[Derrotado militarmente, Putin tenta prevalecer sobre a Ucrânia destruindo a infra-estrutura de energia, água e calefação do país, que entra no inverso e já tem mais de oito milhões de pessoas expulsas de suas casas. Mas os desastres de hoje são uma sombra da grande fome - Holomodor - que o governo de Stalin impôs na Ucrânia durante a criminosa coletivização forçada da propriedade camponesa. Publicamos a seguir uma matéria do IHU-Unisinos sobre o tema, ilustrada com mapas e a documentação fotográfica da época de Alexander Wienerberger, que pode ser acessada aqui. J.C.]
A tragédia da fome voltou a assolar o mundo. As explicações para a fome do século XXI são muitas, mas todas vão residir sob o grande guarda-chuva da política econômica. Não é como se a produção de alimentos hoje não fosse suficiente para as 8 bilhões de pessoas do planeta. Mesmo que no Novo Regime Climático a fertilidade dos solos e a colheita dos grãos estejam reféns de eventos extremos, por secas ou tempestades, para que o alimento chegue às pessoas faz-se necessária uma opção política radical para isso. Se hoje parece utópico que haja pão em todas as mesas, a distopia das mortes por inanição não está distante no tempo nem espaço.
IHU-Unisinos, 26 de novembro de 2022
Todo ano, no último sábado de novembro, faz-se memória da Grande Fome, o Holodomor, que matou de 4 a 7 milhões de ucranianos entre 1932 e 1933.
Em 2022, quando os ucranianos voltam a sofrer com outro massacre pela invasão russa, o resto do mundo sofre seus reflexos com a falta de logística de exportação de grãos, a crise energética, o temor nuclear e, ao que se indica, sem prognóstico de melhoras para o próximo ano, independente de quando a guerra acabará. O pesadelo de Holodomor se faz presente e atual com a fome mundial e com o ódio sobre os povos.
Não há consenso na comunidade acadêmica internacional se as mortes de Holodomor configuram-se como um genocídio direcionado e planejado pelo regime stalinista da União Soviética. O governo soviético negou as primeiras acusações relatadas pelo jornalista galês Gareth Jones, do The Times, que viajou duas vezes para o país entre 1930 e 1931. Jones foi banido da URSS após publicar seus relatos que envergonhavam a estrutura socialista soviética perante o caos que Ocidente vivia na Grande Depresão de 1929. Anos depois, em viagem à Manchúria, ele é sequestrado e morto, sendo o governo soviético o principal acusado. No entanto, outras evidências e registros históricos da Grande Fome sobreviveram com o tempo, como as imagens registradas pelo fotógrafo Alexander Wienerberger, e outras seguem sendo analisadas por historiadores.
A mensagem do Papa Bento XVI no Angelus de 23 de novembro de 2008, no dia de memória do massacre, frisa aquela que é a causa inconteste: "Celebra-se nestes dias o 75º aniversário da Holodomor a 'grande carestia' que nos anos de 1932-33 causou milhões de mortos na Ucrânia e noutras regiões da União Soviética durante o regime comunista. Ao desejar vivamente que nunca mais ordenamento político algum possa, em nome de uma ideologia, negar os direitos da pessoa humana, a sua liberdade e dignidade".
A dominação soviética sobre o território ucraniano já vivia uma década de violência, de revoluções e contra-revoluções. A Ucrânia era um território em conflito à parte de toda instituição da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Concomitante ao declínio do Império Russo, os ucranianos lutaram pela construção de um Estado Nacional próprio. Não obstante, como a autora Anne Applebaum escreve em seu livro "A fome vermelha" (Ed. Record, 2017), para os partidos russos de então, inclusive os revolucionários bolcheviques, a Ucrânia nunca existiu, e aquele território era a Rus' Kievana. "Além de seu preconceito nacional, os bolcheviques tinham motivos políticos específicos para desgostar da ideia de independência ucraniana. A Ucrânia ainda era essencialmente uma nação agrícola", escreve Applebaum. Segundo a autora, os líderes da Revolução Soviética tinham uma relação ambígua para com os ucranianos, apoiando no conflito contra o czar, mas combatendo o nacionalismo. Ainda, no estabelecimento do novo governo, e a acentuação da guerra civil, Stalin via a Ucrânia como o principal estoque de grãos para os russos, o que fica mais evidente nesta mensagem de Lenin ao front ucraniano, citada pela autora:
"Empreguem toda a energia e todas as medidas revolucionárias para enviar grãos, grãos e mais grãos!! Caso contrário, Petrogrado poderá morrer de fome. Usem trens especiais e destacamentos especiais. Coletem e armazenem. Escoltem as composições ferroviárias. Nos informem diariamente. Pelo amor de Deus!".
Uma nova política econômica precisava ser administrada para abastecer a maior nação do mundo. Essa foi a política de coletivização das terras instaurada ao final da década de 1920 e que resultou em um completo desastre humanitário. Quando os bolcheviques conseguem assumir o controle do território por meio do Partido Comunista Ucraniano, a partir de 1925, faz-se a dekulakização da Ucrânia, isso é a desapropriação das terras dos pequenos agricultores para o Estado. Os historiadores Robert William Davies e Stephen G. Wheatcroft apontam em "The Years of Hunger: Soviet agriculture, 1931-1933" (Ed. Palgrave Mcmillan, 2004) que, a coletivização foi confusa, resultou em uma semeadura tardia do trigo e do centeio no outono gelado da Ucrânia, o que prejudicou a germinação dos grãos e, logo, uma colheita produtiva.
A coletivização das terras era um estágio avançado da expropriação das indústrias agrícolas privadas, que serviria como base de industrialização conforme o I Plano Quinquenal. Como apontam Davies e Wheatcroft, a política stalinista não conseguiu ser célere o suficiente para respeitar a produção da safra de 1930, por conseguinte, os camponeses ucranianos, já massacrados pela violência da última década, perdeu o controle dos seus territórios, a liberdade ou a certeza da semeadura em suas áreas. A pequena colheita nas estepes ocidentais da URSS era escoada para alimentar Moscou, sob ordem, repressão e perseguição do Politburo.
O regime stalinista escondeu da comunidade internacional a grande fome vivida na Ucrânia. A história de Holodomor até hoje é tratada com desconfiança pelo uso político que tanto o regime nazista de Hitler quanto a democracia liberal dos EUA fizeram para atacar o Estado soviético. Não obstante, a obscuridade das informações foi superada primeiro com as fotografias vazadas de Wienerberger, mas em conjunto com o desenvolvimento de robustas pesquisas a partir da queda da URSS na década de 1990, com destaque especial à Universidade de Harvard, associando dados geográficos, demográficos, econômicos e ecológicos pode se mensurar o que aconteceu nos primeiros anos do stalinismo.
O Great Famine Project, coordenado hoje pelo professores Serhii Plokhii, Kostyantyn Bondarenko e Nataliia Levchuk, em Harvard, está há décadas construindo análises sobre as perdas populacionais no período de Holodomor. Conforme o cruzamento de dados de três censos da União Soviética, considerando as taxas de migração e de natalidade que ali constam, e com dados do Instituto de Demografia e Estudos Sociais de Kiev, os pesquisadores estimam que em 1933 o número de mortos nas regiões de Kiev e Kharkiv excederam em mais de 900 mil comparado com os anos anteriores e posteriores. Embora as demais regiões ucranianas tenham sofrido grandes perdas populacionais nesse período, em nenhuma outra houve elevação que chegasse perto destes números. Destaca-se, é claro, que essas eram as regiões mais populosas. No entanto, na fronteira da Ucrânia com a Rússia, região conhecida como Stalino à época, as perdas populacionais foram as menores registradas.
Esses dados cruzados com os conflitos históricos e a composição étnica do território criam o principal argumento para identificar Holodomor como um genocídio. Em outra análise censitária, considerando o censo de 1926, os pesquisadores constatam semelhanças entre essas áreas de maior perda populacional com as de maior ocupação por população de etnia ucraniana. As áreas com o menor número de mortos tinham predominância étnica de germânicos (Odessa) e russos (Stalino, hoje as áreas ocupadas pelo exército russo, principalmente Luhansk).
É importante sublinhar que embora não haja comprovações de uma política deliberada por parte de Joseph Stalin para exterminar a população e ocupar o território ucraniano, 16 países reconhecem Holodomor como genocídio, entre eles estão a Ucrânia, Estados Unidos, Argentina, Brasil e Vaticano. Na última Audiência Geral, de 23 de novembro, o Papa Francisco recordou de Holodomor e reafirmou que as mortes foram causadas "artificialmente por Stalin". Para Francisco, o povo ucraniano sofre hoje o martírio de 1930, sob as mãos de Putin.
Desta vez, a guerra mata com armas, bombas, drones e as imagens das atrocidades circulam abertamente pela internet. Enquanto isso, a destruição dos campos e a paralisação da produção de alimentos no Leste Europeu, que até 2021 representava 1/3 da produção mundial de grãos, disparou o preço dos alimentos e da energia, criando uma epidemia de fome que ataca sobretudo o continente africano, que tem 378 milhões de pessoas em insegurança alimentar severa em 2022. Como no passado, a fome é direcionada e é uma escolha política.