Igor Cavalcante, Diario do Nordeste, maio de 2023. Entrevista com Helena Martins, militante da Insurgência.*
A Câmara dos Deputados planeja encontrar um desfecho para o projeto de lei 2630, que regula o funcionamento das plataformas digitais no Brasil. A proposta ficou conhecida como 'PL das Fake News'. O texto seria votado nessa terça-feira (2), mas, a pedido do relator, deputado Orlando Silva (PCdoB), a matéria foi retirada da pauta pelo presidente da Casa, Arthur Lira (PP), para continuar em discussão com os líderes partidários com objetivo de incluir novas emendas.
A medida é polêmica, de um lado estão aqueles que defendem uma maior fiscalização sobre a prática ou incitação de crimes em ambientes virtuais, de outro lado estão pessoas e empresas que alegam suposta "censura" contra os usuários.
Para mostrar os prós e contras da proposta, o Diário do Nordeste ouviu a jornalista e professora do curso de Comunicação Social, com habilitação em Publicidade e Propaganda, da Universidade Federal do Ceará (UFC), *Helena Martins.
Além de pesquisadora, ela coordenou o grupo de trabalho responsável pela Comunicação na equipe de transição entre os governos Jair Bolsonaro (PL) e Lula (PT).
Confira a entrevista completa com Helena Martins:
1) QUAIS OS PRINCIPAIS PONTOS DO PL 2630?
O projeto de lei 2630 está em discussão há mais de três anos no Congresso Nacional, tendo sido objeto de diversas alterações, a partir da escuta dos mais diferentes setores em mais de 20 audiências públicas. Hoje ele é um texto que traz alguns elementos centrais. O primeiro deles é a garantia de transparência na operação das plataformas digitais. Essas corporações, que estão entre as mais importantes do mundo, atuam de forma opaca. Nós não sabemos, por exemplo, porque um conteúdo chega a uma pessoa e não para outra. Como os públicos são formados e, mesmo, encerrados em bolhas que prejudicam o debate público. O projeto, assim como feito também em lei da União Europeia, estabelece regras para transparência na moderação de conteúdos e dos algoritmos, além de definir que conteúdos publicitários devam ser identificados. Ainda sobre o funcionamento das plataformas, o texto diz que "os provedores devem identificar, analisar e avaliar diligentemente os riscos sistêmicos decorrentes da concepção ou do funcionamento dos seus serviços e dos seus sistemas relacionados, incluindo os sistemas algorítmicos". São medidas estruturantes para termos um ambiente mais sadio e democrático nas redes.
Outro pilar importante é a criação do chamado devido processo. Em síntese, a ideia é que o usuário tenha possibilidade de questionar alguma moderação de conteúdo da plataforma. Hoje, uma empresa como o Facebook pode tirar um conteúdo do ar alegando que ele não respeita seus termos de uso. Mas se essa decisão for equivocada, quem criou esse conteúdo não tem caminho para questionar. Vale considerar que os erros são muito comuns, especialmente em países como o Brasil, onde a maior parte da moderação é baseada em inteligência artificial e as plataformas contratam poucos trabalhadores para fazerem a revisão dessas decisões. Mais uma vez, empodera a sociedade.
O projeto também determina a criação de canais para que um usuário possa notificá-los da presença de conteúdos potencialmente ilegais, o que envolve a sociedade na busca por identificar e conter conteúdos danosos.
O terceiro pilar é o que estabelece medidas e possíveis responsabilizações. Pelo texto, as plataformas devem atuar diligentemente para coibir a circulação de conteúdos criminosos em relação a determinados tipos penais, como crimes contra o Estado Democrático de Direito, relativos à violência contra a mulher, ao racismo, à proteção da saúde pública, a crianças e adolescentes, idosos, entre outros. Diante de risco iminente de danos – percepção de onda de conteúdos que promovem violência nas escolas, por exemplo – poderá ser instaurado um protocolo de segurança, com medidas que devem ser efetivadas pelos provedores. Caso não cumpram, poderão ser responsabilizados.
Esse mecanismo busca, por um lado, evitar que as plataformas tenham uma conduta ativa de monitoramento e possível derrubada de conteúdos e, por outro, criar um caminho democrático de solicitação de que atuem para proteger a sociedade.
Por fim, é preciso ser criado um órgão regulador que acompanhe as informações e fiscalize a execução das medidas que estão na lei. Para tornar esse processo mais democrático, o projeto também direciona tarefas de definição de diretrizes ao Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), que é um espaço multissetorial e referência mundial de governança da internet.
2) NA PROPOSTA, HÁ UMA PREVISÃO DE QUE AS PLATAFORMAS REMUNEREM PRODUTORES DE CONTEÚDO. COMO ISSO IRIA FUNCIONAR?
Há uma mudança no macrossetor das comunicações que é o do redirecionamento da publicidade. Crescentemente, os investimentos estão sendo direcionados às plataformas digitais, não mais para as empresas de TV, rádio e outras. Não obstante, os conteúdos que são consumidos a partir de espaços como o Google muitas vezes são produzidos por essas empresas, de variados tamanhos. Isso tem gerado um problema de sustentabilidade dessas empresas, inclusive jornalísticas, e, por outro lado, uma disputa entre esses setores tradicionais e os vinculados ao ambiente digital.
Então, empresas midiáticas como a Globo pressionaram para inserir no texto um artigo que trata desse tema. A sociedade civil brasileira diversas vezes se manifestou no sentido de retirada do ponto do texto, a fim de que a questão fosse discutida em outro momento. Ele permaneceu, estabelecendo que conteúdos jornalísticos utilizados pelos provedores ensejarão remuneração, sem onerar o usuário final e com equidade. O detalhamento de como isso ocorrerá será feito, pelo texto, posteriormente, por meio de regulamentação.
3) HÁ UMA POLÊMICA EM TORNO DA INCERTEZA SOBRE QUAL O ÓRGÃO QUE IRÁ FISCALIZAR A APLICAÇÃO DA LEI. POR QUE HÁ ESSE IMPASSE?
Infelizmente, o Brasil nunca avançou no debate sobre regulação democrática das comunicações. Nos Estados Unidos, há um órgão regulador do setor há mais de cem anos. Vários países democráticos também possuem órgãos reguladores. No país, as empresas sempre foram refratárias e alardearam a ideia de que regulação é censura, o que é uma mentira. A sociedade civil, como a Coalizão Direitos na Rede e diversas associações científicas da comunicação, têm defendido um órgão regulador autônomo, com capacidade técnica e espaço de participação social para tornar as decisões mais democráticas.
Em uma de suas últimas versões, o PL 2630 apresentava a ideia de criação de uma entidade autônoma de supervisão, mas ela foi suprimida porque grupos conservadores apresentaram resistência e iniciaram uma campanha contra a proposta. Então, ela está aberta hoje no texto, que, pelo menos, delega alguns papéis ao Comitê Gestor da Internet. Acredito, contudo, que, para a lei valer e para que a sociedade incida democraticamente nesse setor, é fundamental termos um modelo regulatório robusto.
4) ALGUMAS ENTIDADES E EMPRESAS APONTAM RISCO DE CENSURA. HÁ ESSE RISCO?
O projeto está assentado na defesa da liberdade de expressão, faz referência à liberdade religiosa e outras tantas mais. Ao criar mecanismos de transparência e processos democráticos ele contribui exatamente para construir um equilíbrio entre sociedade, governo e empresas. Sem regulação, corremos o risco de um governo de plantão determinar retirada de determinado tipo de conteúdo. Sem regulação, as empresas atuam apenas com vistas à obtenção de lucros. Aliás, censura é o que o Twitter fez nos últimos dias, impedindo a circulação de alguns conteúdos de defensores do projeto. É para evitar qualquer tipo de abuso que uma proposta desse tipo deve ser discutida.
5) COMO FICA A IMUNIDADE PARLAMENTAR NAS REDES CASO O PL SEJA APROVADO?
O projeto expande a imunidade que os parlamentares já possuem à sua atuação nas redes. Trata-se de um dispositivo que, a meu ver, constrói uma camada adicional de defesa dos parlamentares, o que não é necessário nem mesmo corresponde à realidade atual, em que vários parlamentares constroem sua imagem pública a partir de mentiras nas redes sociais. A meu ver, esse artigo deveria ser suprimido, mas sabemos que há resistências a isso.
De todo modo, ainda que não concorde com ele, pondero que a imunidade não impede que a Justiça seja acionada. Neste ano, por exemplo, o Ministério Público de Minas Gerais (MP-MG) denunciou o deputado Nikolas Ferreira (PL-MG) pelo crime de racismo ao publicar um vídeo em suas redes sociais expondo uma adolescente transsexual por usar um banheiro escolar feminino. Esse tipo de denúncia poderá continuar ocorrendo, pois, seja no parlamento, seja nas redes, ninguém pode praticar crimes.