Parque do Cocó, maior área verde urbana da região, passou na última semana pelo maior incêndio desde sua criação, com 46 hectares atingidos e nevoeiro em vários bairros da cidade. Área é cobiçada por construtoras.
Beatriz Jucá, El País Brasil, 23 de novembro de 2021
Por volta das 18h da última quarta-feira, labaredas começaram a tomar uma mata baixa e seca nas margens da avenida Raul Barbosa, próxima ao aeroporto de Fortaleza, no Ceará. Eram os primeiros sinais do que se confirmaria horas depois como o mais grave incêndio já registrado no maior parque natural urbano do Nordeste, o Cocó. Cerca de doze focos fizeram o fogo se alastrar ao longo de pouco mais de 46 hectares. O parque, localizado na área nobre da cidade e historicamente disputado em meio à especulação imobiliária, se expande ao longo de 15 bairros. Por conta do incêndio, vários deles amanheceram na quinta-feira encobertos por uma densa fumaça. Avenidas foram fechadas e duas linhas de ônibus tiveram o percurso alterado. Escolas interromperam aulas e enviaram os alunos de volta para casa, e alguns moradores das áreas mais afetadas tiveram de deixar suas casas, por conta da dificuldade para respirar.
Do lado de dentro do parque ―um corredor verde que atravessa praticamente toda a capital nas margens do Rio Cocó e cujo ecossistema é responsável por regular a temperatura e o microclima da cidade―, cerca de 70 bombeiros, brigadistas e voluntários trabalhavam para controlar o fogo. As labaredas haviam atingido uma área de campo aberto, que costuma alagar no primeiro semestre do ano, mas seca no segundo, quando as chuvas praticamente desaparecem na cidade. A combinação de vegetação seca, ventos mais fortes e temperatura elevada típica deste período do ano resulta em combustível para as chamas. Os bombeiros precisaram agir rápido para evitar que o fogo chegasse às áreas residenciais ou avançasse até a área florestal, mais próxima ao mangue e ao rio ― o grande coração de diversidade de fauna e flora do parque.
O parque ―formado por uma extensa mata ciliar, mangues e dunas― abriga uma série de árvores nativas e exóticas, além de centenas de espécies de animais, algumas delas em risco de extinção. “O parque tem mais de 1.500 hectares de área verde em uma cidade que já perdeu entre 80% e 90% da sua área verde natural. O Cocó é o alento ambiental de Fortaleza. É muito heterogêneo, com manguezais, campos abertos naturais e palmeirais”, explica Hugo Fernandes, biólogo e pesquisador da Universidade Estadual do Ceará (Uece). Integrante da equipe que fez um levantamento da fauna e da flora do parque em 2018, ele estava entre os brigadistas que atuaram para debelar as chamas. O pesquisador lembra que o parque é abrigo para pelo menos 146 espécies de aves, 12 de mamíferos e mais de 40 tipos de répteis e anfíbios.
“É uma fauna rica, com espécies ameaçadas de extinção”, diz, citando como exemplo o leopardus tigrinus, um gato do mato. Recentemente, a foz do rio viu encalhe de peixe-boi, o que não acontecia há décadas. Parte do parque, já no encontro do rio com o mar da praia da Sabiaguaba, é também região de desova da tartaruga-pente. “É sem dúvida o grande patrimônio ambiental de Fortaleza”, resume Fernandes. Foram necessárias 22 horas de trabalho intenso para debelar o fogo, tempo considerado curto para a dimensão do incêndio. Algumas iguanas e outros animais foram carbonizados, perdas que ainda estão sendo contabilizadas pelo Estado. Mais de 50 árvores nativas e exóticas foram consumidas pelas chamas. Além disso, o fogo provavelmente motivou a fuga de mamíferos e animais com potencial maior de mobilidade, que agora deverão tentar sobreviver em outras áreas do parque e causarão desequilíbrio nas relações alimentares. “Todo impacto ambiental ocorre em cadeia”, lembra o biólogo.
Por enquanto, ainda não se sabe exatamente o que provocou o incêndio. “Todo incêndio ali é criminoso, porque a lei ambiental não autoriza uso de fogo na área. O fogo só pode ser usado com licença ambiental, o que não havia”, explica o secretário do Meio Ambiente do Ceará, Artur Bruno. Nos últimos sete anos, foram registrado 45 incêndios no parque, quatro deles apenas em 2021. Geralmente pela queima de lixo por moradores das redondezas do parque ou por queimadas causadas por motivos de especulação imobiliária.
“Começa quase sempre pela mão humana, seja acidental ou intencional. Cabe à perícia dizer o que houve. O que a gente sabe é que não é natural”, pontua Fernandes. O caso está em investigação na Delegacia de Crimes Ambientais, acompanhada por técnicos da Secretaria do Meio Ambiente (Sema). Artur Bruno diz que nenhuma dessas hipóteses está descartada e que, por enquanto, não há maiores informações. Fontes ouvidas pelo jornal O Povo apontam que o incêndio no Cocó pode ter relação com conflito de facções criminosas. Segundo o jornal, uma apuração preliminar indica que um homem ligado a facção teria espalhado o fogo ao longo da avenida Murilo Borges, próxima ao parque, durante um confronto entre áreas dominadas pelo crime na região. O titular da Sema, que acompanha as investigações, não confirma esta hipótese. “Ainda é cedo para apontar qualquer coisa, precisamos aguardar as investigações”, diz.
Um dos mais relevantes patrimônios ecológicos da cidade, o Cocó viu inúmeros prédios serem erguidos nos últimos anos. Algumas das construções têm praticamente entrada privativa para as trilhas do parque. Avenidas e viadutos também foram construídos, abocanhando parte da área verde, apesar dos inúmeros protestos de ambientalistas, que argumentavam sobre impactos no complexo ecossistema de seus mangues. Tantas pressões estenderam por décadas seu processo de regularização, com direito a inúmeras ocupações do parque feitas por ativistas. Somente após 45 anos de luta o parque foi finalmente oficializado, em 2017.
Não se pode dizer, contudo, que esteja a salvo. A especulação imobiliária é forte, especialmente em alguns dos bairros nobres que acompanham a parte com maior diversidade de fauna e flora, com os bairros Cocó, Guararapes e Edson Queiroz. O secretário Artur Bruno diz que rondas semanais são feitas em toda a extensão do Cocó para evitar ocupações irregulares. “Fazemos uma vistoria semanal para evitar apropriação indevida, seja de ricos ou de pobres, porque há também uma grande demanda de moradia na cidade. Conseguimos assim chegar no início das construções para impedi-las”, explica.
O parque também tem 30 quilômetros de cercas feitas com grades para limitar o acesso e começou a implantar câmeras de monitoramento que deverão garantir a segurança da população nas áreas de lazer, além de ajudar no controle de incêndios. O Governo do Estado informa ainda que contratou 19 brigadistas temporários para atuar no segundo semestre, quando os incêndios são mais frequentes. “Todos os anos, a partir deste ano, vamos contar com a brigada florestal. Eles foram contratados em outubro, desde novembro começaram a atuar. Um incêndio deste tamanho só foi debelado em menos de um dia porque todos agiram fortemente. A área é ruim, não tem como um caminhão entrar, por exemplo”, finaliza Bruno.