À medida que avançam os testes, surgem os desafios da produção em massa e logística de distribuição. A julgar pela atitude protelatória diante da vacina Sinovac-Butantã, governo brasileiro será negligente de novo.
Maíra Mathias e Raquel Torres, Outra Saúde, 13-10-2020.
Da intenção à realidade
Uma pesquisa do Datafolha em São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Recife mostrou que, nessas capitais, mais de 70% da população é favorável à obrigatoriedade da vacinação contra a covid-19. Além disso, pelo menos três quartos da população em tais cidades pretende se vacinar logo que seja possível (o maior percentual, 81%, foi registrado em Belo Horizonte).
Mas sabemos que, no início, não vai haver vacina para todo mundo… E o governo federal ainda não planejou como usar bem as doses limitadas de modo a reduzir as contaminações. O Ministério da Saúde afirma que “a parcela da população a ser vacinada depende dos resultados das pesquisas, a partir dos quais poderá ser indicada a melhor estratégia”. Faz sentido, já que a eficácia da vacina pode (e costuma) variar de acordo com características do público, como idade. Mas a definição do público-alvo preferencial não é o único desafio a ser pensado, e uma matéria da Folha enfatiza os problemas de logística de armazenamento e transporte.
A distribuição das novas vacinas vai ser responsabilidade da Rede de Frio, esquema logístico do Programa Nacional de Imunização. Ela deve conseguir distribuir amplamente imunizantes que precisam ser conservados entre 2° e 10°. Será suficiente? Para a Coronavac, sim: ela pode ser armazenada a até 8° e suporta quase um mês a 37°. Mas ainda é desconhecida a temperatura ideal para a conservação da vacina de Oxford/AstraZeneca, maior aposta do governo brasileiro. A farmacêutica britânica não revelou essa informação; segundo a Fiocruz, a vacina deve ser guardada entre 2° e 8°, mas o Wall Street Journal já falou de uma temperatura entre -10° e 0°. A mais difícil nesse aspecto é vacina da Pfizer, que precisa ser mantida a -70°.
Estratégia partida
Ainda há um embaraço cercando as relações entre o Ministério da Saúde e o governo de São Paulo no que se refere à distribuição da Coronavac. Dissemos na sexta-feira que o governador do estado, João Doria (PSDB), se encontraria com parlamentares para discutir um ‘plano B’, uma alternativa para garantir a compra de doses e chegada dessa vacina a outros estados caso o governo federal decida não oferecer nenhum aporte financeiro. Doria prometeu uma reunião “definitiva” com o Ministério no próximo dia 21 para decidir a questão. Ele disse que a “forma correta, republicana e ética” é incluir a Coronavac no cronograma de imunização nacional – mas que, se a pasta não comprar as doses, vai assumir a logística de imunização dentro do estado. “Se houver qualquer viés de ordem política, eleitoral ou ideológica que possa colocar em prejuízo os brasileiros de São Paulo, o estado vai adotar a vacina, aprová-la na Anvisa e faremos a imunização dos brasileiros de São Paulo sim”, disse ele, afirmando que pode também enviar a Coronavac a outros estados.
O ânimo do Ministério para essa conversa não parece dos melhores. Ainda na sexta, o secretário-executivo da pasta, Elcio Franco, declarou que “não pode comprar o que não existe”.
Em tempo: o governo de São Paulo conseguiu arrecadar R$ 130 milhões para a construção de uma fábrica do Instituto Butantan que vai produzir as vacinas. Ao todo, 16 empresas colocaram recursos no projeto, cujo custo total é de R$ 160 milhões.
“Caos e confusão”
É essa a expressão usada no New York Times por Gregory Poland, diretor do Vaccine Research Group da Mayo Clinic, para descrever como devem ser os primeiros meses após a aprovação de uma vacina contra a covid-19. Um conjunto de especialistas ouvidos pela reportagem aponta que o primeiro imunizante aprovado não vai ser necessariamente o melhor, e que ainda não se sabe direito como (ou se) as pessoas vão poder escolher entre as diferentes opções que – esperamos – vão começar a surgir.
Um dos problemas é que distinguir as melhores vacinas não deve ser tão simples. Elas estão sendo testadas individualmente pelos laboratórios, cada uma com um protocolo específico, e uma vacina que demonstre 50% de eficácia pode ser, no mundo real, melhor do que outra que mostrou eficácia de 60%. Não precisava ser assim: “Quando cientistas do governo [dos Estados Unidos] começaram a discutir como investir na pesquisa de vacinas, alguns queriam testar várias vacinas de uma só vez, umas contra as outras – o que é conhecido como protocolo mestre”, diz o texto. Ou seja, em vez de termos cada vacina comparada com um placebo em um ensaio específico, poderia haver um único protocolo e um ensaio que comparasse as candidatas entre si (e também com um placebo). Mas ainda não foi feito nenhum teste desse tipo, embora a Organização Mundial da Saúde (OMS) planeje começar no fim deste mês o Solidarity Vaccines Trial, que tem esse objetivo.
Alguma candidata pode ser aprovada antes que o teste da OMS termine. E outro ingrediente para o caos é o fato de que isso pode dificultar a continuidade de outros ensaios, já que voluntários nos testes podem desistir de sua participação para tomar uma vacina já aprovada. Há ainda uma dificuldade extra para as vacinas que hoje estão nos estágios iniciais: elas podem vir a precisar demonstrar sua eficácia em comparação com essa vacina aprovada, e não mais com placebos, o que deve tornar seus testes mais caros e demorados. Em alguns casos, o custo pode ser mais alto do que empresas menores podem bancar. “Isso basicamente impede o desenvolvimento de vacinas melhores”, alerta Naor Bar-Zeev, especialista em vacinas da Universidade Johns Hopkins.
Testes pausados
Os ensaios clínicos de fase 3 com a vacina da Johnson & Johnson foram pausados por conta de uma “doença inexplicada” em um dos participantes. Não há mais detalhes sobre o que aconteceu. Segundo a farmacêutica, o sistema online usado para inscrever voluntários no estudo foi fechado e o conselho de monitoramento de dados e segurança se reuniu ontem à noite para avaliar o caso. A J&J também afirma que a pausa é diferente de uma suspensão clínica; esta última é uma ação regulatória formal que pode durar mais.
Assim como foi ressaltado quando os ensaios da AstraZeneca foram suspensos, é preciso lembrar que eventos médicos adversos não são incomuns nesse tipo de estudo; o da J&J planeja inscrever ao todo 60 mil voluntários, sendo sete mil deles no Brasil.
Mais um para a conta
Um artigo no periódico The Lancet Infectious Diseases trata do primeiro caso oficial de reincidência de covid-19 nos Estados Unidos. É a quinta reinfecção no mundo descrita em uma publicação científica. Ao contrário do que vinha sendo observado inicialmente, o paciente em questão teve sintomas piores na segunda vez em que pegou o vírus: ele foi hospitalizado, houve necessidade de suporte de oxigênio e danos ao pulmão. Sintomas piores também foram descritos em um paciente reinfectado no Equador. Ou seja, ainda não dá para dizer se a resposta imune ao SARS-CoV-2 realmente protege o organismo. Em um comentário no mesmo periódico, Akiko Iwasaki, professora da Universidade de Yale, reforça algo que temos dito por aqui: embora as reinfecções pareçam raras, a verdade é que ainda não sabemos realmente sua prevalência.
Perspectiva diferente
Neste fim de semana a BBC pôs em destaque um artigo publicado em setembro por Richard Horton, editor da revista The Lancet, que na época passou batido nos principais meios de comunicação. Ele argumenta que não adianta tratar a crise da covid-19 como uma pandemia porque na realidade se trata de uma sindemia – e sindemia é quando duas ou mais doenças interagem de tal forma que causam danos maiores do que a mera soma dessas duas doenças.
Temos a covid-19 junto com uma sériede doenças não-transmissíveis (DNTs), sendo que estas últimas são agravantes da primeira. Assim, atacar as DNTs seria pré-requisito para uma contenção bem-sucedida do novo coronavírus: “Abordar a covid-19 significa abordar a hipertensão, obesidade, diabetes, doenças cardiovasculares e respiratórias crônicas e câncer”, escreve o autor, ressaltando que essas doenças não são uma agenda apenas das nações mais ricas. Aliás, ele sublinha a taxa desproporcional de doença e morte (tanto por covid-19 como por DNTs) na população de baixa renda e de minorias étnicas. “Não importa quão eficaz seja um tratamento ou quão protetora seja uma vacina, a busca por uma solução puramente biomédica contra a covid-19 vai falhar”; alerta. E conclui: “A menos que os governos elaborem políticas e programas para reverter profundas disparidades sociais, nossas sociedades nunca estarão verdadeiramente protegidas da covid-19”.
150 mil mortos
Chegamos no sábado às 150 mil mortes pela covid-19. Segundo especialistas ouvidos pela BBC Brasil, contudo, essa marca foi ultrapassada “há algumas semanas”, por conta do caminho que uma notificação precisa percorrer até ser computada no sistema nacional: indo do município para o estado e, finalmente, para o governo federal. De qualquer forma, levando em consideração também a subnotificação e comparando com dados de outros países, pesquisadores da USP calculam que o país já tenha ultrapassado as 200 mil mortes causadas pelo SARS-CoC-2.
Nas estatísticas oficiais, contudo, os números de mortes e casos continuam em decrescimento. No sábado, pela primeira vez desde maio, a média móvel de mortes ficou abaixo de 600, em 590. Ontem, a média tinha caído mais um pouquinho, para 562. O diretor de emergênciasda OMS, Michael Ryan, afirmou ontem que embora haja uma tendência de queda por aqui, ela ocorre a partir de números “muito, muito altos“.
Dois estados se alternam na pior colocação quando o critério é o número de mortes por milhão de habitantes: Rio de Janeiro e Distrito Federal. Uma reportagem do Estadão tenta entender o mau desempenho. No caso fluminense, embora não haja consenso, os especialistas ouvidos concordam que faltou compromisso político e competência. E ainda falta, já que nas últimas semanas o estado vem registrando aumento nas internações nas redes pública e privada de saúde e nada disso muda disso se reflete em readequação no plano de reabertura econômica. Já no DF, as cidades-satélites e comunidades pobres da capital sofrem com falta de infraestrutura de saúde. A mudança na postura do governador Ibaneis Rocha (MDB), que passou a aderir ao discurso de Bolsonaro, também foi lembrada.
Um estudo da UFRJ feito em parceria com o Instituto Francês de Pesquisa e Desenvolvimento concluiu que cidades com maior quantidade de trabalhadores informais foram as mais afetadas pela pandemia no Brasil. Segundo os pesquisadores, para cada dez pontos percentuais de informais a mais na população, a taxa de contágio aumenta em 29% e a taxa de mortalidade, 38%. Dois municípios ilustram bem o problema: Florianópolis e Boa Vista. No primeiro caso, 23% dos trabalhadores são informais em uma população de pouco mais de 500 mil. No segundo, esse número chega a 41% num total de 399 mil habitantes. Em 11 de agosto, a capital de Santa Catarina tinha 938 contaminados e 15 mortes para cada 100 mil habitantes. Já a capital de Roraima tinha 6.847 infecções e 108 mortes por 100 mil habitantes.
Ressarcimento menor
Uma medida provisória editada em março acabou prejudicando o ressarcimento das empresas de planos de saúde ao SUS. Ou, pelo menos, essa é a justificativa da ANS para a redução do repasse, que entre e janeiro e junho do ano passado chegou a R$ 522,31 milhões e no mesmo período deste ano ficou em R$ 491 milhões. Segundo a agência, a cobrança ficou prejudicada porque a MP 928 alterou prazos administrativos durante a vigência do estado de calamidade. Quem percebeu o problema foi o repórter Wanderley Preite Sobrinho, do UOL, que estranhou o fato de a agência não divulgar os dados de ressarcimento no boletim que deveria informar sobre o assunto. Teve que pedi-los à ANS…
O total já ressarcido pelas operadoras ao SUS é de R$ 6,32 bilhões, sendo que R$ 1,1 bi foi cobrado no ano passado. Ao longo do tempo, foram ressarcidos pouco mais de quatro milhões de atendimentos do Sistema Único a quem tem plano de saúde. Os mais comuns são transplante de rim, outras cirurgias, hemodiálise e radioterapia.
Planos sobem
Despesas com planos de saúde e tratamentos médicos e odontológicos podem ter alta de 22% em 2020, segundo o IPC Maps. De acordo com o levantamento, que inclui também medicamentos, esses gastos podem somar R$ 275,8 bilhões neste ano, contra R$ 257,7 bi em 2019. Se a previsão se comprovar, podemos tirar uma conclusão: a inflação dos planos terá sido alta mesmo depois que a ANS proibiu reajuste de parte desses contratos durante a pandemia. E arriscar um palpite: como há dúvidas sobre se a agência vai impedir que as empresas apliquem reajustes do tipo ‘bola de neve’, somando no ano que vem também o que gostariam de ter aumentado em 2020, é provável que venha por aí nova pressão do mercado para flexibilizar a lei dos planos, permitindo a venda de modalidades mais baratas para as empresas e danosas aos consumidores, sempre com o argumento de ‘equilíbrio’ do setor. Lembremos: de 2000 a 2018, os planos de saúde aumentaram 382%, quando a inflação geral ficou em 208%.
De olho na reunião
Organizações baseadas no Brasil se uniram ao esforço dos governos da Índia e da África do Sul para pressionar pela suspensão temporária de patentes de medicamentos, vacinas e outras tecnologias necessárias ao enfrentamento da pandemia. Na quarta-feira, o conselho que cuida do assunto, e é ligado à Organização Mundial do Comércio (OMC), se reúne. Por isso, as organizações querem recolher o maior número de assinaturas possível até a noite de hoje, para que a carta brasileira ganhe ampla divulgação na véspera da reunião e ajude a catalisar o debate proposto pelos governos indiano e sul-africano. A iniciativa da sociedade civil vem para contrabalançar o esvaziamento do papel do país no tema, já que o governo Bolsonaro resolveu não apoiar a proposta de suspensão, indo na contramão do histórico diplomático brasileiro. Leia a carta, assine e compartilhe.