Pablo Ximénez de Sandoval, El País Brasil, 13 de setembro de 2020
Quando Chris Bruno começou a trabalhar como bombeiro em Fresno (Califórnia), há 20 anos, seus instrutores lhe contavam sobre os incêndios brutais que ocorriam no sul e no norte do Estado devido aos raios e às rajadas de vento por volta de outubro. Eram exemplos de coisas que aconteciam em outros lugares, não em Fresno. “Aqui a preocupação eram os incêndios nos campos, não nas florestas.” Mas o incêndio que há uma semana consome a serra a noroeste da cidade californiana é “esse incêndio”. Está queimando zonas que nunca haviam ardido. “Este é um fogo do qual os bombeiros da região falam há anos. E agora aconteceu”, disse o capitão Bruno na última sexta-feira, no centro de comando do chamado creek fire, que já destruiu 80.000 hectares de floresta e continua descontrolado.
Esse é somente um dos cerca de 100 incêndios que assolam a Costa Oeste dos Estados Unidos, de Seattle a Los Angeles. Mas não é o único que deixou estupefatos os bombeiros locais. Não apenas há muitos incêndios, mas muitos deles são fenômenos nunca vistos ― por seu tamanho, velocidade, tipo de terreno e quantidade de focos simultâneos. Em apenas uma semana, houve um recorde de hectares queimados no Oregon e na Califórnia ao mesmo tempo. E em ambos a diferença em relação à marca anterior é enorme. As imagens de satélite mostram os 2.000 quilômetros de costa cobertos de fumaça.
No caso do Oregon, os incêndios podem ter provocado a maior tragédia de vidas perdidas na história do Estado, segundo as autoridades. As equipes de resgate começaram as buscas entre os escombros de cinco povoados inteiros (mais de 600 casas) arrasados por um desses incêndios repentinos. Na Califórnia foram confirmados 19 mortos e pelo menos 20 desaparecidos até sábado, num incêndio que, em questão de horas, arrasou a mesma floresta onde 85 pessoas morreram em 2018.
“A espessura da vegetação, a baixa umidade, a alta temperatura, as árvores secas e doentes – todos esses elementos convergiram para transformar este incêndio num acontecimento único em minha geração”, disse ao EL PAÍS o capitão Bruno, de 46 anos. “Cada ano debatemos se esses são os piores incêndios que já vimos, e na temporada seguinte eles se superam.” Bruno afirma que viu com seus próprios olhos o endurecimento das condições climáticas na região. “É inevitável que isso piore”, afirma.
Os bombeiros observam no terreno as consequências de uma mudança nas condições climáticas que até há pouco tempo era teórica. A catástrofe ocupou as manchetes dos jornais dos EUA e trouxe de volta ao debate nacional um dos grandes temas políticos que fariam parte desta campanha nacional mas foram sepultados pela covid-19 e a crise econômica resultante. A mudança climática e suas consequências são muito difíceis de definir como argumento político, porque as pessoas não as percebem no dia a dia. Até agora.
“Não tenho nenhuma paciência com os negacionistas da mudança climática”, disse esta semana o governador da Califórnia, Gavin Newsom, visivelmente irritado ao se referir à crise dos incêndios no Estado. Na sexta-feira ele visitou uma das regiões atingidas, ao norte de Sacramento, e voltou a dizer: “O debate sobre a mudança climática terminou. Simplesmente venham à Califórnia. Vejam com seus próprios olhos. Não é um debate intelectual. Nem sequer é um debate. É uma maldita emergência climática. Isso é real.”
No Oregon, foi queimado na semana passada o dobro de hectares em comparação com a média anual da última década. A governadora, Kate Brown, afirmou que “isso não será um evento isolado, infelizmente é um aviso sobre o futuro”. “Estamos vendo o impacto da mudança climática”, disse Brown. No Estado de Washington, o governador Jay Inslee, que se apresentou nas primárias com um programa focado na luta contra a mudança climática, começou a chamar os incêndios florestais de “incêndios climáticos”. “Isso não é um ato de Deus. Só está acontecendo porque mudamos o clima do Estado de Washington de forma dramática”, afirmou Inslee.
Declarações desse tipo começam a povoar o debate nacional. “A mãe natureza está com raiva e mostra isso através de incêndios e furacões”, disse Nancy Pelosi, californiana de San Francisco e líder dos democratas na Câmara de Representantes (deputados). “A crise climática é real.” A situação pode se transformar, portanto, em outro fator de mobilização ante um presidente que abraça o negacionismo sobre a mudança climática, retirou os EUA do Acordo de Paris para redução de emissões poluentes e brigou na Justiça para anular os limites de poluição da indústria automobilística.
A essa altura, porém, o currículo de Trump nesse assunto é irrelevante. O do candidato democrata, Joe Biden, é insuficiente para a ala esquerda de seu partido, mas ele ao menos prometeu ações contundentes na luta contra a mudança climática. “A ciência é clara, e os sinais mortais são inequívocos”, disse Biden em nota neste sábado, o que transforma definitivamente o assunto em tema de campanha. A Casa Branca anunciou no mesmo dia que Trump visitará a Califórnia nesta segunda feira para conhecer de perto a situação. Será a primeira vez que o presidente se expõe nesse debate durante este período eleitoral.
Algumas causas dos incêndios desta semana foram espontâneas, como uma tempestade elétrica que descarregou raios sobre a Califórnia. Outras são de longo prazo, como uma gestão florestal que não permite os incêndios naturais e que tem sido objeto de tentativas de mudanças. Um terceiro fator que explica a perda de vidas é o empenho em construir casinhas de madeira no meio das florestas. Mas no cerne de tudo isso está a mudança climática, que faz com que todos os fatores juntos representem um perigo extremo.
“O aquecimento global faz com que lugares como Califórnia tenham problemas de fortes secas, que tiraram a umidade do solo e da vegetação”, explica Ricardo Álvarez, consultor sobre adaptação à mudança climática e pesquisador da Universidade Atlântica da Flórida (EUA). “Somem-se a isso temperaturas mais altas e raios secos.” Paulatinamente, diz ele, há mais meses de incêndios, que são também mais numerosos – o que, por sua vez, agrava o problema da seca e da poluição. Dos 20 maiores incêndios da história da Califórnia, 17 ocorreram neste século, 10 na última década. Dos 10 maiores da história, quatro são deste ano. E continuará havendo recordes. “Levaremos centenas de anos” para reverter essa tendência, diz o pesquisador.
“Tudo isso é besteira”, opinava na sexta-feira Jim Kimble, de 79 anos, veterano do Vietnã e defensor de Trump. Kimble teve que abandonar sua casa na segunda passada e, desde então, vive num trailer com sua mulher num estacionamento de uma igreja em Fresno. Diz que tudo é culpa de uma má gestão das florestas e da atitude ambiental dos democratas. Os arredores de Fresno são um bastião republicano dentro da muralha azul do Oeste, que não está em jogo nestas eleições e não mudará politicamente até novembro. Os Kimble dos EUA tampouco mudarão de opinião, nem com suas casas ardendo. Mas as imagens dos céus vermelhos e amarelos, as evidências de que a situação se agrava e o histórico de Trump nesse assunto abrem de repente um novo flanco para perguntar aos norte-americanos moderados, nos Estados-chave, se é possível permitir outros quatro anos de negação.
O fim do mundo era um incêndio
Fogos que devastam a Califórnia, como os da Austrália em dezembro, indicam que os efeitos devastadores da mudança climática pertencem ao presente, não só ao futuro
A Hora Final era um filme australiano de ficção científica de 1959, lançado em plena Guerra Fria quando a possibilidade de um conflito atômico entre as grandes potências que afundaria o mundo no inverno nuclear estava bem longe de ser uma fantasia. O filme relata a história de um grupo de sobreviventes abandonados em uma praia após a destruição do planeta pela nuvem radioativa e foi muito citado no ano passado, quando uma onda de incêndios devastadora queimou 11 milhões de hectares na Austrália e matou 33 pessoas. Como em A Hora Final, 4.000 habitantes da cidade costeira de Mallacoota, no Estado de Victoria, acabaram passando o Ano Novo em uma praia, encurralados entre o mar e o fogo.
Os incêndios da Oceania no ano passado e os atuais da Califórnia e do Oregon têm muitos pontos em comum. Aparecem os mesmos céus vermelhos e o odor de fumaça, a penumbra apocalíptica ao meio-dia em cidades como San Francisco e Sidney. Alguns incêndios, além disso, são muito grandes e poderosos para ser apagados não importa a quantidade de bombeiros e meios aéreos mobilizados. As altas temperaturas também foram determinantes nos dois casos: Los Angeles ficou uma semana rondando os 50 graus, enquanto em 17 de agosto o Vale da Morte, entre Califórnia e Nevada, chegou à que certamente é a temperatura mais alta já registrada na Terra: 54,4 graus.
O jornalista norte-americano David Wallace-Wells descreveu esse tipo de incêndio em seu recente livro A terra inabitável: Uma história do futuro. Sua tese é que os desastres provocados pelo aquecimento global não pertencem ao futuro, já estão acontecendo. A Califórnia, o Oregon e a Austrália demonstram que tem razão. “Os incêndios estão entre os melhores e mais horríveis propagandistas da mudança climática: apavorantes e imediatos, não importa o quão distante você viva de uma região, causam cicatrizes que são lidas como presságios de futuros pesadelos, ainda que documentem os horrores atuais”, escreveu na revista New York Magazine quando começaram os incêndios na Califórnia.
Naquele Ano Novo, quando milhares de pessoas estavam refugiadas em uma praia, se multiplicavam os casos de pneumonia de origem desconhecida em Wuhan. E se trata de uma trágica coincidência porque todos os cientistas alertam que a pandemia está relacionada ao aumento da pressão humana sobre a natureza, que causa o salto de patógenos entre espécies. O mesmo acontece com os incêndios no Oeste americano e na Austrália: são regiões em que o fogo faz parte da natureza, como regulação estacional da floresta. A pressão demográfica, entretanto, faz com que os seres humanos estejam onde não deveriam e fiquem presos pelo fogo. Os céus avermelhados de San Francisco nos falam de um futuro aterrorizante, mas também de um presente cada vez mais ameaçador.