Talvez um dos pontos do balanço crítico do ciclo progressista que mais tenha consenso seja o de sua contradição entre o impulso de políticas que apontam para a recuperação da soberania e o modelo econômico centrado no extrativismo e na exportação de matérias-primas que o sustenta. Apesar dos avanços em matéria de redistribuição da renda, a base produtiva sobre a qual os governos progressistas assentaram suas políticas restringe a possibilidade de avançar em transformações na raiz.
Eduardo Gudynas é pesquisador no Centro Latino-Americano de Ecologia Social (CLAES). Seu último livro é Transiciones. Post extractivismo y alternativas al extractivismo en el Perú.
Thea Riofrancos entrevista Eduardo Gudynas, Jacobin América Latina, 1 de agosto de 2021. A tradução é do Cepat.
Os governos progressistas das últimas décadas fizeram importantes avanços em matéria de “políticas soberanistas”: do banco, do gasto público, da política externa, etc. No entanto, em matéria socioambiental, foram questionados por diversos ângulos. Talvez o assunto mais espinhoso seja o de qual tipo de soberania puderam – ou pretenderam – promover com um modelo econômico centrado na extração e exportação de matérias-primas, ou seja, em uma base produtiva que, conforme se destacou, conduz mais ao aprofundamento da dependência do que a uma ampliação da soberania. Qual é a sua leitura do tipo de desenvolvimento empreendido durante o chamado “ciclo progressista”?
A avaliação das estratégias de desenvolvimento do progressismo está demonstrando não ser simples. No interior dos países, é reivindicada, mas ao mesmo tempo há muitos protagonistas desse ciclo que a estorvam, seja por sua sincera convicção de ter feito o certo, como pela intenção de esconder erros.
Sob os progressismos, o banco privado viveu um paraíso: aumentou sua cobertura sobre a população e a financeirização se diversificou – Eduardo Gudynas
As recentes campanhas eleitorais (por exemplo, na Bolívia e Equador) a condicionaram ainda mais, pois as energias foram colocadas em voltar a ganhar o governo. Mas a isso se sobrepõe um emaranhado de opiniões e analistas transnacionalizados – tanto dentro da América Latina como de fora – que abusaram de simplificações e slogans.
Por exemplo, vocês me dizem que os progressismos conseguiram “políticas soberanistas” no setor bancário e em outros. Afirmações assim são muito comuns, em especial no Norte Global. Mas isso está errado. Na realidade, sob os progressismos, o banco privado viveu um paraíso: aumentou sua cobertura sobre a população e a financeirização se diversificou.
Isso ocorreu sob governos como o de Correa, no Equador, o de Lula da Silva, no Brasil, e o da Frente Ampla, no Uruguai, entre outros. É assim que se explica a bancarização obrigatória no Uruguai e a expansão da financeirização para setores como o do consumo popular, educação e saúde, no Brasil.
É uma simplificação partir de uma oposição, como se tudo o que foi feito em diferentes setores (educação, saúde, moradia e integração) tivesse sido soberanista e maravilhoso e todo o negativo estivesse nos extrativismos e em seus impactos.
Na realidade, os progressismos estiveram cheios de luzes e sombras. Tiveram avanços, estagnações e retrocessos dentro de cada setor. É preciso comemorar que tenham reduzido a pobreza e a marginalidade, por exemplo, pois isso trouxe alívio a milhões de famílias, mas também é preciso saber reconhecer as limitações que tiveram em sua marcada dependência dos auxílios monetários condicionados aos mais pobres ou do crédito para o consumo popular.
Também se deve parabenizar seus investimentos em infraestrutura, que no Equador, nesse caso, ficam evidentes nas rodovias e pontes. Mas, ao mesmo tempo, é preciso compreender que se perdeu muito dinheiro dentro dos labirintos estatais, seja por meios lícitos, mas ineficientes, como também pela corrupção.
Os progressismos – em termos gerais e muito esquemáticos – se concentraram em um tipo de capitalismo que buscou capturar uma proporção maior de excedente para tentar uma redistribuição econômica – Eduardo Gudynas
Essas contradições se devem ao fato de que os progressismos – em termos gerais e muito esquemáticos – se concentraram em um tipo de capitalismo que buscou capturar uma proporção maior de excedente para tentar uma redistribuição econômica. Mas fizeram isso apelando a práticas concretas que, como os extrativismos e o consumo de massas, exigiam sua subordinação ao capital.
Isso aconteceu por diversas vias: blindaram o setor financeiro, aprofundaram a exportação de matérias-primas, capturaram o investimento estrangeiro e aderiram plenamente à institucionalidade global (como a Organização Mundial do Comércio).
Algo que funcionou por meio de equilíbrios em que o Estado progressista buscava regular o capital e, ao mesmo tempo, não podia deixar de ceder diante dele. Esses equilíbrios eram instáveis, mas enquanto os preços das matérias-primas eram altos, o excedente apropriado conseguia sustentar as medidas de compensação e amortização. Mas quando os preços das commodities caíram, esse esquema não foi mais possível. E isso aconteceu ao mesmo tempo em que a capacidade de renovação política do progressismo se esgotou.
Para além da conjuntura política, todas as economias latino-americanas seguem compartilhando certas características centrais: os setores econômicos predominantes se baseiam na extração de recursos, na agricultura de monocultura e na indústria de baixos salários. Em termos de emprego, a região é marcada por um grande setor informal, bem como pela prática enraizada de precarização e terceirização, o que resulta em uma classe operária que trabalha na precariedade extrema, sem uma rede de seguridade social. E em relação à sua inserção no sistema mundial, a região se encontra em uma posição de dependência, caracterizada pelas exportações de baixo valor agregado, plena integração aos mercados globais e elevados níveis de dívida soberana. O que a pandemia e a crise econômica revelaram a respeito do modelo de acumulação da região? Que abordagem deve orientar a recuperação latino-americana e em que escala deve ser concebida e implementada?
Pelo Centro Latino-Americano de Ecologia Social, temos acompanhado a crise da pandemia em todo o continente. O que observamos é que a crise atual se sobrepõe a várias crises que já estavam em andamento em 2019 e antes. Por sua vez, embora existam semelhanças, as diferenças entre os países também são muito importantes.
Os governos voltam a buscar nos extrativismos a solução para atenuar a crise econômica. Todos os países da América do Sul, sem exceção, tentam aumentar suas exportações de matérias-primas – Eduardo Gudynas
Não é o mesmo que acontece, por exemplo, no Brasil ou no Chile, no México ou na Colômbia. Após essa consideração, é possível dizer que são observados diferentes graus de colapso, queda ou misérias na política e no papel dos governos.
Em alguns casos, isso é extremo, como se observa com a inação e o autoritarismo de Jair Bolsonaro, no Brasil. Mas outras situações também são dramáticas, como a vivida no Peru, onde enquanto os contágios avançavam, a política de partidos desmoronava.
Nesse desespero, os governos voltam a buscar nos extrativismos a solução para atenuar a crise econômica. Todos os países da América do Sul, sem exceção, tentam aumentar suas exportações de matérias-primas e, simultaneamente, agregar novos setores (como a mineração de lítio e a expansão das monoculturas transgênicas).
Entendo que uma saída da condição pandêmica não é iminente. Essa não é uma crise de alguns anos, mas dado o colapso do sistema de saúde e a desigualdade no acesso às vacinas, o coronavírus é a nova normalidade. Durante um longo tempo, estaremos com economias deprimidas, com aumentos e diminuições nos contágios e mortes, cidades sob controle policial e um aumento escandaloso da pobreza e o desemprego.
O medo do vírus fez a política retroceder a uma situação em que se resigna diante da morte (não se defende mais diante dela) e a aceita no cotidiano - Eduardo Gudynas
O dado, a meu modo de ver, é que nesse contexto está se cristalizando uma transformação política que já estava prefigurada (por exemplo, sob o conservadorismo de Uribe e Duque, na Colômbia, o fujimorismo, no Peru, e, em grau extremo, Bolsonaro e a ultradireita brasileira). Trata-se de uma verdadeira necropolítica, a política do deixar morrer.
É diferenciar vidas resgatáveis de outras descartáveis – como as dos pobres, negros, camponeses ou indígenas – para as quais o Estado e a sociedade não oferecem mais soluções, e isso passa a ser aceito pelas maiorias. O medo do vírus fez a política retroceder a uma situação em que se resigna diante da morte (não se defende mais diante dela) e a aceita no cotidiano.
Para além do momento da recuperação, qual é o horizonte político da esquerda? Se entendemos a pandemia de Covid-19 como a primeira grande crise ecológica em escala mundial, será que chegou o momento de um paradigma que aborde de maneira mais explícita os problemas – entrelaçados – da extração de recursos, o dano ecológico e a mudança climática? Em outras palavras, está na hora de avançar do “socialismo do século XXI” para o debate sobre o ecossocialismo, sobre um novo pacto ecossocial, uma economia democrática verde ou alguma outra formulação? Como define a sua visão de uma alternativa radical ao modelo econômico imperante, e como considera que as conexões fundamentais entre a economia e a natureza poderiam ser articuladas?
Para responder essa questão entendo que é necessário diferenciar entre esquerda e progressismo. Os agrupamentos políticos e os governos associados às imagens de Lula da Silva ou Evo Morales começaram com um estímulo da esquerda, mas uma vez no palácio de governo, e com o passar do tempo, transformaram-se em progressistas. Em minha avaliação, progressismo e esquerda são dois projetos políticos diferentes.
É evidente que um dos fatores que explicam a divergência entre aquela esquerda inicial e os progressismos seguintes foram os modos de apropriação dos recursos naturais e os entendimentos sobre o desenvolvimento. O progressismo invoca diferentes razões: da necessidade de combater a pobreza à espera de uma revolução mundial, mas aceita essa destruição ambiental.
Ao contrário, uma nova esquerda para o século XXI e focada na América Latina deve defender a natureza. Aqui, é preciso destacar essa condição de “nova”, porque a renovação deve estar em não repetir erros da esquerda clássica latino-americana do século XX (como sua aversão às questões ecológicas) e, por outro lado, resgatar seus acertos, como insistir em romper com o fato de sermos fornecedores de matérias-primas.
Do mesmo modo, essa nova esquerda deve deixar para trás a condição patriarcal, e isso significa rejeitar os machismos progressistas de hoje, como os comitês de dirigentes masculinos da esquerda do século passado. Situações análogas se repetem em outras dimensões, como, por exemplo, a interculturalidade e o papel dos povos originários, a globalização e outras.
Os últimos anos dos progressismos significaram retrocessos em alguns aspectos que não podem ser escondidos. Devem servir de lição para a nossa nova esquerda – Eduardo Gudynas
Contudo, entre elas, quero destacar o tema dos direitos humanos e a democracia. É que parte desse diagnóstico sobre os progressismos que continua pendente está em seu real desempenho em fortalecer a democracia e garantir a preservação dos direitos. Os últimos anos dos progressismos significaram retrocessos em alguns aspectos que não podem ser escondidos. Devem servir de lição para a nossa nova esquerda.
É também uma esquerda ancorada na América Latina e, portanto, própria de seus contextos históricos, sociais e ecológicos. Isso é algo que muitos dizem, mas o problema é que não são poucos os que, por fim, acabam repetindo receitas do Norte para impô-las a nossos esforços de renovar nossa esquerda crioula.
Uma das contribuições fundamentais dessa nova esquerda latino-americana foi prover outro modo de entender o valor. Esse era um aspecto central no debate andino, que nutriu as diferentes concepções do Bem Viver e, por sua vez, concretizou-se nos direitos da natureza na nova constituição do Equador.
Ao contrário, nas tradições ocidentais, compartilha-se uma teoria do valor onde só os seres humanos são sujeitos e agentes de apreciação. São antropocêntricas, e isso é evidente em conservadores e liberais, mas também está presente no socialismo, já que é o trabalho do humano que confere valor à natureza. O ecossocialismo faz parte dessa tradição – e sem dúvida expressa maiores avanços na responsabilidade ecológica –, mas carece, entre outras questões, de uma teoria do valor alternativa a essa visão predominante da modernidade.
O Bem Viver propõe uma mudança radical e, por isso, tem sido apresentado como uma alternativa, tanto ao capitalismo como ao socialismo. No Bem Viver, os extrativismos e a pobreza são intoleráveis porque violam os valores intrínsecos, tanto da natureza como dos humanos.
Como o ecossocialismo admite uma valorização instrumental, sempre poderá haver extrativismo, e é justamente isso o que aconteceu com Correa e Morales. Em teoria, há uma limitação: o ecossocialismo pode apelar ao Estado, mas acaba implementando o desenvolvimento (ainda que com um tipo diferente). Na prática, como para uma redistribuição econômica que garanta a equidade é necessário o crescimento econômico, termina em alguma forma de keynesianismo verde.
Dizer-se pós-socialista não significa rejeitar a contribuição da tradição socialista, pois o Bem Viver, com toda a tranquilidade, faz sua boa parte deste legado no campo da justiça social. O que se está dizendo é que essa versão do Norte do ecossocialismo não é mais suficiente para se constituir em uma alternativa. A alternativa latino-americana vai além dela e confirma que é uma ruptura com o capitalismo efetivado, movendo-se para a esquerda.
Compartilho isso porque entendo que uma das questões centrais na renovação da esquerda está em gerar uma nova teoria do valor, e esta não pode ser uma repetição da originada na Europa, dois séculos atrás, porque agora dispomos da nossa própria. Os progressismos e a academia, especialmente a do Norte, precisam respeitar e tolerar esses ensaios.
Por último, diante da possibilidade de um novo superciclo das ‘commodities’ e com o retorno de vários governos progressistas, que conselho ofereceria aos governos de esquerda ou centro-esquerda – tanto os atuais como futuros – da região? Como deveriam se orientar em um contexto de crise multidimensional, na qual outra ascensão das ‘commodities’ pode trazer consigo maior pressão para expandir a fronteira agrícola e extrativa? Como poderiam mudar suas economias nacionais para efetivar uma transição para a energia renovável, maior proteção social, agricultura regenerativa e outras alternativas econômicas ao extrativismo? Seria possível financiar uma transição desse tipo? É possível forjar um caminho nesse sentido, sem a coordenação dos governos de todo o Sul Global para colocar fim ao regime de dívida e austeridade imposto pelas instituições financeiras?
Nesse momento, os dois agrupamentos progressistas que voltaram ao governo (na Argentina e Bolívia) estão repetindo as estratégias extrativistas, e como são resistidas pelas comunidades locais, os conflitos se repetem. O governo de Alberto Fernández abrigou e subsidiou a exploração de hidrocarbonetos no sul do país, incluindo o fracking. A administração de Luis Arce está fragilizando o sistema de áreas de proteção ecológica para permitir o ingresso de petroleiras, mineradoras, hidrelétricas e sojeiras. Dessa forma, o debate entre esquerda e progressismos retornou ao primeiro plano. Os processos eleitorais na Bolívia, Equador e Peru estimularam ainda mais as polêmicas.
A esquerda deve ser verde, no sentido ecológico, feminista, na medida em que rompe com o patriarcado, intercultural, como expressão da incorporação de saberes e modos de sentir indígenas – Eduardo Gudynas
Para nós que estamos aqui no Sul, ficaram evidentes as limitações das opiniões precipitadas de fora, com o exemplo mais impactante das falas do cientista político espanhol Juan Carlos Monedero que, de Quito, vendo televisão, diagnosticava quem era índio e quem não era, no momento das eleições no Equador.
Faço esse destaque para insistir no ponto acima: a renovação e construção de uma esquerda latino-americana tem que ser própria. Sem dúvida, deve dialogar, trocar e aprender de outras experiências, também não pode negar seus nexos históricos. Mas não pode aceitar que de Madrid, Londres ou Nova York se indique quem é indígena ou não, quem é de esquerda ou não, quem é leal ou é traidor.
Como segundo ponto, essa esquerda deve ser verde, no sentido ecológico, feminista, na medida em que rompe com o patriarcado, intercultural, como expressão da incorporação de saberes e modos de sentir indígenas e estar comprometida com a justiça social e ecológica. E daí se inspirar no socialismo. Eu a imagino como uma esquerda aberta, que abriga diferentes pessoas e posições que coincidam nesses compromissos, mas que possam percorrê-los de formas diferentes.
Não pode voltar a ser caudilhista, ensimesmada em ter um líder supostamente infalível que mande paternalmente. Deve, ao contrário, procurar ampliar e aprofundar uma participação e deliberação que repousem em gestões coletivas e rotativas.
Deve voltar a recuperar sua defesa dos direitos humanos, o que foi uma das grandes lições deixadas pelos anos obscuros das ditaduras militares. Deve garantir todos os direitos, do acesso à informação à vida, e para todos, sem exclusão, sem cair na necropolítica. E por isso deve proteger com todas as suas energias os mais excluídos.
O planeta não resiste mais a experimentos, devemos superar os limites do desenvolvimento. E é isso que o Bem Viver propõe – Eduardo Gudynas
Quando governa, deve ser uma esquerda eficiente, com servidores mais capazes e mais trabalhadores, não nos enganemos, a herança do progressismo governante em setores como educação e moradia foi muito pobre.
Essa esquerda deve levar a mudanças substanciais não somente nos saberes, na racionalidade sob a qual é possível organizar uma economia, mas também nas sensibilidades e afetividades. Deve forjar outros vínculos, tanto com as pessoas como com a natureza.
Seu programa deve se concentrar nas alternativas ao desenvolvimento. E digo “alternativa” não aleatoriamente, mas porque é um conceito com um significado duplo: oferece diferentes opções, mas ao mesmo tempo garante as capacidades para poder escolher livremente, e por isso se entende democrática.
Uma alternativa para além de qualquer tipo de desenvolvimento, porque todos dependem do crescimento e todos impõem uma dualidade sociedade-natureza. Desse modo, poderá se constituir em uma alternativa pós-capitalista e pós-socialista.
Já tentamos todos os tipos de desenvolvimento. Há algumas melhores do que outros, mas os problemas de fundo não se resolvem em nenhuma deles. O planeta não resiste mais a experimentos, devemos superar os limites do desenvolvimento. E é isso que o Bem Viver propõe.