Nós, seres humanos, estamos perdendo nosso valor econômico e político? As massas e as revoltas populares deixaram de ter poder? A medicina voltará a ser um privilégio dos ricos? Estas são algumas das questões abordadas pelo historiador Yuval Noah Harari, autor do best-seller mundial Sapiens. Uma breve história da humanidade.
Daniel Kahneman, Memo / IHU-Unisinos, 10 de junho de 2022. A tradução é do Cepat.
Em seu livro ‘Sapiens’, propõe a ideia de que a ciência nasceu quando as pessoas descobriram o que era a ignorância e o que podiam fazer, que esse foi realmente o início. Encanto-me com essa expressão. Como foi a transição, a partir do livro, para o que você está fazendo agora?
Foi algo natural. Hoje, a grande pergunta que me faço é quais são as prioridades da humanidade para o século XXI. E esta é uma continuação direta, após ter percorrido a história da humanidade, do surgimento do Homo sapiens até o presente. Uma vez que chegamos ao final desse percurso, na sequência, pergunta-se: e agora?
Não estou prevendo o futuro, coisa que é impossível, agora mais do que nunca. Ninguém faz ideia de como será o mundo daqui a quarenta ou cinquenta anos, vamos dizer. Pode ser que conheçamos algumas das variáveis fundamentais, mas quando se compreende o que realmente está acontecendo no mundo, sabe-se que é impossível prever, com alguma confiabilidade, qualquer coisa nas próximas décadas. É a primeira vez na história que estamos nessa situação.
Estou tentando fazer algo que é o oposto de prever o futuro. Estou tentando identificar quais são as possibilidades, qual é o horizonte de possibilidades que estamos enfrentando e qual de todas elas acontecerá. Ainda temos muita margem de manobra nesse sentido.
Poderia explicar mais sobre essas possibilidades? Por exemplo, qual é a diferença entre fazer uma previsão e estabelecer todo um leque de possibilidades?
Eu imagino isso no sentido visual: a diferença está em se reduzimos ou ampliamos nosso campo de visão. Por exemplo, quando tentamos prever o tempo amanhã, partimos de muitas possibilidades. Pode ser que chova, que neve ou talvez faça sol. E um bom meteorologista, segundo determinada forma de entender a ciência, é aquele que parte desse horizonte de possibilidades e o reduz a apenas uma ou duas. Certamente choverá, e pode ser que seja forte, ou talvez nem tanto. É isso.
A mesma coisa acontece com a economia, com a medicina e com a história. As pessoas perguntam: “O que acontecerá na sequência?”. Temos todas essas possibilidades e eu afirmo: “A China será a única superpotência”. E pronto. Reduzimos o leque de possibilidades.
O mais importante, e é a minha principal tarefa como historiador, é fazer com que as pessoas enxerguem possibilidades que normalmente estão fora de seu campo de visão, porque seu campo de visão é determinado pela história, que o limitou. Se compreendermos como ocorreu esse estreitamento de nosso campo de visão, seremos capazes de ampliá-lo.
Permita-me dar um exemplo de algo a respeito do qual penso muito atualmente, que tem a ver com o futuro da humanidade em relação à medicina. Até onde eu sei, estamos vivendo uma revolução nessa área. Durante o século XX, ela se concentrou em curar os doentes, e agora se concentra cada vez mais em melhorar a saúde das pessoas saudáveis, o que é um projeto completamente diferente.
E é assim tanto no sentido social, como no político, pois enquanto a cura dos doentes é um projeto igualitário (que pressupõe um padrão de saúde e que se alguém está abaixo desse padrão, é ajudado a recuperar o nível adequado), o atual é um projeto elitista. Não existe nenhum padrão que se aplique a todos.
Isto abre a possibilidade de criar enormes abismos entre ricos e pobres, maiores do que em qualquer momento anterior, ao longo da história. Muitas pessoas negam, dizem que isso não acontecerá porque temos a experiência do século XX, quando todos os avanços médicos estiveram, inicialmente, à disposição dos ricos, ou dos países mais avançados, e se espalharam progressivamente até chegar ao mundo todo, e agora todos usufruem dos antibióticos, das vacinas, ou de outros, e que será o que vai acontecer, novamente, desta vez.
Como historiador, minha principal obrigação consiste em dizer não, que existiram razões específicas para que a medicina fosse igualitária, no século XX, para que as descobertas chegassem ao mundo todo. Pode ser que essas condições particulares não se repitam no século XXI, razão pela qual devemos ampliar nossa visão e considerar a possibilidade de que a medicina do século XXI seja elitista, e que isso dê lugar a crescentes lacunas, a abismos biológicos entre ricos e pobres e entre diferentes países. E não podemos simplesmente nos restringir a confiar que um processo de difusão para baixo resolverá esse problema.
Existem razões fundamentais pelas quais deveríamos levar essa possibilidade muito a sério, porque, em linhas gerais, o século XX foi a era das massas: política de massas e economia de massas. Todo ser humano tem valor (político, econômico e militar) pelo simples fato de ser um humano, e isso está relacionado às estruturas militares e econômicas, nas quais todo ser humano é valioso como soldado nas trincheiras, ou como trabalhador na fábrica.
Mas, no século XXI, é bem provável que a maioria dos humanos perca ou já esteja perdendo seu valor militar e econômico. Isso vale para o exército: já aconteceu, acabou. A era das massas faz parte do passado. Não estamos ainda na Primeira Guerra Mundial, quando tínhamos milhões de soldados, cada um recebia um fuzil e tinham que ir para o front. E é possível que o mesmo esteja acontecendo na economia. Talvez a questão mais importante para a economia do século XXI seja qual será a própria necessidade da economia das pessoas no ano 2050.
E uma vez que a maioria das pessoas passe a não ser realmente necessária para o exército e para a economia, a ideia de que continuaremos tendo medicina de massas deixa de ser algo tão óbvio. Pode ser assim. Isso não é uma profecia, mas deveríamos considerar seriamente a possibilidade de que as pessoas percam seu valor militar e econômico, e as consequências que isso teria para a medicina.
Parece que você descreve a situação como se já estivesse acontecendo. Você se refere a coisas como os planos para acabar com a morte? Sem dúvida, esse não seria um projeto de massas. Você poderia explicá-lo um pouco mais?
Sim. A abordagem atual sobre a doença, o envelhecimento e a morte é a de que são basicamente problemas técnicos. Trata-se de uma enorme revolução do pensamento humano. Ao longo da história, o envelhecimento e a morte sempre foram tratados como problemas metafísicos, como algo decretado pelos deuses, algo essencial que define os humanos, que define a condição e a realidade humanas.
Há apenas alguns anos, muito poucos médicos ou cientistas afirmavam categoricamente que estavam tentando vencer o envelhecimento e a morte. Em vez disso, diziam que estavam buscando vencer esta ou aquela doença em particular, como a tuberculose, o câncer ou o Alzheimer. Vencer a doença em geral e a morte era algo absurdo, ficção científica.
Mas a nova atitude consiste em tratar o envelhecimento e a morte como problemas técnicos, basicamente semelhantes a qualquer outra doença, como o câncer, o Alzheimer ou a tuberculose. Pode ser que ainda não conheçamos todos os mecanismos e todos os remédios, mas a princípio as pessoas sempre morrem por razões técnicas, não metafísicas.
Estes são todos problemas técnicos e, essencialmente, devem ter uma solução técnica. Essa forma de pensar está se consolidando como a dominante em círculos científicos, e também entre os multimilionários, que começaram a compreender que algo está acontecendo aqui: “Pela primeira vez na história, se sou suficientemente rico, talvez não tenha que morrer”.
A morte é opcional. Quando se olha do ponto de vista dos pobres, isso é terrível, porque ao longo da história a morte foi a grande niveladora. Ao longo da história, grande consolação que os pobres tiveram foi: “Sim, os ricos vivem bem, mas morrerão assim como eu”. Mas imaginemos um mundo, por exemplo, daqui a cinquenta ou cem anos, onde as pessoas pobres continuem morrendo, mas os ricos, além de todas as suas outras vantagens, também se livrem da morte. Isso gerará muita ira.
Em relação à frase “as pessoas não serão necessárias”, você pode oferecer mais detalhes sobre essa distopia? É uma expressão nova para mim. Certamente, coisas assim se desenvolvem muito devagar. Em outra época, estive preocupado com a forma como os computadores substituiriam as pessoas. Foi algo que me trouxe inquietação quando estava no doutorado, há mais de cinquenta anos, e via isso como um problema muito grave e urgente. Não era e agora também não é, mas, sim, pode ser grave. Você refletiu a esse respeito com profundidade, o que pode nos dizer sobre o fato de as pessoas deixarem de ser necessárias, tanto econômica como militarmente? O que isso implicará?
O processo básico é o da desconexão entre inteligência e consciência. Ao longo da história, as duas andaram de mãos dadas. Se quiséssemos que algo fosse inteligente, precisava ter a consciência como um de seus elementos básicos. As pessoas não estavam acostumadas a que objetos não humanos, sem consciência, pudessem ser inteligentes, capazes de resolver problemas como jogar xadrez, dirigir um carro ou diagnosticar uma doença.
Contudo, hoje em dia, não estamos dizendo que os computadores serão como os seres humanos. Penso que muitos desses cenários de ficção científica, em que os computadores serão como humanos, estão errados. Os computadores estão muito longe de serem como os humanos, principalmente no que se refere à consciência. O problema é outro: é que para o sistema, o sistema político, militar e econômico, na verdade, a consciência não é necessária.
Precisa de inteligência. E a inteligência é algo muito mais fácil de obter do que a consciência. E o problema é que talvez os computadores não consigam ser conscientes, segundo minhas estimativas, nos próximos quinhentos anos, mas podem, em muito pouco tempo, tornar-se tão inteligentes ou mais do que os humanos para determinadas tarefas.
Se pensarmos, por exemplo, nos carros autônomos do Google, e os compararmos com os taxistas humanos, vemos que estes últimos são imensamente mais complexos do que os carros autônomos. Existem inúmeras coisas que o taxista é capaz de fazer e o carro autônomo não.
Mas o problema é que, do ponto de vista puramente econômico, não precisamos de toda essa infinidade de coisas que o taxista pode fazer. Apenas que nos leve do ponto A ao ponto B da forma mais rápida e barata possível. E isso é algo que o carro autônomo pode fazer melhor, ou em breve será capaz de fazer melhor.
E quanto mais se pensa nisso, para a maioria das tarefas para as quais os humanos são necessários é preciso apenas da inteligência, um tipo muito particular de inteligência, porque viemos experimentando, há milhares de anos, um processo de especialização que faz com que cada vez seja mais fácil nos substituir.
Construir um robô capaz de funcionar como caçador-coletor de modo eficaz é algo extremamente complicado. Teria que saber uma infinidade de coisas diferentes. Mas criar um carro autônomo, ou um Watson-bot capaz de diagnosticar doenças melhor do que meu médico, isso é algo relativamente fácil.
E é aqui que devemos considerar seriamente a possibilidade de que, embora os computadores permaneçam atrasados em relação aos humanos em muitos aspectos, no que se refere às tarefas que o sistema exige de nós, na maioria dos casos os computadores serão capazes de realizá-las, e até mesmo melhor.
Novamente, não quero fazer uma previsão para daqui a vinte, cinquenta ou cem anos, mas o que vemos lembra um pouco a história de Pedro e o lobo: Sim, gritamos: “O lobo está chegando!” uma, duas, três vezes, e há os que dizem que há cinquenta anos já se previa que os computadores substituiriam os humanos e isso não aconteceu. Mas a verdade é que, a cada geração, o momento se aproxima, e previsões como essas alimentam o processo.
O mesmo acontecerá com as promessas de vencer a morte. Minha estimativa (que é apenas isso, uma estimativa) é que as pessoas que estão vivas hoje, e que esperam vencer a morte dentro de cinquenta ou sessenta anos, terão uma enorme decepção. Uma coisa é aceitar que vou morrer, e outra, muito mais dura, é acreditar que é possível enganar a morte e acabar morrendo da mesma forma.
Mesmo que terão uma enorme decepção em suas tentativas de vencer a morte, conquistarão grandes coisas. Farão com que seja mais fácil esse objetivo para a próxima geração e, em algum momento, haverá uma passagem da ficção científica à ciência, e o lobo chegará.
Essas suas previsões se referem a tendências. A tendência é clara, o que o progresso envolve está claro, mas quando você descreve as pessoas como desnecessárias, está expondo as condições para um grande problema. Quem decide o que fazer com as pessoas desnecessárias? Em particular, quais consequências sociais você imagina ou qual é a evolução técnica ou tecnológica que você prevê?
Insisto, eu sou historiador, não biólogo, nem cientista da computação, não estou em condições de afirmar se todas essas ideias podem se concretizar na prática ou não. A única coisa que posso fazer é uma análise do ponto de vista do historiador e dizer o que observo. O que mais me interessa são as consequências sociais, filosóficas e políticas. Basicamente, se alguma dessas tendências se consolidar na prática, o melhor que posso fazer é citar Marx e dizer que tudo o que era sólido se desmancha no ar.
Para citar apenas um exemplo, uma vez que resolvamos um problema como a interface direta entre cérebro-máquina, quando os cérebros e os computadores puderem interagir diretamente, logo, esse será o fim da história, o fim da biologia como a conhecemos. Ninguém sequer faz ideia do que acontecerá, caso consigamos.
Se a vida puder, basicamente, escapar do domínio orgânico para a vastidão do reino inorgânico, é impossível sequer começar a imaginar quais serão as consequências, porque, hoje, nossa imaginação é orgânica. Portanto, se houver esse ponto de singularidade, como é comumente conhecido, por definição não temos sequer como começar a imaginar o que acontecerá, uma vez que o atravessarmos.
Ao lançar um olhar para além do ponto de singularidade, agora que a tendência está se acelerando, o que podemos afirmar é que poderia se repetir o que aconteceu no século XX com a Revolução Industrial: a abertura de enormes abismos entre as diferentes classes sociais e países. Em grandes linhas, durante o século XX, esses abismos (entre classes, entre gêneros, entre grupos étnicos, entre países) diminuíram. Pode ser que estejamos assistindo sua reabertura, com crueldade, e que as diferenças entre a parte do mundo industrializada e a que não está passem a ser muito maiores do que eram há cento e cinquenta ou duzentos anos.
Basicamente, o que a humanidade aprendeu a produzir durante a Revolução Industrial do século XIX foram todos os tipos de objetos (como tecidos, calçados, armas e veículos), e isso bastou para que o reduzido grupo de países que vivenciou a revolução fosse capaz de subjugar a todos os outros. Do que estamos falando agora é de uma segunda Revolução Industrial, mas desta vez os produtos não serão tecidos, máquinas ou veículos, nem mesmo armas. Desta vez, o produto serão os próprios humanos.
Em essência, estamos aprendendo a produzir corpos e mentes. Os corpos e as mentes serão os dois principais produtos da nova onda de mudanças. E caso se abra um abismo entre aqueles que sabem como produzir corpos e mentes e aqueles que não sabem, será muito maior do que qualquer outro que, ao longo da história, já tenhamos visto.
Desta vez, se você não for rápido o suficiente para pular na onda da revolução, provavelmente acabará sendo extinto. Países que, como a China, perderam o trem da Revolução Industrial, cento e cinquenta anos mais tarde conseguiram recuperar o campo perdido, em grande medida, em termos econômicos, graças à mão de obra barata. Desta vez, aqueles que perderem o trem não terão uma segunda oportunidade.
Hoje em dia, se um país, um grupo de pessoas, fica de fora, não terá uma segunda oportunidade, especialmente porque a mão de obra barata não terá nenhuma relevância. Uma vez que saibamos como produzir corpos, cérebros e mentes, a mão de obra barata na África, no Sudeste asiático, ou seja onde for, simplesmente se tornará irrelevante. Então, em termos geopolíticos, é possível que vejamos uma repetição do século XIX, mas em uma escala muito maior.
O que é interessante e perturbador neste cenário é que é verdade, como você aponta, que as pessoas vivem para trabalhar, ou trabalham para viver, e no cenário que você descreve, o trabalho será desnecessário para a maioria. Haverá uma classe de pessoas que vão trabalhar porque gostam e podem, e depois temos a maioria da humanidade, para quem não haverá mais trabalho. Essa massa de pessoas não poderá mais trabalhar, mas poderá matar outras pessoas. Como você imagina a possibilidade de lutas e conflitos entre as pessoas desnecessárias e aquelas que não são?
Uma vez que você é desnecessário, deixa de ter poder. Insisto: estamos acostumados à era das massas, aos séculos XIX e XX, em que assistimos ao triunfo de todos esses levantes em massa, revoluções, revoltas, e estamos acostumados a pensar nas massas como algo poderoso, mas esse é um fenômeno basicamente próprio dos dois séculos anteriores.
Se remontamos a outros períodos da história, por exemplo, à Idade Média, vemos que, embora tenha existido levantes dos camponeses, todos fracassaram, porque as massas não tinham poder. Uma vez que alguém se torne desnecessário, tanto militar quanto economicamente, sem dúvida, pode continuar causando problemas, mas não tem a capacidade de realmente mudar as coisas.
Uma vez em curso a revolução que estamos experimentando no exército, na qual o número de soldados simplesmente passa a ser irrelevante em comparação a fatores como a tecnologia, as pessoas continuam sendo necessárias, mas não são mais necessários milhões de soldados, cada um com o seu fuzil. É necessário um número muito menor de especialistas que saibam utilizar as novas tecnologias.
Diante de poderes militares como esses, as massas, mesmo que de alguma forma conseguissem se organizar, nada têm a fazer. Não estamos na Rússia de 1917 ou na Europa do século XIX. Insisto mais uma vez: não é uma profecia.
Pode ser que as coisas aconteçam de outra forma. Mas, como historiador, o mais importante é ter consciência de que o poder das massas, ao qual estamos tão acostumados, tem sua origem em determinadas condições históricas, econômicas, militares e políticas, características dos séculos XIX e XX. Essas condições estão mudando, e há razões para duvidar que as massas continuem tendo poder.
O que você descreve, o cenário que destaca, é que o progresso tecnológico é bastante acelerado, e realmente não importa se estamos falando de cinquenta ou cento e cinquenta anos. Há uma organização social que permanece em pé há muito tempo, décadas ou mesmo séculos, e que muda em um ritmo relativamente lento. O que você sugere, se eu estou compreendendo bem, é uma importante desconexão entre a rápida mudança tecnológica e as estruturas culturais e sociais bastante rígidas, que não serão capazes de acompanhar esse ritmo.
Sim, este é um dos grandes perigos, um dos grandes problemas da tecnologia. Ela avança muito mais rápido do que a sociedade e a moralidade humanas, e isso gera uma enorme tensão. Mas, novamente, podemos tentar aprender algo de nossa experiência prévia, com a Revolução Industrial do século XIX, quando assistimos a mudanças muito rápidas na sociedade, não tão velozes como as que acontecem com a tecnologia, mas espantosamente rápidas.
O exemplo mais óbvio é o colapso da família e do círculo íntimo, e sua substituição pelo Estado e o mercado. Basicamente, ao longo de toda a história, os humanos viveram fazendo parte desses grupos pequenos e de grande importância: a família e o círculo íntimo, consideremos, no total, cerca de duzentas pessoas que compõem o povoado, a tribo, a vizinhança.
Conhecemos a todos e todos nos conhecem. Pode ser que não gostem de nós, mas nossa vida depende deles. Proporcionam quase tudo o que precisamos para sobreviver. São o nosso sistema de saúde. Não há fundo de pensões a não ser nossos próprios filhos. São o nosso banco, nossa escola, nossa polícia, tudo. Se perdemos nossa família e nosso círculo íntimo, estamos mortos, a menos que encontremos uma família substituta.
Podemos dizer que, em certo sentido, a vida talvez seja pior hoje em dia do que em 1700, porque perdemos boa parte da conexão com a comunidade que nos cerca. É um argumento sólido..., mas aconteceu. Hoje em dia, as pessoas, muitas pessoas, buscam viver como indivíduos isolados e alienados. Nas sociedades mais avançadas, as pessoas vivem como indivíduos alienados, sem uma verdadeira comunidade ao seu redor, e com uma família muito pequena.
Não há mais grandes famílias estendidas. Agora, a família é muito pequena, talvez se limite apenas ao casal, talvez com um ou dois filhos, e mesmo esses talvez vivam em outra cidade, em outro país, e só se vejam uma vez a cada vários meses, no máximo. E o espantoso é que as pessoas suportam. E só passaram duzentos anos.
O que acontecerá nos próximos cem anos nessa escala de nossa vida diária, de nossos relacionamentos íntimos? Tudo é possível. Pode ser que o Japão vá estar vinte anos à frente do resto do mundo em tudo. Se olharmos para o Japão atual, vemos que as pessoas mantêm relações com parceiros virtuais. E há pessoas que nunca saem de casa e vivem apenas através de seus computadores.
Pode ser que esse seja o futuro ou pode ser que não, não sei, mas para mim o surpreendente é que é possível pensar que, dada a herança biológica da humanidade, tudo isso seria impossível, mas não é. Aparentemente, o Homo sapiens é inclusive mais maleável do que costumamos acreditar.
Daqui podemos tirar uma lição, ou ao menos pode dar o que pensar em relação à nova revolução tecnológica. Ninguém duvidaria que todas as novas tecnologias potencializarão novamente as capacidades coletivas da humanidade, mas a pergunta que devemos nos fazer é o que está acontecendo em escala individual.
A história nos oferece evidências suficientes para saber que é possível dar um grande passo à frente na capacidade coletiva, ao mesmo tempo em que ocorre um importante retrocesso em relação à felicidade e o sofrimento individuais. No que diz respeito às novas tecnologias que estão surgindo, não só devemos nos perguntar como afetarão as capacidades coletivas da humanidade, mas também qual será o seu efeito no dia a dia dos indivíduos.
Em termos históricos, os acontecimentos no Oriente Próximo, com o Estado Islâmico e todo o resto, não são mais do que um buraco na estrada da história. O Oriente Próximo não é muito importante. O Vale do Silício é muito mais. É o mundo do século XXI, e não estou me referindo apenas à tecnologia.
No que se refere às ideias, às religiões, atualmente, o lugar mais interessante do mundo é o Vale do Silício, não o Oriente Próximo. Estas são as religiões que conquistarão o mundo, não as que surgem da Síria, Iraque e Nigéria.