A emergência climática e ecológica é, evidentemente, apenas um sintoma de uma crise de sustentabilidade muito maior. Mas é ingénuo pensar que poderíamos resolver esta crise sem enfrentar as raízes da mesma.
Greta Thunberg, The Guardian / Esquerda.net, 30 de outubro de 2021
Greta Thunberg na greve climática estudantil de 24 de setembro de 2021 em Berlim.
O Secretário-Geral da ONU, António Guterres, chamou ao recente relatório do IPCC sobre a crise climática um "código vermelho(link is external)" para a humanidade. "Estamos à beira do abismo", disse ele.
Poder-se-ia pensar que essas palavras soariam como uma espécie de alarme na nossa sociedade. Mas, como tantas vezes antes, isto não aconteceu. A negação da crise climática e ecológica é tão profunda que já quase ninguém se apercebe realmente disso. Uma vez que ninguém trata a crise como uma crise, os avisos existenciais continuam a afogar-se numa maré constante de greenwash e de fluxo diário de notícias nos meios de comunicação social.
E no entanto ainda há esperança, mas toda a esperança começa pela honestidade.
Porque a ciência não mente. Os factos são cristalinos, mas apenas nos recusamos a aceitá-los. Recusamo-nos a reconhecer que agora temos de escolher entre salvar o planeta vivo ou salvar o nosso modo de vida insustentável. Porque queremos ambos. Exigimos ambos.
Mas a verdade inegável é que deixámos que ficasse demasiado tarde para isso. E por mais desconfortável que essa realidade possa parecer, foi exactamente isto que os nossos líderes escolheram para nós com as suas décadas de inação(link is external). As suas décadas de blá, blá, blá.
A ciência não mente. Se quisermos ficar abaixo dos objetivos estabelecidos no acordo de Paris de 2015 - e assim minimizar os riscos de desencadear reações irreversíveis em cadeia para além do controlo humano - precisamos de reduções de emissões imediatas, drásticas e anuais, ao contrário de tudo o que o mundo alguma vez viu. E uma vez que não temos as soluções tecnológicas que, por si só, farão algo próximo disso num futuro previsível, isso significa que temos de fazer mudanças fundamentais na nossa sociedade.
Estamos agora a caminho de um mundo mais quente em pelo menos 2,7ºC(link is external) até ao final do século - e isso só se os países cumprirem todas as promessas que fizeram. Hoje em dia, estão muito longe disso. Estamos "aparentemente a anos-luz de atingir os nossos objetivos de ação climática", para citar mais uma vez Guterres.
Na verdade, estamos a acelerar na direção errada. Prevê-se que 2021 venha a registar o segundo maior aumento de emissões(link is external) jamais visto, e espera-se que as emissões globais aumentem 16%(link is external) até 2030, em comparação com os níveis de 2010. De acordo com a Agência Internacional de Energia, apenas 2% da despesa(link is external) de recuperação "build back better" dos governos foi investida em energia limpa, ao mesmo tempo que a produção e queima de carvão, petróleo e gás foi subsidiada em 5,9 biliões(link is external) de dólares só em 2020. A produção mundial prevista de combustíveis fósseis até ao ano 2030 representa mais do dobro(link is external) do montante que seria consistente com a meta de 1,5C. Esta é a forma da ciência nos dizer que já não podemos alcançar os nossos objetivos sem uma mudança de sistema. Porque fazê-lo exigiria rasgar contratos e abandonar acordos a uma escala inimaginável - algo que simplesmente não é possível no sistema atual.
Em suma, estamos a falhar totalmente até mesmo em atingir objetivos que à partida são completamente insuficientes. E essa não é a pior parte. No meu próprio país, a Suécia, uma investigação jornalística concluiu recentemente que, uma vez incluídas todas as emissões reais da Suécia (territoriais, biogénicas, consumo de bens importados, queima de biomassa, investimentos em fundos de pensões, etc.), apenas um terço do total líquido(link is external) é contabilizado nas metas climáticas do país. É razoável supor que não se trata apenas de um fenómeno sueco.
Certamente que o primeiro passo para enfrentar a crise climática deve ser a inclusão de todas as nossas emissões reais nas estatísticas, a fim de obter uma visão global. Isto permitir-nos-ia avaliar a situação e começar a fazer as mudanças necessárias. Mas esta abordagem não foi adotada - ou mesmo proposta - por nenhum líder mundial. Em vez disso, todos eles recorrem a tácticas de comunicação e relações públicas para fazer parecer que estão a tomar medidas.
Um exemplo claro é o Reino Unido - uma nação que produz actualmente 570 milhões de barris(link is external) de petróleo e gás por ano. Uma nação com mais 4,4 mil milhões de barris(link is external) de petróleo e gás a serem extraídos da plataforma continental. Uma nação que também se encontra entre os 10 maiores emissores da história(link is external). As nossas emissões permanecem na atmosfera até mil anos e já emitimos cerca de 89% do orçamento de CO2, o que nos dá uma probabilidade de 66% de ficarmos abaixo de 1,5C. É por isso que as emissões históricas e o aspeto da equidade não só contam - elas constituem basicamente 90% de toda a crise.
Entre 1990 e 2016, o Reino Unido reduziu as suas emissões territoriais em 41%. Contudo, uma vez incluído o valor total(link is external) das emissões do Reino Unido - como o consumo de bens importados, a aviação internacional e o transporte marítimo - a redução passa a ser de 15%(link is external). E isto exclui a queima de biomassa, como na central de Selby da Drax - uma central fortemente subsidiada chamada "renovável" que é, segundo a análise, o maior emissor de CO2(link is external) do Reino Unido e o terceiro maior de toda a Europa. E, no entanto, o governo ainda considera o Reino Unido como um líder global em matéria de clima.
O Reino Unido está, evidentemente, longe de ser o único país a contar com uma contabilidade de carbono tão criativa. Esta é a norma. A China, que atualmente é de longe o maior emissor mundial de CO2, planeia construir 43 novas centrais elétricas a carvão(link is external) para além das 1.000 centrais já em funcionamento - ao mesmo tempo que afirma ser um "pioneiro" ecológico(link is external) empenhado em deixar "um mundo limpo e belo às gerações futuras". Ou olhemos para a nova administração dos EUA, afirmando "ouvir a... ciência(link is external)" mesmo que - entre muitas outras decisões imprudentes(link is external) - tenha recentemente anunciado planos para abrir milhões de acres para petróleo e gás que poderão resultar na produção de até 1,1 mil milhões de barris de crude(link is external) e 4,4 biliões de pés cúbicos de gás fóssil. Sendo de longe o maior emissor da história, bem como o maior produtor mundial de petróleo, isso não parece envergonhar os EUA enquanto afirmam ser um líder climático.
A verdade é que não há líderes climáticos. Ainda não. Pelo menos não entre as nações com rendimentos altos. O nível de consciência do público e a pressão sem precedentes dos meios de comunicação social que seria necessária para que qualquer liderança real aparecesse é ainda basicamente inexistente.
A ciência não mente, nem nos diz o que devemos fazer. Mas dá-nos uma imagem do que precisa de ser feito. Somos, evidentemente, livres de ignorar essa imagem e permanecer em negação. Ou de continuar a esconder-nos atrás de uma contabilidade hábil, lacunas e estatísticas incompletas. Como se a atmosfera se preocupasse com os nossos quadros. Como se pudéssemos discutir com as leis da física.
Como disse Jim Skea, um dos principais cientistas do IPCC(link is external): "Limitar o aquecimento a 1,5ºC é possível dentro das leis da química e da física, mas fazê-lo exigiria mudanças sem precedentes". Para que a COP26 em Glasgow seja um sucesso, será necessário muitas coisas. Mas acima de tudo, será necessário honestidade, solidariedade e coragem.
A emergência climática e ecológica é, evidentemente, apenas um sintoma de uma crise de sustentabilidade muito maior. Uma crise social. Uma crise de desigualdade que remonta ao colonialismo e mais além. Uma crise baseada na ideia de que algumas pessoas valem mais do que outras e, portanto, têm o direito de explorar e roubar a terra e os recursos de outras pessoas. Tudo isto está interligado. É uma crise de sustentabilidade em que todos beneficiariam com a sua resolução. Mas é ingénuo pensar que poderíamos resolver esta crise sem enfrentar as raízes da mesma.
As coisas podem parecer muito sombrias e sem esperança, e dada a torrente de relatos e da escalada de incidentes, o sentimento de desespero é mais do que compreensível. Mas temos de nos lembrar que ainda podemos dar a volta a isto. É inteiramente possível, se estivermos preparados para mudar.
A esperança está à nossa volta. Porque só é realmente preciso um - um líder mundial ou uma nação de alto rendimento ou uma grande estação de televisão ou jornal de referência que decida ser honesto, para tratar verdadeiramente a crise climática como a crise que ela é. Um líder que considere todos os números - e que depois tome medidas corajosas para reduzir as emissões ao ritmo e à escala que a ciência exige. Depois, tudo poderia ser posto em marcha para a ação, esperança, propósito e sentido.
O relógio está a contar. As cimeiras continuam a acontecer. As emissões continuam a crescer. Quem vai ser esse líder?
Greta Thunberg é uma ativista sueca que inspirou um movimento de greves escolares contra a inação climática do governo. Artigo publicado no Guardian(link is external). Traduzido por Luís Branco para o Esquerda.net.