Esta crise na Índia lembra-nos como uma situação de saúde pública descontrolada e uma falha nas infra-estruturas de saúde pode levar a uma taxa de mortalidade muito mais elevada do que seria noutra circunstância.
Ankur Mutreja, Esquerda.net , 7 de maio de 2021
A maioria dos países utilizou o que é conhecido como o modelo de queijo suíço no planeamento da sua resposta à covid-19. Neste modelo de gestão de risco, cada medida preventiva é representada por uma fatia de queijo. Nenhuma fatia por si só pode impedir a propagação do vírus porque tem buracos (falhas). Mas muitas fatias, colocadas uma em frente da outra, são suficientes para impedir o contágio. Na Índia - para continuar a analogia - alguns dos buracos eram demasiado grandes em três das camadas mais importantes.
A primeira camada (como mostrado no diagrama abaixo) é o distanciamento físico - um grande desafio para a Índia. As cidades da Índia são densamente povoadas e tornadas mais densas pela chegada diária de milhões de trabalhadores migrantes(link is external) que fazem a maior parte do trabalho braçal.
A segunda camada é a utilização adequada de máscaras e o reforço das condições sanitárias. Esperava-se que isto não fosse fiável devido às baixas taxas de literacia(link is external) da Índia e ao cumprimento desigual das normas. O clima extremamente quente(link is external) em algumas partes do país, que pode chegar a 48℃-50℃ no pico do Verão, também não ajuda.
A camada final é a vacinação em massa. Esta medida tem sido gravemente comprometida desde o início. As elevadas taxas de relutância(link is external) de vacinação e, mais recentemente, a falta de vacinas(link is external) são responsáveis por isso. A Índia vacinou parcial ou totalmente apenas 12% da sua população. O desafio de vacinar a grande maioria da população num país tão grande, populoso e demograficamente complexo seria sempre difícil.
Durante a primeira vaga, o confinamento da Índia foi um dos mais rigorosos(link is external) do mundo. E o estigma de morrer de uma nova doença desconhecida encorajava as pessoas a usar máscaras. Assim, duas das três camadas primárias de proteção acima mencionadas funcionaram bem para proteger a Índia de uma infeção generalizada.
Na segunda vaga, porém, o fracasso prolongado e conjunto das três camadas básicas resultou num choque catastrófico no já ocupado cenário de doenças infeciosas e no sistema de saúde sob tensão da Índia.
Um estudo conhecido como serossíntese, realizado em fevereiro de 2021 em Nova Deli, mostrou que mais de 56%(link is external) da população tinha anticorpos contra o coronavírus. Este número só poderia ter aumentado nos meses que se seguiram. Contudo, não é evidente se os anticorpos serão tão eficazes contra as novas variantes em circulação.
A limitada sequenciação genómica viral na Índia torna difícil culpar de forma conclusiva qualquer uma das duas variantes em circulação, a B117 (primeiro detectada no Reino Unido) e B1617 (primeiro detetada na Índia) ou qualquer outra variante ainda desconhecida.
Demasiada descontração
Com outros contributos, tais como a flexibilização das restrições governamentais à realização de cerimónias religiosas, comícios eleitorais, eventos desportivos (até pouco antes do novo surto) e celebrações sociais e festivas, não é surpreendente que as camadas de resposta da COVID tenham sido dilaceradas por este vírus altamente oportunista, causando a devastação(link is external) a que estamos a assistir hoje.
A Índia está agora a relatar o maior número de casos(link is external) do mundo, com mais de 1 milhão registados de três em três dias. Isto tem colocado uma enorme pressão sobre a indústria de diagnóstico gerida maioritariamente por privados. Os diagnósticos que costumavam ser disponibilizados em menos de 24 horas estão agora a demorar até cinco dias(link is external), em alguns casos.
Isto resultou na morte de muitos doentes sem sequer considerarem uma ida ao hospital. E aqueles que têm a sorte de chegar a um hospital já estão bastante doentes por essa altura, tornando a recuperação ainda mais difícil, ou estão já em tratamento e não precisam de estar no hospital.
Esta crise na Índia lembra-nos como uma situação de saúde pública descontrolada e uma falha nas infra-estruturas de saúde pode levar a uma taxa de mortalidade muito mais elevada do que seria noutra circunstância. É uma lição importante para cada país que os sistemas de saúde devem estar preparados, prontos para outro potencial surto, até que todos estejamos seguros enquanto um só mundo.
Ankur Mutreja é Líder de Grupo do departamento de Saúde Global (Doenças Infeciosas) da Universidade de Cambridge. Recebe financiamento do UKRI, NIHR-BRC, Wellcome, DBT, Hamied Foundation and BMGF. Artigo publicado no portal The Conversation(link is external). Traduzido por Luís Branco para o Esquerda.net.