Texto do PL 490, aprovado em comissão, permite o contato com indígenas isolados caso haja “utilidade pública”. Empresas privadas podem realizar a aproximação com estes grupos caso contratadas pelo Governo
Gil Alessi, El País Brasil, 2 de julho de 2021
No Brasil existem aproximadamente 114 grupos indígenas que desconhecem o jogo político em Brasília. Em suas aldeias, localizadas nas profundezas da Amazônia Legal, não chegaram notícias da aprovação do Projeto de Lei 490/2007 pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara nesta terça-feira (o texto-base foi sancionado semana passada). Eles também desconhecem o termo “bancada ruralista” que, juntamente com a base governista, foram responsáveis pela sanção da iniciativa, que representa um retrocesso para os direitos de todos os povos originários do país. Apesar de estarem alheios aos trâmites legislativos, para estes 114 grupos indígenas isolados —que por vontade própria não têm contato com a sociedade há séculos, mas vivem pressionados pelo avanço de madeireiras, garimpeiros e pelo agronegócio— a aprovação do projeto pode significar sua extinção, segundo especialistas ouvidos pelo EL PAÍS. O texto agora vai para o plenário da Câmara, onde precisa ser aprovado antes de ir para o Senado.
A redação do projeto abre uma brecha para que estes povos isolados, cujo número total de indivíduos é desconhecido, sejam contatados contra sua vontade: “No caso de indígenas isolados, cabe ao Estado e à sociedade civil o absoluto respeito a suas liberdades e meios tradicionais de vida, devendo ser ao máximo evitado o contato, salvo para prestar auxílio médico ou para intermediar ação estatal de utilidade pública”, diz o texto, sem especificar o que seria esta “ação estatal de utilidade pública”. Juliana de Paula Batista, advogada do Instituto Socioambiental, explica a mudança. “A Constituição de 1988 garante aos indígenas seus usos e costumes. Com base nisso, desde a redemocratização do país, a política com os isolados é de não contato, uma vez que eles deliberadamente optam por se manterem apartados”. Segundo ela, “o que o projeto de lei está fazendo é acabar com essa política, prevendo contatos forçados, via um conceito abstrato e genérico como o de ‘ação estatal de utilidade pública’, que pode abarcar qualquer coisa”.
Este contato não desejado pelos povos isolados abre as portas para seu “genocídio”, aponta Batista. Por viverem em isolamento, são comunidades sem memória imunológica, logo suscetíveis a qualquer tipo de doença. “São contatos muito arriscados. Temos relatos históricos antes da Constituição de 1988 de grupos que foram dizimados por gripes e epidemias em menos de 48 horas após serem contatados”, explica. Atualmente existe um protocolo sanitário específico e um regramento para que seja feita a aproximação com isolados —caso tenha havido contato acidental, ou se esses indígenas manifestarem desejo de contato. “Esta aproximação segue uma série de precauções de saúde e antropológicas para fazer essa intermediação, com uma equipe multidisciplinar”, explica a advogada. Qualquer iniciativa do tipo precisa passar pela Secretaria Especial de Saúde Indígena do Ministério da Saúde.
Mas com a aprovação do PL, a ação de contato pode ser realizada por “entidades particulares, nacionais ou internacionais”, desde que contratadas pelo Estado para tanto. “Isso pode levar a contatos realizados por instituições sem experiência nesta área. Então, em tese, um grupo evangélico radical interessado na evangelização destes grupos ou uma empresa de mineração que quer explorar a terra deles podem ser responsáveis pela aproximação com índios isolados”, diz Batista. Já há registros de missões evangélicas atuando para catequizar indígenas e avançar eu projeto de urbanização de diversos pontos da Amazônia.
No Peru existe uma legislação semelhante à do PL 490, que permite que empreendedores privados façam o contato com os índios isolados. O resultado é um custo humano altíssimo, responsável, inclusive, pela fuga de alguns indígenas peruanos para a Amazônia brasileira, principalmente na região do Acre. “Imagina se a Eletrobras, responsável pela usina hidrelétrica de Belo Monte, fosse a encarregada da aproximação com povos isolados da reunião. É desastroso e sem precedentes”, afirma Carolina Santana, advogada do Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato, que trabalhou por 10 anos na Funai. “Eu não vejo possibilidade de um contato forçado, sem ser por iniciativa deles, trazer algum benefício para estes povos”, diz.
Por fim, o projeto coloca um marco legal temporal para a demarcação de terras indígenas. Assim, os povos originários precisariam comprovar que ocupavam a região reivindicada antes da data de promulgação da Constituição Federal de 1988, o que representaria um problema para os isolados caso sejam contatados . “Como um índio isolado pode provar isso? Eles não têm contato com a sociedade nacional, como poderão atestar sua presença em um local antes de 1988?”, indaga Batista.
O Supremo Tribunal Federal também pode barrar este projeto. A corte irá analisar nas próximas semanas o caso da demarcação de terras do povo Xokleng, em Santa Catarina, que também envolve o problema do marco temporal e que pode ter impacto no PL 490 por ter validade de repercussão geral (ou seja, se aplica a todos os processos semelhantes). O ministro Edson Fachin já adiantou seu voto de forma favorável aos Xokleng.
O PL 490 não é a primeira legislação a tramitar durante a gestão Bolsonaro que fragiliza os indígenas isolados. Em julho de 2020 o presidente sancionou a Lei 14.021, que permite em um de seus artigos a permanência de missionários em terras de povos isolados, desde que com aval de equipes médicas. “As missões de cunho religioso que já estejam nas comunidades indígenas [isoladas] deverão ser avaliadas pela equipe de saúde responsável e poderão permanecer mediante aval do médico responsável”, diz o texto. Uma Ação Direta de Inconstitucionalidade movida pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil contra esta legislação deve ser analisada pelo Supremo Tribunal Federal em breve. A relatoria do caso é do ministro Luis Roberto Barroso.