Róber Iturriet Avila, Outras Palavras, 21 de agosto de 2020
A crise provocada pela pandemia reduzirá a receita fiscal em todos os níveis e elevará os gastos públicos. A fase à frente será, portanto, de déficit fiscal prolongado – vale dizer: serão necessários gastos públicos para dinamizar a demanda agregada.
Os fatos provaram que a retórica de que “o dinheiro acabou” era falsa. A crise superou o mito de que o Estado pode falir na própria moeda. Caso os governos optem por cortar gastos futuramente, haverá mais retração da demanda agregada, o que aprofundará o desemprego.
Uma das questões que se coloca no debate público é como “pagar a conta”. Ao contrário do que é propalado, o Estado não funciona como o orçamento familiar. Ele emite moeda, tributa, determina os juros; seus gastos afetam o nível de renda e de produção. Assim, essa conta não precisa ser necessariamente “paga”, mas o endividamento tem que ser sustentável ao longo do tempo.
Existem opções de equacionamento, com seus respectivos custos e riscos: emissão monetária; endividamento; venda de ativos; e aumento de impostos. Os riscos envolvem inflação, fuga de capitais, majoração de taxas de juros e retração da demanda agregada.
No que tange aos riscos e alternativas, nota-se que no presente momento há fuga de capitais, independentemente da política fiscal, e o risco de inflação é baixo. A situação é tão grave que a emissão monetária não deve gerar inflação.
A venda de ativos é a preferência do ministro da Economia Paulo Guedes, incluindo as reservas em dólares, moeda que não emitimos, o que poderia provocar uma crise cambial. Já os ativos produtivos estão com preços baixos.
Há mais controvérsias nessas opções, mas escolhemos nos deter nos impostos. A tributação tem efeitos arrecadatórios e distributivos, além de afetar a dinâmica econômica. Cabe destacar que uma elevação de impostos reduz a renda disponível, ainda que com diferentes níveis de alteração nos distintos estratos sociais. É aconselhável cautela na elevação de impostos, mas esse pode ser um caminho para estabilizar o nível de déficit e do endividamento.
Estudos recentes demonstram que os mais ricos no Brasil estão dentre aqueles que menos pagam impostos no mundo. A tributação sobre renda e sobre patrimônio é muito baixa.
A carga tributária brasileira está na faixa de 32,4% do PIB, ficando 48,4% sobre bens e serviços, 26,1% na folha de salário e seguridade social, 19,2% em renda e lucro, 4,5% na propriedade e 1,6% em transações financeiras. Tal configuração significa que os pobres pagam proporcionalmente mais, já que utilizam uma parcela maior de sua renda para o consumo.
Para além da discussão sobre o equilíbrio fiscal, o tema da tributação trata de justiça social e de estímulo produtivo. O Brasil se destaca no mundo por ser um país afeito para o rentismo. Há vasto espaço para tributar a movimentação financeira, a especulação imobiliária, a propriedade rural, a herança recebida, a mobilidade de capital.
No Brasil, há isenção de Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF) para a distribuição de dividendos, enquanto a alíquota média é de 36,1% no Reino Unido e 25% no Chile. Aqui, o IRPF possui uma alíquota máxima de 27,5%. Na Suécia, na Alemanha e nos Estados Unidos, a alíquota máxima é de, respectivamente, 56,7%, 45,0% e 39,6%.
Outro tributo que efetua justiça fiscal é o imposto sobre heranças (ITCMD). A alíquota no Reino Unido é de 40%, na França, 32,5%, na Suíça, 25% e no Japão, 24%. No Brasil, a cobrança de ITCMD varia de um estado para outro, e a alíquota média é de 3,86%. Em 2017, 2.496 indivíduos receberam, em média, R$ 20,8 milhões em heranças e doações.
Em voga também está a regulamentação do Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF). No mês de maio, o Congresso do Chile aprovou uma taxa de 2,5% sobre o 1% mais rico para financiar a renda mínima. Países como Argentina, Colômbia, França, Índia, Noruega, Suécia e Uruguai adotam o IGF com alíquotas que estão entre 0,4% a 4,8%.
Na maior parte dos países, a renda fica concentrada no 1% mais rico. No caso do Brasil, a disparidade é acentuada a partir do 0,5% mais rico e, sobretudo, no 0,1%, faixa que declara à Receita Federal possuir, em média, R$ 16 milhões de patrimônio. Mas há segmentações identificáveis nas declarações de IRPF com rendimento médio anual de R$ 29,3 milhões e um patrimônio líquido médio de R$ 83,1 milhões.
Uma das críticas ao IGF argumenta que é de difícil implementação, uma vez que grande parte do patrimônio tem baixa liquidez. Outra crítica é a de que ele pode provocar fuga de capitais. A maior parte dos países, contudo, possui tributação sobre os mais ricos mais elevadas do que por aqui. Além disso, grande parte da riqueza mundial já está em paraísos fiscais. De toda sorte, sua efetivação exigiria o aprimoramento de mecanismos que impeçam a fuga.
No passado, havia quem argumentasse que a tributação sobre os mais ricos diminui a eficiência produtiva e desestimula o trabalho e a produção. Atualmente, os teóricos que tinham tais ideias mudaram suas posições frente à constatação factual de que a redução da tributação sobre os mais ricos ocorrida mundo afora após a década de 1980 não aumentou o crescimento econômico nem o nível de investimento, apenas concentrou renda. Tornou-se, portanto, consenso teórico que a tributação tem o papel de reduzir desigualdades – quem defende o contrário não está atualizado nas referências de fronteira científica.
Em suma, não é plenamente correta a impressão de que o custo da pandemia terá de ser pago com esforços tributários e com cortes de gastos. Existem alternativas. Contudo, parte desse custo pode ser financiada com uma reformulação tributária – e o IGF é uma opção. Há outras formas mais fáceis que podem ter resultados arrecadatórios e distributivos melhores. São elas: mais progressividade do IRPF, tributação sobre dividendos, majoração do ITCMD, tributação sobre a propriedade rural, tributação sobre aplicações financeiras e sobre a movimentação em Bolsa de Valores.
[Publicado originalmente em 18/06/2020, no Jornal da Universidade (UFRGS)]