A civilização do automóvel esbarra em limites. O carro instaurou uma lógica e um estilo de vida que acentuam o individualismo e escancaram o consumismo. Promete liberdade, mas oferece uma “dependência radical”, uma “jaula de ferro” diária de mais de duas horas de congestionamentos nas grandes metrópoles. Promete agilidade, mas proporciona a lentidão dos tempos pré-industriais. Promete ganhar tempo, mas a realidade é que faz perder tempo. intransponíveis, no atual contexto de crise social e ecológica, e se defronta com questões paradoxais.
Ecodebate, 20 de outubro de 2020
O paradoxo da civilização do automóvel
O automóvel é um dos produtos mais bem sucedidos do advento da sociedade industrial ou, caso se queira, da civilização que lhe é coetânea. O carro ajudou a moldar a indústria, as cidades, a vida em comum e individual e até seus substratos psíquicos. O carro a motor sintetiza alguns dos elementos simbólicos mais almejados pelo “homem moderno”: visibilidade, distinção e poder. “Diferentemente do telefone residencial, da televisão e do computador, era altamente visível. Visibilidade dupla, externa e interna, o que é muito importante no processo de transferências psíquicas, de modo que é comum o indivíduo ‘se achar’ dentro de um automóvel. Diferentemente do bonde, do ônibus e do avião, o carro era um objeto particular que funcionava como um símbolo de distinção. Finalmente, era uma máquina que conferia ao motorista um tremendo sentimento de poder sobre o tempo, o espaço e os pedestres”, afirma Guillermo Giucci, em entrevista à revista IHU On-Line n. 106, p. 3.
É assim que o objeto automóvel ultrapassou o valor de uso. Ganhou o status de “cidadão”, evidentemente que um cidadão muito particular. A ele são destinados amplos recursos públicos, cuidados e infraestruturas de causar inveja ao cidadão médio das nossas sociedades.
Fruto da sociedade industrial, a “cultura” do automóvel persiste, se amplia e se projeta com toda a sua força para dentro da sociedade pós-industrial, acentuando os desafios que as sociedades hodiernas necessitam enfrentar – e não com certa urgência.
A civilização do automóvel esbarra em limites intransponíveis, no atual contexto de crise social e ecológica, e se defronta com questões paradoxais.
O carro instaurou uma lógica e um estilo de vida que acentuam o individualismo e escancaram o consumismo. Promete liberdade, mas oferece uma “dependência radical” (André Gorz, cf. mais abaixo nota n. 5), além de uma “jaula de ferro” diária de mais de duas horas de congestionamentos nas grandes metrópoles. Promete agilidade, mas proporciona a lentidão dos tempos pré-industriais. Promete ganhar tempo, mas a realidade é que faz perder tempo.
A indústria automotiva é indutora de fortes índices de crescimento econômico. É responsável por boa parcela do PIB, mas também por igualmente bons gastos – públicos, privados e das pessoas – para suprir consequências nefastas provenientes da civilização do automóvel, tais como doenças respiratórias, acidentes e estresse. Sem contar os incômodos por ele provocados: poluição sonora (barulho), engarrafamentos.
Pesa sobre o carro também encargo ambiental, uma vez que é um dos responsáveis – diretos e indiretos – pela crise ecológica, mais particularmente por sua contribuição para o aquecimento global.
É neste contexto que se pode ouvir hoje expressões tais como, referidas ao carro: “o automóvel acaba por matar o automóvel”; “bomba relógio ambiental”; de alternativa a “vilão”. Há quem mesmo faça trocadilhos com a palavra – O automóvel acabará por se “auto”-destruir?
O automóvel: subsistema de um subsistema em crise
Atualmente, alguns economistas críticos (Daly, Max-Neef) postulam o conceito de subsistema de um sistema maior, no caso o ecossistema, para referir-se ao sistema econômico e chamar a atenção para o fato de que a economia não é um sistema fechado. A crise civilizacional que vivemos – e para a qual o Dia Mundial Sem Carro quer chamar a atenção – nos quer alertar para o fato de que este subsistema (o automóvel) do subsistema (a economia) encontra seus limites mais fortes exatamente no sistema (a biosfera).
Trata-se de ir ganhando uma consciência e uma prática de que a economia não é um sistema fechado, mas que se deve abrir a uma lógica maior, mais ampla, que, por sua vez, deve ser incorporada. E é nesse sentido que os críticos da civilização do automóvel querem chamar a atenção. André Trigueiro fala em “visão mais encorpada do mundo”, para se referir a essa realidade. O economista Eduardo Giannetti da Fonseca é mais claro nessa subordinação: “O automóvel é apenas um elo na cadeia de uma cidade mais funcional. Não pode ser tudo subordinado a ele como se fosse o único meio de transporte de que dispomos”.
Numa visão mais complexa da economia é preciso inclusive questionar o conceito de riqueza que vem se utilizando nos últimos séculos. Na década de 1970, por exemplo, em seu O Mito do Desenvolvimento Econômico (Paz e Terra, 1974), o economista brasileiro Celso Furtado já lembrava que grande parte das hipóteses globais de que partem economistas são “equivocadas”, porque “formuladas a partir da observação do comportamento dos agentes que controlam os centros principais do poder; não interessa saber se aqueles que o exercem derivam sua autoridade do consenso, das maiorias ou da simples repressão; se o consenso ou maioria resultam da manipulação da informação ou da interação de forças sociais que se controlam mutuamente (…) Os que mandam falam em nome da coletividade (…) e por isso as decisões podem ser equivocadas, inadequadas ou em desacordo com os interesses sociais”.
A partir desses pressupostos, examina ele os critérios sobre investimentos, ou de avaliação do produto interno bruto (PIB), que não levam em consideração recursos e serviços naturais: “Como ignorar”, pergunta ele, “o custo da destruição dos recursos naturais não-renováveis, do solo, das florestas, da poluição das águas?”
Na mesma época, o ecologista José Lutzenberger faz coro à denúncia da estreiteza do conceito de PIB e, portanto, de riqueza, questionando o fato de que na produção de riquezas não se contabilizava a destruição da natureza. Ironicamente, também dizia que não havia nada melhor para o crescimento do PIB que um terremoto, poderíamos acrescentar hoje, um deslizamento, uma enchente…, que não levam em conta a destruição e contabilizam toda a reconstrução.
Mais perto de nós, o economista Eduardo Giannetti da Fonseca, reclama indicadores mais fidedignos para se medir a riqueza: “Se você vai ao trabalho a pé, isso não aparece no PIB. Agora, se eu tenho que comprar um automóvel e me deslocar duas horas gastando combustível e ficando estressado, sim. Precisamos de um indicador mais fidedigno mostrando o que acontece com o bem-estar humano”.
Ou seja, um crescimento econômico assentado sobre essas bases, não tem futuro. No entanto, o Brasil, nesse sentido, vai na contramão da história ao persistir em trilhar um modelo de desenvolvimento que se apresenta como um beco sem saída, alimentado pelo consumo movido a crédito fácil e farto, mas de costas para o sistema, isto é, para a biosfera. No Brasil, como mostra André Trigueiro, o subsistema carro atrai “a maioria dos impostos” pagos em nosso país. E saber que a saúde se encontra na situação em que se encontra…
O culto ao carro
O sociólogo Richard Sennett, em seu livro A nova cultura do capitalismo, afirma que as pessoas se movem pela “paixão consumptiva” que assume as formas de “envolvimento em imagística e incitação pela potência”, ou seja, as pessoas quando consomem não compram apenas produtos, mas prazer e poder.
O carro exerce esse fascínio. Segundo Guillermo Giucci em entrevista à IHU On-line, “o objeto automóvel ultrapassou o valor de uso” e se transformou “numa extensão protética do ser”. O psicanalista Jorge Forbes, na mesma perspectiva, afirma que o carro se transforma em “prótese que possibilita a pessoa humana estender o corpo biológico às dimensões do seu desejo”. “O carro é mais ou menos como a roupa. É a forma como o dono se apresenta para a sociedade. Está presente no dia a dia e revela um pouco da personalidade do proprietário”, analisa Carlos Campos, consultor de montadoras.
O carro está entre os principais ícones do capitalismo que oferece ao usuário um valor distintivo. Ao volante de um deles muitos se transformam, elevam a auto-estima, sentem-se mais poderosos e livres. O “novo capitalismo”, segundo Sennett, vende a ideia de que dependendo do carro, o mundo – visto pela janela – passa a ser diferente.
O sociólogo fala na “experiência da condução”. Pense num mesmo itinerário feito por dois modelos diferentes de carros, um popular e um da categoria Sport Utility Vehicle, os SUV, que são potentes e com design arrojado. Qual é a diferença? A princípio nenhuma, os dois levam ao local desejado e, com os congestionamentos, no mesmo tempo. Porém, o capitalismo vende a ideia de que dirigir um SUV é mais agradável, a paisagem se torna mais bonita, o ar mais puro. Logo dirigir um carro potente oferece a sensação de prazer e poder que um popular não oferece.
O desejo de consumo associa-se, portanto, a produtos que imagísticamente vendem essa sensação, mesmo que os diferentes modelos sob a perpectiva da estrutura – o chassi – sejam semelhantes. Segundo Sennett, na fabricação de automóveis – o DNA do carro é o mesmo, mas pequenas mudanças justificam preços diferenciados: “Uma diferença de 10% no conteúdo é transformada numa diferença de 100% no preço”. A “magia” do capitalismo é fazer com que um produto básico vendido em todo o planeta se pareça único, obscurecendo a homogeneidade. As pessoas pagam mais para acessarem essa “experiência” e sensação.
O culto ao carro e a sua pretensa perfomance prometida criam situações estranhas. As pessoas compram carros super velozes que se arrastam nas cidades, ou ainda veículos com tecnologia a bordo para navegação em trilhas na mata e o utilizam para levar os filhos na escola no quarteirão vizinho. Consumo = poder, explica, por exemplo, o crescimento dos modelos denominados de Off Road (os fora da estrada). Silvia Pilz [n.1], jornalista, redatora e publicitária diz que “um off-road circulando em centros urbanos é uma proposta absurda, descabida. Mas, como corresponde aos anseios e desejos de muitos, o hábito vai sendo incorporado, tomando seu espaço e virando moda. Mesmo que o motorista não saia da sua tradicional rota, o ‘fascínio por uma suposta liberdade’ e oportunidade de trilhar novos caminhos, tem ajudado o mercado de automóveis a vender carros que tragam esta sensação”.
O culto ao carro, portanto, é resultante dessa paixão consumptiva. O automóvel funciona como “cartão de visita – diz Guillermo Giucci –, seja para eventos sociais, seja para negócios, seja para paqueras, especialmente em sociedades periféricas. O carro também preservou a sua função de proporcionar ao proprietário uma elevada auto-estima. o automóvel exacerbou o individualismo”, destaca.
O carro como expressão de poder, prazer, liberdade, singularidade e individualidade se manifesta no fato de que cada um quer o seu. O pesquisador do CEPAT, Cesar Sanson, afirma que “a sugestão da ‘carona solidária’ não pegou. Ninguém quer andar de carona com o outro, todos querem dirigir sua propria máquina. Ninguém quer esperar ninguém”.
Recente pesquisa revela que cresce o número de carros que transportam uma só pessoa. Os carros mais populares, por exemplo, costumam ter capacidade para transportar cinco pessoas, mas, na capital paulista, são utilizados quase como motos – e sem ninguém na garupa. Em 2011, a taxa média de ocupação dos automóveis nas ruas pesquisadas pela CET (Companhia de Engenharia de Tráfego) se limitou a 1,4 pessoa por veículo. Ou seja, a cada cinco carros em circulação nos horários de pico, somente sete pessoas são transportadas.
Renata Moehlecke [n.2], jornalista, a partir de pesquisa desenvolvida pelo economista Luis Alberto Noriega, afirma que motoristas da capital paulista só deixariam de usar seus carros se sofressem pressões econômicas, como pedágio urbano ou multas.
“Na cidade de São Paulo, o rodízio de automóveis foi constantemente burlado por indivíduos que optam por comprar um segundo veículo, novo ou usado, com placa de final diferente”, comenta Noriega. O estudo também constatou que esses indivíduos não querem perder o suposto conforto que um carro pode oferecer (rádio, ar condicionado, economia de tempo, flexibilidade de horários e rotas). “Ao ter-se transformado num ideal, a necessidade de possuir um automóvel é mais relevante do que a preocupação com questões ambientais ou o custo causado pelos engarrafamentos”, explica Noriega. “As pessoas aceitam o tempo perdido no trânsito como parte da viagem”, destaca.
O culto ao carro está associado, portanto, ao fato que o mesmo se transformou em um objeto que está para além de um simples meio de transporte. A mensagem que as montadoras e as agências de publicidades passam, diz Cláudio de Senna Frederico [n.3] é de que as pessoas apenas “conseguem se realizar socialmente em função do carro”, ou seja, a inclusão social depende do acesso ao carro.
O impacto do carro. A sociedade toda paga
O fantástico e maravilhoso mundo prometido pelo carro tem outro lado menos edificante. O carro provoca o caos, confusão, barulho, estresse, poluição, perdas econômicas e, o pior, mata. E mata muito. As estatísticas dão conta que em 2010, o trânsito matou mais de 50 mil pessoas. Trata-se de um Vietnã por ano.
O país já tem 1 carro para cada 6 habitantes. Em 2010, superamos a quantia de 30 milhões de veículos. E a paridade carro/população vem diminuindo a cada ano. Quando da retomada do crescimento econômico no Brasil, os dados davam conta de que apenas na capital paulista entravam 870 carros por dia nas ruas da cidade. As montadoras passaram a vender 1 carro a cada 10 segundos. Essas quantias não diminuíram. Em 2010, cerca de 400 mil consumidores brasileiros compraram o seu primeiro carro zero e São Paulo chegou em março desse ano a impressionante marca de 7 milhões de carros.
O Brasil já é, hoje, o quinto maior mercado de carros do mundo e o sétimo maior produtor. Aumento vertigionoso de carros associado ao comportamento autoritário na direção e às péssimas condições das estradas, tornaram o país um campeão de mortes no trânsito.
Os recordes sucessivos de produção, para aqueles que compartilham os valores de uma sociedade sustentável, causam certo desânimo. O ar dos grandes centros vai piorando. Estudos dão conta de que os índices de poluentes podem crescer até 74% em 2020.
Em um ano, só os novos veículos vão emitir 79.296 toneladas de monóxido de carbono, 20.860 t de hidrocarbonetos, 5.940 t de óxidos de nitrogênio, 323 t de óxidos de enxofre e 46 t de material particulado. Destaque-se ainda que junto com o carro vem um outro problema: os pneus. O arquiteto Kenneth Frampton afirma que ”o carro é uma invenção mais apocalíptica que a bomba atômica”.
Os custos sociais do carro não se resumem às mortes e poluição. Os engarrafamentos cada vez mais corriqueiros interferem na economia. Ladislau Dowbor alerta de que “o problema é que o tempo não está sendo levado em conta nos cálculos econômicos”. Segundo ele, “na cidade de São Paulo, temos seis milhões de pessoas que se deslocam diariamente para o trabalho ou escola. Temos uma população de 11 milhões e, destes, seis são ocupados e se deslocam para o trabalho.
Algumas levam mais duas horas nesse deslocamento, ou seja, são mais de duas horas em que as pessoas não descansam e nem produzem. Pelo contrário, ficam emitindo dióxido de carbono, se cansam e se estressam. Isto está gerando doenças respiratórias, aquecimento climático e imensos custos. Se um carro custa, em média, R$ 15 mil, seis milhões de automóveis custam, juntos, 90 bilhões de reais”, afirma ele.
Há ainda outro cálculo, destaca Dowbor: “Como o paulistano perde pouco mais de duas horas por dia no trânsito, perdemos mais de R$ 50 milhões por dia. Com esse valor, poderíamos pagar, a cada quatro dias, um quilômetro de metrô”. A esse respeito, o economista Eduardo Giannetti da Fonseca, afirma: “O automóvel que veio como símbolo da liberdade de ir e vir se tornou uma espécie de cárcere privado, e de câmara de estresse. É uma modernidade que caducou. Sua cadeia produtiva sempre contou no Brasil com uma rede muito grande de suporte. O automóvel é apenas um elo na cadeia de uma cidade mais funcional. Não pode ser tudo subordinado a ele como se fosse o único meio de transporte de que dispomos”.
Os gastos crescentes em rodovias no país e em todo mundo é outro aspecto da civilização do automóvel. Esse fato levou o ambientalista Lester Brown [n.4] a cunhar a expressão “pavimentação do planeta” que acontece em detrimento à agricultura. Segundo ele, “no início de um novo século, a competição pela terra entre o automóvel e a agricultura se intensifica. Até agora, a pavimentação de terras cultiváveis vem ocorrendo principalmente nos países industrializados, onde circulam quatro quintos dos 520 milhões de automóveis mundiais. Mas hoje, mais e mais terras agrícolas estão sendo sacrificadas nos países em desenvolvimento com populações famintas, colocando sob questionamento o papel futuro do automóvel”.
“Milhões de hectares de terras agrícolas no mundo industrializado foram pavimentadas para construção de rodovias e estacionamentos”, afirma Brown. Segundo ele, “o asfalto é a última colheita da terra”.
Associado ao tema da agricultura tem-se o fato de que o carro também é responsável pela necessidade crescente de matrizes energéticas. É para manter inalterado esse padrão de vida, o direito inalienável ao carro como meio de transporte individual, que se procuram alternativas aos derivados de combustível do petróleo. É aqui que entra o etanol. Jacques Diouf ex-diretor geral da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO), denunciou que o debate sobre os biocombustíveis tem se centrado quase de forma exclusiva na substituição do petróleo no transporte.
O mesmo tem denunciado os movimentos sociais, para quem o crescimento da monocultura da cana de açúcar em países em desenvolvimento e pobres tem como objetivo a manutenção do padrão de consumo american way of life, e isso significa em última instância “tanques cheios a custas de barrigas vazias”. A questão de fundo posta pelos movimentos sociais é se as terras do planeta se destinarão preferencialmente a atender os cerca de 800 milhões de proprietários de automóveis, ou garantir a segurança alimentar mundial do 1 bilhão de pessoas que passam fome no mundo. Fica aqui uma pergunta: Vale a pena o país priorizar a expansão do monocultivo da cana de açúcar em detrimento de alimentação?
O que vale para a monocultura da cana, vale também para o da soja, também com finalidade de produção de combustível. “No grão da soja encontram-se os dois símbolos da sociedade capitalista, agora globalizada: o carro individual e um consumo alto de carne”, ilustra, por sua vez, o filósofo e teólogo Luc Vankrunkelsven, em entrevista especial para a IHU On-Line.
O carro é ainda responsável por outra lógica irracional. Quem chama a atenção é Oded Grajew: “São graves os problemas causados pelo modelo de mobilidade que privilegia o transporte individual e o automóvel”. Segundo um dos idealizadores do Fórum Social Mundial e um entusiasta da campanha mundial Um dia sem carro, hoje “quarenta por cento da área central das grandes cidades brasileiras é ocupada pela malha viária. Os automóveis privados, apesar de transportarem cerca de 20% dos passageiros, ocupam 60% das vias públicas, e os ônibus, que transportam 70% dos passageiros, ocupam 25% do espaço”, destaca.
André Gorz [n.5] em seu visionário Ensaio ‘Le Sauvage’ (O Selvagem) sobre o carro de 1973 dizia que “a propagação do carro particular deslocou o transporte de massa e alterou o planejamento da cidade e da habitação”.
Advém daí outro problema: a cultura do privado que se sobrepõe ao público. “A cultura automotiva deixa marcas indeléveis nas ruas de grandes cidades”, diz o jornalista Conrado Corsalette para quem ao transformar o seu veículo numa extensão da casa (ou na melhor parte dela), há quem tenha perdido a noção de que a rua é um espaço público.
Aílton Brasiliense Pires, diretor do Departamento Nacional de Trânsito (Denatran) comenta: O erro no Brasil é o fato de que “o carro é visto como um direito e não como responsabilidade”.
O antropólogo Roberto Da Matta, observador do mundo do trânsito, diz que “quem está dirigindo um automóvel se sente superior a quem, por exemplo, pedala numa bicicleta, ou àquele que está a pé”. Para ele, “no Brasil, a rua é negativa em relação à casa. É o mundo da competição, do salve-se-quem-puder, é o lugar onde você pode ser assaltado, ou morrer. Então o motorista fica agressivo. E no Brasil também se criou o mito de que o bom motorista é o agressivo, o esperto. Nesse ponto entra o outro mito brasileiro que é o da malandragem: se o sinal fechou em cima de mim, eu vou furar; se a estrada está entupida, vou pelo acostamento ou corto os outros carros, porque eu não sou trouxa”, diz ele.
A “opção brasileira” pelo carro
Na mesma semana do “Dia mundial sem carro”, o Brasil anunciou medidas de apoio à indústria do carro. Decreto do governo elevou a tributação dos carros importados numa clara decisão de proteção à indústria transnacional que se encontra no país há muitas décadas, particularmente a Fiat, Ford, General Motors e Volkswagen.
Esse anúncio já havia sido indicado no pacote Brasil Maior de estímulo à indústria. A medida anunciada vai permitir ao governo reduzir o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) para as empresas que aumentarem o conteúdo nacional, elevarem investimentos e produzirem veículos inovadores. A medida atende a um forte lobby das montadoras que estão preocupadas com as importações dos automóveis coreanos e chineses. Os fabricantes pressionaram o governo para obter incentivos fiscais para carros “genuinamente brasileiros”, mesmo que de montadoras transnacionais.
A decisão governamental garante a essas montadoras, que hoje dominam 54% do mercado brasileiro, fôlego e tempo para enfrentar a chegada dos chineses. A Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea) aplaudiu a decisão que classificou como uma mudança de paradigma. Para a entidade que representa as montadoras que produzem em território brasileiro, as medidas adotadas representam “um novo paradigma para a produção, fomento industrial e desenvolvimento do país”. As quatro grandes fizeram lobby e todo o processo de elaboração das medidas para elevar a tributação dos carros importados teria sido acompanhado pelos lobistas das quatro fabricantes: Fiat, Ford, General Motors e Volkswagen.
Do outro lado, a Associação Brasileira das Empresas Importadoras de Veículos Automotores (Abeiva), protestou contra a medida.
As montadoras têm um histórico de benefícios no Brasil. Recentemente, quando da crise mundial, foram agraciadas com reduções generosas no IPI. Sobre esses subsídios, Cláudio de Senna Frederico afirma: “Eu acho um absurdo. Não é somente aqui. Sempre aconteceu. A visibilidade da indústria automobilística não é só pelo produto. Uma vez que ele se tornou um produto muito visível, muito desejado, popular, ele fez isso em termos também de se aliar aos destinos da nação. Se a indústria automobilística está mal, o país está mal. A bandeira brasileira e a da indústria automobilística estão abraçadas”.
Esse histórico de benefícios vem de longe, dos anos 1950. Nos anos 50, Juscelino Kubitschek será o artífice em torno do qual se formula o modelo econômico desenvolvimentista associado ao capital transnacional. A fundamentação teórica do modelo é de que apesar do acelerado processo de industrialização encetado por Vargas, o país ainda subsistia em uma realidade de subdesenvolvimento. Resultante dessa análise, três iniciativas demarcam o governo JK. O Plano de Metas, a criação da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE) e a construção de Brasília. O que está implícito nessa decisão é acelerar o desenvolvimento nacional.
O programa formulado na divisa “50 anos 5”, explicitado no Plano de Metas, é a pedra angular do governo JK. Subjacente a essa decisão está a idéia de que o país não pode esperar 50 anos para se desenvolver, portanto, o que se demoraria 50 anos para se realizar que se faça em 5. O Plano de Metas mencionava cinco setores básicos da economia, abrangendo várias metas cada um, para os quais os investimentos públicos e privados deveriam ser canalizados. Os setores que mais recursos receberam foram energia, transportes e indústrias de base, num total de 93% dos recursos alocados.
A decisão pela tríade energia, transportes e indústrias de base têm como objetivo a atração da indústria automobilística, produto da análise de que o modelo de país desenvolvido a ser perseguido são os Estados Unidos, resultado, entre outros fatores, de seu moderno parque industrial, particularmente do automobilístico, responsável por uma grande cadeia produtiva.
A síntese da formulação é de que a vinda das montadoras ao país aportariam tecnologia de ponta, algo que não dispúnhamos e desencadearia um rápido crescimento econômico – a idéia dos “50 anos em 5”. A chegada do capital transnacional – as montadoras – associado ao modelo de concepção desenvolvimentista acelerou o crescimento das indústrias de base que foi de praticamente 100% no quinquênio 1956-1961. A economia, nesse período, cresceu em média 8,2% ao ano.
A imposição da indústria automotiva no Brasil é um dos pilares, portanto, da modernização conservadora no país: concentração do capital produtivo – região do ABC -, migração acentuada e modelagem de um transporte ancorado no sistema rodoviário. Por outro lado, o parque automobilístico engendrará e maturará a classe operária brasileira. Um operariado de perfil jovem e migrante que redundará mais tarde no denominado “novo sindicalismo”.
Foi esse sindicalismo que “produziu” Lula e o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC. Ambos hegemonizaram a luta sindical brasileira e a CUT nos últimos anos a partir da perspectiva produtivista – consumista. É a partir dessa perspectiva que se deve compreender o apoio da CUT aos “subsídios” às empresas, mesmo que com suas eventuais críticas. O programa do desenvolvimentismo aliou setores do capital produtivo transnacional aos trabalhadores. Na cimentação dessa aliança está o carro.
Por uma outra mobilidade
A civilização do automóvel dá sinais de esgotamento. ”A multiplicação de carros é uma bomba relógio ambiental de grandes proporções”, afirma o ambientalista André Trigueiro. “Não existe mais hora do rush e isso significa perda de mobilidade”, constata. Segundo ele, a engenharia de tráfico tem que mudar e, “em bom português”, diz que isso “significa que os investimentos públicos em transporte de massa eficiente, barato e rápido devem ser superiores, devem suplantar os investimentos públicos que abrem caminho para o transporte individual”. De acordo com o jornalista, a maioria dos impostos pagos pelos brasileiros ainda beneficia o transporte individual.
“É duro ter que dizer isso. Preciso ter cuidado ao explicar isso para não ter uma visão elitista, mas o fato é que não é possível todo o brasileiro ter carro, como não é possível todo indiano, todo chinês ter carro. Simplesmente não dá, não é uma questão de justiça, é uma questão física. 83% dos brasileiros vivem em cidades segundo o IBGE. Se todos esses tiverem um carro, a vida se tornará absolutamente insustentável, intolerável”, afirma Trigueiro.
Evidenciado esse impasse, a pergunta que surge é a seguinte: “É possível uma cidade sem carro”? O presidente da ONG Rodas da Paz, Uirá Felipe Lourenço em entrevista concedida à IHU On-Line, por ocasião do Dia mundial sem carro, destaca que “as cidades brasileiras, de forma geral, ainda permanecem com a lógica atrasada de incentivar o transporte individual motorizado. Túneis, viadutos e ampliações de vias ainda fazem parte dos planos e das obras governamentais. Cidades modernas já não fazem isso há décadas”, diz ele.
Segundo Uirá Felipe, “a ordem do dia nas cidades efetivamente modernas é investir em transporte coletivo e no transporte não motorizado. Assim, tais cidades investem em corredores exclusivos de ônibus, em integração, em moderação de tráfego (por exemplo, reduz-se o limite de velocidade na via para permitir melhor convivência entre motorizados e não motorizados), em ciclovias, ciclofaixas e calçadas contínuas e de boa qualidade”.
O ativista destaca ainda que “o transporte coletivo continua sofrível: caro, desintegrado, superlotado, sem pontualidade e nem informações básicas aos usuários sobre linhas e horários”. Ele acredita que “oferecer boas condições para os usuários do transporte coletivo, com um sistema eficiente e integrado, e dar segurança e conforto aos que optam por pedalar e caminhar. Num momento posterior, pensar em restrições ao automóvel, como taxar ou proibir a circulação de carros na área central”.
As experiências de que uma “cidade sem carros é possível” é defendida por vários autores, entre eles, o urbanista holandês J.H. Crawford [n.6]. Sugere ele: “Imagine a vida em uma metrópole livre do barulho, da poluição e de todas as dificuldades de se mover por ruas dominadas por carros, ônibus e caminhões. Todas as necessidades básicas, de supermercados a farmácias, estariam a cinco minutos a pé da porta de sua casa. A viagem para o trabalho seria feita em um serviço de transporte público barato, rápido, seguro e confortável e duraria no máximo 35 minutos”.
Essa situação hipotética para ela é possível: basta banir o uso de automóveis em áreas urbanas e (re) construir cidades em função disso. “As nações industrializadas cometeram um terrível erro ao adotar o carro como principal meio de locomoção nos meios urbanos”, disse Crawford. “Se nações desenvolvidas mostrarem o melhor exemplo e abandonarem o uso dos carros nas cidades, é possível que o resto do mundo pare de usá-los em nome do progresso e da modernidade”, ressalta. O urbanista não imagina que o carro vá desaparecer, mas acredita que, com o fim iminente do petróleo, seja necessário encontrar novas fontes de energia para permitir a operação de veículos apenas fora das cidades.
Londres já convive com o cerceamento ao uso do carro faz anos. Derek Turner [n.7], mentor do pedágio urbano de Londres, afirma que “o pedágio urbano tem três vantagens: reduz os congestionamentos, cria uma taxa de investimento e torna mais atraentes as viagens no transporte público. Com as ruas mais vazias, os ônibus andam mais rápido. Não conheço nenhum outro sistema no mundo com essas vantagens”, destaca.
Nas eleições municipais do ano que vem, a problemática do trânsito insuportável nas grandes capitais voltará à baila e nenhum candidato terá a coragem de afirmar que a única forma de enfrentar o problema em áreas de congestionamentos é o pedágio urbano. A proposta é antipática. Viadutos, pontes, avenidas e eternas melhorias no transporte coletivo serão prometidas. O Brasil perde uma oportunidade com a proximidade da Copa do Mundo. O tema está desconectado da construção de estádios.
(Ecodebate, 20/10/2020) publicado pela IHU On-line, parceiro estratégico do EcoDebate na socialização da informação.
[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]