assim na sociedade civil e esta luta é tanto política quanto cultural. Por outro lado, ainda que Gramsci defina a sociedade civil distinguindo-a da “sociedade política”, ou seja do Estado em sentido restrito – o Estado tal como é comummente compreendido na tradição marxista, como instância coerciva ao serviço da classe dominante –, a sociedade civil e a sociedade política estão unidas dialeticamente na realidade concreta e formam aquilo a que Gramsci chama o “Estado integral” [19]. Ele pode assim definir o Estado, no sentido alargado, como o “conjunto das atividades práticas e teóricas graças às quais a classe dirigente não apenas justifica e mantém a sua dominação, mas consegue obter o consenso ativo dos governados [20]”.
Por outro lado, a hegemonia político-cultural de uma classe tem também, necessariamente, uma dimensão económica. É isso que se demonstra mais uma vez com a conceção gramsciana do americanismo, analisada aqui por Pierre Musso – que sublinha, de maneira original, um certo número de semelhanças com o produtivismo de Saint-Simon. Na situação sócio-histórica dos Estados Unidos do início do século XX, com efeito, “a hegemonia nasce da fábrica [nasce dalla fabbrica] e só tem necessidade, para ser exercida, de um número limitado de intermediários profissionais da política e da ideologia [21]”. Assenta menos na mediação do Estado ou de organizações da sociedade civil ou em ideologias e conceções do mundo construídas e difundidas por diferentes estratos de intelectuais do que na eficácia e dinamismo da produção (incluindo a rapidez das inovações técnicas) e o nível relativamente elevado dos salários. Mais ainda, Musso defende de forma convincente, a propósito do neoliberalismo mas a partir de sugestões de Gramsci, que os métodos aplicados no processo de produção e na gestão da mão de obra (a administração em primeiro lugar) podem produzir os seus próprios intelectuais e ideologias orgânicas, capazes de se espalharem no resto da sociedade e de aí produzirem efeitos de hegemonia.
A estrutura, o acontecimento e o historicismo realista de Gramsci
A atenção dedicada por Gramsci à emergência de uma lógica capitalista nova (o fordismo americano) capaz de ultrapassar – em certa medida e provisoriamente – a crise da época anterior, não o leva a escamotear as contradições sociais e os conflitos políticos. Mais geralmente, Gramsci não abstrai nunca os sistemas sócio-económicos das atividades humanas das quais deriva a sua eficácia. Da igual forma, apesar de destacar fenómenos históricos massivos (a emergência de uma nova lógica económica, o estabelecimento ou a manutenção de uma certa hegemonia, etc.), discerne-os em situações históricas singulares e concebe-os como emergindo de lutas sócio-políticas. O “historicismo realista” de Gramsci – ou seja o que faz jus à realidade histórica concreta – esforça assim por escapar a duas armadilhas [22]. Por uma lado, recusa adotar uma perspetiva subjetivista e idealista, como testemunha a sua crítica do “historicismo especulativo” [23] do filósofo neo-hegeliano Benedetto Croce, que, a seu ver, substancializa e até personaliza a histórica nos traços de um Espírito perpetuamente agente e dissolve desta forma o que no processo histórico é consistente ou estruturado. Por outro lado, Gramsci afasta-se de uma conceção objetivistas e mecanicista, encarnada nomeadamente na apresentação do materialismo histórico feita por Bukharin no seu Manual Popular [24] que, para ele, não capta, devido ao seu determinismo, esta dimensão constitutiva da história que é a atividade humana [25].
O marxismo estruturalista, sendo mais rico e articulado, constitui igualmente uma compreensão objetivista do materialismo histórico. No seu artigo, Francesca Izzo mostra a importância da relação crítica que Althusser mantém com o historicismo e com Gramsci em particular para o seu próprio pensamento e para a história do marxismo em geral [26]. Para Althusser, a ciência da história que é o materialismo histórico deve forjar, de forma abstrata, a teoria das estruturas sócio-históricas objetivas (como o modo de produção capitalista). Deve por isso proteger-se do historicismo e do empirismo ao qual está ligado e isso por, pelo menos, duas razões. Por um lado, indexar a teoria às flutuações históricas, e portanto fazê-la depender da conjuntura imediata, conduziria ao revisionismo e ao oportunismo. Por outro lado, crer ter um acesso imediato – através da experiência e sem o desvio da teoria – à história concreta, implica continuar a preso a categorias ideológicas (como a de sujeito) que nos condenam a desconhecer a realidade social, apreendendo-a nomeadamente a partir de ações livres e conscientes dos sujeitos humanos mais do que a partir de estruturas inteligíveis e determinantes. Segundo Althusser, Gramsci expor-se-ia a estes dois perigos. Os caminhos teóricos, em primeiro lugar epistemológicos, percorridos pelos dois autores divergem radicalmente e não é possível avaliar aqui os seus méritos respetivos. Pode-se contudo afirmar que algumas das críticas lançadas por Althusser não são pertinentes: o “historicismo realista” gramsciano está longe de cair no empirismo ingénuo que ele denuncia mas dedica-se, pelo contrário, a compreender os fenómenos históricos de grande amplitude e “estuturados”, e isto a parte de noções gerais (hegemonia, Estado integral, bloco histórico, etc.); e a “filosofia da praxis” fazendo justiça à atividade humana não conduz a abstrair ou absolutizar os sujeitos – quer sejam individuais ou coletivos –, mas pelo contrário a concebê-los como necessariamente envolvidos em relações sociais vinculativas e como definidos por estas relações [27].
Gramsci não vê assim os fenómenos históricos nem como integralmente determinados nem como completamente contingentes; ainda que não sejam desenvolvimentos perfeitamente objetivos, não são acontecimentos puros. Uma crise orgânica é, desta forma, um caso em que se manifesta por excelência a unidade dialética da continuidade e da descontinuidade na história: as suas origens estão em contradições profundas [28] e tem seguimento acentuando-as a partir das tendências fundamentais do processo histórico mas constitui um período no qual a possibilidade de uma rutura com o passado está particularmente viva sem que nada garanta contudo a sua realização. É o que indica a célebre tese segundo a qual “a crise consiste precisamente no facto de que o antigo morre enquanto o novo não pode ainda nascer”, o que abre um “interregno”, durante o qual “se observam os fenómenos mórbidos mais variados [29]”, na própria medida em que as contradições anteriores não estão ainda ultrapassadas. Na sua contribuição a esta obra, Fabio Frosini mostra que a noção de crise é decisiva nos Cadernos da Prisão – nos quais é mobilizada como paradigma para compreender a época burguesa-moderna no seu conjunto [30] – e defende que esta permite criticar e evitar as armadilhas com que se depararam teóricos que, como Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, erigem a noção de acontecimento a categoria primeiro da compreensão histórica [31]. Na sua primeira obra “pós-marxista”, Hegemonia e Estratégia Socialista publicada em 1985, estes autores, reivindicando-se do pensamento de Gramsci, atacam o essencialismo e o economicismo que, para eles, caracterizam o marxismo. A seu ver, as subjetividades coletivas não são determinadas pela sua situação económica mas são fruto de uma articulação política – perfeitamente contingente – entre forças aliadas, sob a égide de uma força hegemónica e contra forças antagónicas [32]. Por exemplo se o movimento operário se mostrou durante muito tempo como o portador da emancipação humana no seu conjunto não foi, ao contrário do que o marxismo teorizou segundo eles, porque o proletariado seria, devido à sua posição económica nas relações de produção capitalistas, uma classe essencialmente universal cuja libertação implicaria o fim de toda a dominação mas mais porque todas as organizações comunistas e socialistas conseguiram, de forma contingente, agregar politicamente um conjunto de reivindicações emancipatórias heterogéneas (feministas, anti-autoritárias, anti-imperialistas, etc.) em torno de um projeto anticapitalista, hegemónico na medida em que representava toda a série destas reivindicações [33]. Nada garantia que esta articulação fosse bem sucedida nem que durasse; e, reciprocamente, outras articulações (em que outras reivindicações, feministas, ou anti-imperialistas por exemplo, tivessem desempenhada um papel hegemónico) teria sido possíveis. A identidade de um ator coletivo como o movimento operário estaria assim integralmente dependente das reivindicações que assume, das modalidades segundo as quais consegue as articular e dos inimigos contra os quais luta.
Ora, sabe-se que Gramsci recusa uma tal conceção unilateral das subjetividades coletivas que apenas se liga à sua dimensão político-ideológica e oculta a sua ancoragem em situações sócio-económicas determinadas. A tarefa da filosofia da praxis é precisamente pensar a dialética entre a ação humana e as suas condições e – este segundo par não se sobrepondo ao primeiro – entre a política e a economia. Fabio Frosini mostra ainda que as reflexões dos Cadernos da Prisão se opõem à visão do tempo histórico de Laclau. Para este último, na medida em que cada configuração sócio-histórica apenas é definida por uma articulação política contingente, é preciso pensar a realidade social como podendo ser abalada a cada instante por um acontecimento puro que não é determinado por uma configuração anterior [34]. Obviamente, como salienta Fabio Frosini, Gramsci não concebe a história como o desenvolvimento contínuo de um princípio dado desde o início, quer se trate do desdobramento da Razão descrita numa perspetiva hegeliana, ou da maturação progressiva das contradições do capitalismo da grande narrativa das versões essencialistas do marxismo. Mas também não vê aí descontinuidades absolutas ou momentos de indeterminação pura. Se é evidente que acontecimentos como a Revolução de Outubro têm uma importância decisiva para Gramsci, ele não os apreende de forma isolada e dedica-se sempre a dar conta das tendências históricas em que se inscrevem, bem como da situação sócio-histórica determinada em que ocorrem que no caso de uma revolução corresponde precisamente a uma crise. A seu ver, a história é o lugar, sempre “pleno”, dos conflitos entre diferentes forças: uma crise de hegemonia não é um vazio de hegemonia mas o vacilar do sistema hegemónico atual devido ao empurrão de uma outra classe no caminho para uma nova hegemonia.
Yohann Douet é especialista no pensamento de Gramsci e membro da redação da revista Contretemps. Texto publicado originalmente na revista Contretemps. Traduzido por Carlos Carujo para o Esquerda.net.
Notas
[1] Agradeço a Vincent Heimendinger, Richard Lagache e Marion Leclair pelas leituras perspicazes e observações pertinentes.
[2] Sobre a importância de não reduzir a hegemonia à sua dimensão cultural, ver a página 27 deste livro.
[3] Esta expressão foi empregue por Jacques Texier em Gramsci, théoricien des superstructures, La Pensée, n°139, juin 1968, p.35-60. Lembremos que Texier sublinha a unidade dialética entre estruturas e superestruturas em Gramsci.
[4] Ver por exemplo Norberto Bobbio, Gramsci e la concezione della società civile, em Saggi su Gramsci, Feltrinelli, Milan, 1990, p. 38-65.
[5] “A estrutura compacta [massiccia] das democracias modernas, tanto como organizações de Estado quanto como conjunto de associações na vida civil, constitui para a arte política o equivalente das trincheiras e das fortificações permanentes da frente na guerra de posições: ao passo que antes o movimento era “tudo” na guerra, etc., reduzem-se a ser um elemento “parcial”.” (Caderno 13, §7, em Cahiers de prison, Paris, Gallimard, 1978-1996, p. 364).
[6] Caderno 10 II §12, p. 55; Caderno 11, §27, p. 235.
[7] A filosofia da praxis “é a plena consciência das contradições na qual o próprio filósofo, compreendido de forma individual ou como o conjunto de um grupo social, não apenas compreende as contradições mas se coloca a si próprio como elemento da contradição, elevando este elemento ao estatuto de princípio de conhecimento e por conseguinte de ação” (Caderno 11, §62, p. 283).
[8] Pode-se constatá-lo na leitura do seu primeiro artigo, “Neutralidade ativa e agente” (31 de outubro de 1914), em Ecrits politiques, Gallimard, Paris, 1974-1980, tome 1, p. 63-67.
[9] “A revolução contra O Capital” (publicado – em parte censurado – a 24 de dezembro de 1917 na edição milanesa do Avanti!, retomado no Il Grido del Popolo a cinco de janeiro de 1918), em Écrits politiques , op. cit., tome 1, p. 135-138.
[10] Il Grido del Popolo, 4 de maio de 1918, em Écrits politiques, op. cit., tome 1, p. 145-149.
[11] L’Ordine nuovo foi fundado no 1º de maio de 1919. Originalmente foi dirigido por Angelo Tasca e tinha como objetivo contribuir para construir uma cultura proletária. A sua linha muda rapidamente sob o impulso de Gramsci, seguido por Togliatti e Terracini: o semanário torna-se porta-voz das lutas dos operários turineses e promove nomeadamente o desenvolvimento dos conselhos de fábrica com a finalidade de realizar a “democracia operária” (título do artigo de 21 de junho de 1919 que inaugura esta nova linha).
[12] A expressão biennio rosso, os dois anos vermelhos, diz respeito ao conjunto de lutas sociais particularmente possantes e radicais que se desenrolaram em 1919 e 1920. No campo, os camponeses pobres e jornaleiros ocupam as terras. Em Milão, Génova e sobretudo Turim (capital industrial da Itália e sede da Fiat), os operários auto-organizam-se em conselhos, fazem greve massiva, ocupam as fábricas, implementam milícias de auto-defesa e relançam por si próprios a produção. A ausência de apoio por parte das direções do PSI e da CGL (Confederação Geral do Trabalho, o principal sindicato), as concessões ilusórias e rapidamente esquecidas por parte do patronato no quadro de negociações enviesadas, a repressão estatal e os assaltos dos fascistas finalmente levaram a melhor sobre o movimento. A responsabilidade do PSI nesta derrota reforça a crença de Gramsci na necessidade de formar um novo partido, a partir dos elementos revolucionários do PSI. Algumas semanas depois do fim do movimento (em novembro de 1920) defenderá esta linha no congresso do PSI em Livorno.
[13] O Partido Comunista de Itália (PCd’I) vai-se renomear Partido Comunista Italiano (PCI) em 1943.
[14] Ver nomeadamente Caderno 11, §§ 47-49, p. 264-269. Gramsci desenvolve a noção de “tradutibilidade” entre “culturas nacionais”, entre “linguagens científicas” e entre os campos da realidade para os quais estas reenviam, a partir da ideia – que remonta pelo menos a Hegel, passando por Marx, Kautsky ou Lénine – segundo a qual existiria uma correspondência ou uma convertibilidade entre a política francesa, a filosofia alemã e a economia inglesa. Sobre este tema ler: Romain Descendre e Jean-Claude Zancarini, De la traduction à la traductibilité: un outil d’émancipation théorique(link is external), Laboratoire italien, n°18, 2016/2.
[15] Ver Fabio Frosini, Gramsci e la filosofia. Saggio sui «Quaderni del carcere», Carocci, Roma, 2003, e La religione dell’uomo moderno. Politica e verità nei «Quaderni del carcere» di Antonio Gramsci, Carocci, Roma, 2010; e Giuseppe Vacca, Modernità alternative. Il Novecento di Antonio Gramsci, Einaudi, Turim, 2017.
[16] Sobre a importância das reflexões económicas em Gramsci, ver Giuliano Guzzone, Gramsci e la critica dell’economia politica. Dal dibattito sul liberismo al paradigma della «traducibilità», Viella, Rome, 2018.
[17] A conceção complexa dos fenómenos e dos atores históricos, que não abandona contudo a ideia do papel central das classes, transparece bem na seguinte passagem – que Giuseppe Vacca cita aliás no seu texto: “A conceção do Estado segundo a função produtiva das classes sociais não se pode aplicar mecanicamente à interpretação da história italiana e europeia da Revolução Francesa ao fim do século XIX. Ainda que seja certo que, para algumas classes produtivas fundamentais (a burguesia capitalistas e o proletariado moderno), o Estado seja apenas concebível como a forma concreta de um mundo económico determinado, de um sistema de produção determinado, não é seguro que a relação entre o fim e os meios seja facilmente identificável e tome a forma de um esquema simples e óbvio à primeira vista. […] Há também o problema complexo das relações de forças internas do país considerado, da relação das forças internacionais, da posição geopolítica do país” (Caderno 10 II §61, p. 157).
[18] Caderno 12, §1, p. 314.
[19] Caderno 6, §88, p. 83; Caderno 6, §155, p. 126. Ver também a carta a Tania de sete de setembro de 1931, em Lettres de prison, Gallimard, Paris, 1971, p. 333.
[20] Caderno 15, §10, p.10. Sobre a conceção de Estado em Gramsci ver a obra clássica e sempre pertinente de Christine Buci-Glucksmann, Gramsci et l’État: pour une théorie matérialiste de la philosophie, Fayard, Paris, 1975.
[21] Caderno 22, §2 p. 183, o texto A (primeira redação da nota) encontra-se no Caderno 1, §61 (publicado apenas em italiano: Quaderni del carcere, Einaudi, Turin, 1975, tome 1, p. 72).
[22] Sobre estas questões permito-me reenviar para Yohann Douet, Affronter la crise de la modernité: hégémonie et sens de l’histoire chez Gramsci(link is external), Actuel Marx, n°68, 2020/2, p. 175-192.
[23] Sobre a oposição entre historicismo “especulativo” e “realistas” ver nomeadamente Caderno 10 I Sumário, p. 17, Caderno 10 I §8 p.31-33, e Caderno 10 I §11, p.39.
[24] Nikolaï Bukharin, La théorie du matérialisme historique. Manuel populaire de sociologie marxiste [1921], Anthropos, Paris, 1969.
[25] A crítica de Croce está em grande medida desenvolvida no Caderno 10 e a de Bukharin no 11.
[26] Salientemos que os textos de Althusser deram um impulso decisivo à investigação sobre Gramsci em França. Uma parte importante dos estudos em francês sobre a sua obra foram assim escritos por autores influenciados mais ou menos diretamente por Althusser (Christine Buci-Glucksmann, Maria-Antonietta Macchiocchi, Hugues Portelli, André Tosel). O artigo de André Tosel neste livro regressa a certos elementos da história das leituras gramscianas em França. Para um estudo aprofundado da receção francesa de Gramsci, vejam-se os trabalhados de Anthony Crézégut, particularmente a sua tese: Inventer Gramsci au XXe siècle. Décomposition d’une intelligence française au prisme italien.
[27] Para uma discussão destes pontos e uma resposta aos críticos althusserianos podemos indicar Peter Thomas, The Gramscian Moment. Philosophy, Hegemony and Marxism, Brill, Leiden/Boston, 2009. Sobre a relação complexa de Althusser relativamente a Gramsci e as suas evoluções ao longo do seu percurso intelectual e político ver também Vittorio Morfino, Althusser lecteur de Gramsci(link is external), Actuel Marx, n° 57, 2015/1, p.62-81.
[28] “Uma crise, que por vezes se prolonga durante décadas, produz-se: esta duração excecional significa que na estrutura se revelam (alcançam a maturidade) contradições irremediáveis e que as forças políticas que trabalham positivamente para a conservação e defesa da própria estrutura se esforçam por remediá-la no interior de certos limites e de os ultrapassar.” (Caderno 13, §17, p.377, texto A no Caderno 4, §38, publicado apenas em italiano: Quaderni del carcere, op. cit., tome 1, p.455).
[29] Caderno 3, §34, p. 283.
[30] “O desenvolvimento do capitalismo foi, se nos podemos exprimir desta forma, uma “crise contínua”, um movimento muito rápido de elementos que se equilibram e se neutralizam”. (Caderno 15, §5, p.112).
[31] A crítica de Fabio Frosini poder-se-ia a um autor como Alain Badiou que atribui uma importância filosófica fundamental às noções de acontecimento e de sujeito, ainda que a discussão seja mais difícil de fazer do que com Laclau e Mouffe que pretendem construir o seu próprio pensamento a partir do de Gramsci.
[32] “Para Gramsci, os sujeitos políticos não são – estritamente falando – as classes mas as “vontades coletivas” complexas; da mesma forma, os elementos ideológicos articulados por uma classe hegemónica não têm uma pertença de classe necessária. […] A vontade coletiva é uma consequência da articulação político-ideológica de forças históricas dispersas e fragmentadas” (Ernesto Laclau et Chantal Mouffe, Hégémonie et stratégie socialiste. Vers une politique démocratique radicale, Les Solitaires Intempestifs, Besançon, 2009, p.140-1).
[33] A centralidade política da classe operária tem um caráter histórico, contingente: exige da classe que saia de si mesma, que transforme a sua própria identidade articulando uma pluralidade de lutas e de reivindicações democráticas” (ibid., p. 145).
[34] Esta conceção foi exposta longamente por Ernesto Laclau em New Reflections on the Revolution of Our Time, Verso, Londres, 1990. Contudo, os seus pressupostos encontravam-se já em Hégémonie et stratégie socialiste…, op.cit.: os autores afirmavam aí que, para Gramsci, a história é “uma série descontinua de formações hegemónicas ou de blocos históricos” (ibid., p.147).