Amanda Carbone, Deize Sbarai Sanches Ximenes, Ivan Carlos Maglio, Victor Kinjo e Giuliano Locosselli, Jornal da USP, 25 de novembro de 2020
A infraestrutura verde e azul são temáticas contemporâneas da relação dos rios com as cidades, que promovem soluções no planejamento das cidades de forma econômica, e com benefícios para as pessoas e o meio ambiente, considerando aspectos ecológicos, prevenção de cheias e criação de espaços públicos saudáveis, inclusivos e sustentáveis à população. Uma das grandes preocupações atuais é a transformação da vida urbana, enfocando novos valores sociais, culturais e ambientais; trazendo uma ressignificação das cidades e uma reflexão: qual cidade queremos viver? Historicamente, as cidades têm sido planejadas e construídas em detrimento dos fluxos e processos naturais. O traçado geométrico das cidades antigas é usado até hoje em projetos urbanos, influenciado por um modelo cartesiano de apropriação da natureza e ocupação urbana de forma rápida e eficiente.
A forma de planejar cidades do século XIX, a partir de um modelo higienista onde a prioridade era garantir a ocupação urbana em condições adequadas de salubridade, culminou em obras de canalização de rios, drenagem urbana subterrânea para rápido escoamento da água, aterramentos, alargamento de vias, entre outros aspectos. Também o urbanismo modernista do século XX buscou organizar a cidade a partir de funções urbanas e separação funcional de usos do solo, e com foco prioritário no uso residencial e no transporte automotivo, gerando espraiamento urbano e construção de grandes vias expressas. Sob a influência desses modelos de urbanização pouco se levou em conta a funcionalidade ecológica e os fluxos da natureza no planejamento urbano.
O modelo de eficiência do urbanismo na fase industrial foi inspirado no modo de produção, com uma alusão à Carta de Atenas, 1933. Suas marcas reestruturantes levaram a uma setorização das cidades industriais de acordo com suas funções, o que inevitavelmente resultou numa clara distorção do ambiente urbano. Nas grandes cidades brasileiras, este modelo de urbanização sofreu transformações profundas a partir da década de 1970, com o advento de modelos mais flexíveis, de acordo com as mudanças na organização socioeconômica, e foco no consumo e serviços.
Atualmente, a população brasileira é majoritariamente urbana, com 84,4% vivendo em cidades (IBGE, 2010). À semelhança da população mundial, as cidades sofreram uma explosão de crescimento espacial e populacional principalmente após a Segunda Guerra Mundial. Hoje, somos 85% de pessoas vivendo em cidades e as tendências apontam para um aumento nessa porcentagem nos próximos anos. Aliado ao desafio de planejar cidades para uma demanda crescente de habitantes, e ao mesmo tempo para garantir o acesso da população a um ambiente saudável e equilibrado, é urgente alinhar o planejamento urbano brasileiro à atual agenda voltada para a construção de cidades resilientes e sustentáveis, seguindo acordos mundiais como a Agenda 2030 e o Acordo de Paris pelo clima de 2015.
Na Região Metropolitana de São Paulo (RMSP), por exemplo, enfrenta-se um cenário de planejamento urbano com diversas problemáticas, como a alta impermeabilização em áreas consolidadas, intensas desigualdades socioambientais e má distribuição de áreas verdes, além de uma ocupação desordenada que se espraia cada vez mais para as franjas da cidade. Este espraiamento gera pressões sobre os recursos naturais no Cinturão Verde, especialmente nas áreas de proteção aos mananciais da Região Metropolitana de São Paulo, e sobre os grandes remanescentes florestais com alta biodiversidade e prestadores de relevantes serviços ecossistêmicos [1] para a metrópole, caso do Parque Estadual da Cantareira.
Além disso, o planejamento e gestão de recursos hídricos na RMSP tem seguido uma lógica insustentável em que, para atender a demandas crescentes de consumo na metrópole, busca-se água em mananciais cada vez mais distantes, reforçando um paradigma baseado em obras de engenharia hidráulica convencionais que geram impactos e passivos ambientais em outras localidades da macrometrópole paulista. É o caso do Sistema Produtor do Alto Tietê, que já fez várias intervenções em rios, nas bordas da metrópole, a exemplo do último sistema implantado na RMSP, o Sistema São Lourenço, na região dos municípios de Ibiúna e Juquitiba, e agora avança em direção aos rios do litoral, como o Itapanhaú.
Neste contexto, os desafios para se planejar cidades mais resilientes e sustentáveis são muitos. Um deles é resolver problemas ambientais e sociais superpostos e estreitar a relação entre urbanidade e natureza, tanto nas áreas urbanas consolidadas quanto nas franjas da cidade.
Tem havido nas últimas décadas um movimento mundial de cidades aderindo ao “verde” como infraestrutura, com participações dos diferentes setores da sociedade, inclusive dos movimentos ativistas considerados chave neste processo de mudança, como é o caso de países como Alemanha, Espanha e Coreia do Sul. Nesse sentido, somos instigados a nos perguntar: como é a cidade que representa esses valores? Em que cidade queremos viver?
Experiências apontam que alternativas de intervenções voltadas a melhorar a permeabilidade na bacia, renaturalizar o canal fluvial emparedado ou devolver a planície de inundação ao rio, podem ser mais efetivas e menos custosas ambiental e financeiramente do que soluções de engenharia tradicionais. Nesse sentido, além do objetivo exclusivo de melhorar a qualidade da água, há, nessa abordagem emergente, a possibilidade de reinserir rios e córregos na paisagem urbana, recuperando a memória desses corpos hídricos, conectando espaços públicos, valorizando os serviços ambientais prestados à cidade pelos rios, estimulando a participação pública.
Embora o conceito de infraestrutura verde [2] em si seja recente, o campo do planejamento ecológico da paisagem tem sido moldado desde meados do século XIX e começo do século XX, por meio do trabalho inspirador de profissionais como Ebenezer Howard e Law Olmsted. Howard ficou conhecido pela obra Cidades-Jardins do Amanhã, de 1902, em que projetou um modelo urbano multicêntrico que inspirou o conceito de cidade-jardim amplamente conhecido. Frederick Law Olmsted (1822-1903) trouxe uma concepção sistêmica da natureza e, além de projetar o Central Park, fez um trabalho notório em Boston (EUA) no Colar de Esmeraldas, um sistema de parques multifuncional que recuperou uma extensa área degradada e proporcionou diversos benefícios, como purificação do ar, espaços de lazer e drenagem da água.
Outros exemplos internacionais mais atuais podem ser citados, dentre os quais as cidades de Essen e de Munique, na Alemanha, e a experiência da Holanda, mencionados pela arquiteta urbanista Carolina Nunes, da ONG Humanitat.
O Rio Emscher, na cidade de Essen, já foi um dos rios mais poluídos da Alemanha e sua história é um exemplo clássico de tentativa de controlar a natureza. Além de ter sido retificado, o rio tinha a função de transportar resíduos industriais e esgoto. Com o declínio da atividade de mineração, a região entrou em decadência. Adotou-se, então, uma estratégia, em curso, de recuperação das áreas industriais abandonadas, renaturalização do rio e criação de áreas de lazer e mobilidade, permeadas por intervenções culturais e educativas. Essen foi considerada, em 2017, a Capital Verde da Europa.
Em Munique, vários fatores diferenciam a cidade em termos de planejamento urbano e infraestrutura verde: os grandes parques lineares, os parques de bairro com contato com a água, moradia perto do trabalho, passagens exclusivas para pedestres e ciclistas, e a marcante presença do Rio Isar no centro da cidade, integrado à paisagem, com espaços de lazer, proteção contra cheias e melhores condições para a biodiversidade.
Na Holanda, país bastante conhecido pelas infraestruturas verde e azul, um exemplo marcante é o projeto Room for the River, que também visa a reduzir o risco de inundações, garantindo espaço para as águas e integrando o rio à paisagem, ao mesmo tempo em que propicia espaços agradáveis e seguros para deslocamento e lazer.
Experiências internacionais como estas podem inspirar ações no contexto brasileiro, mas é preciso considerar as particularidades da nossa realidade urbana. Em áreas totalmente consolidadas, como o espigão da Avenida Paulista, em São Paulo, onde não é possível transformar o uso do solo urbano a ponto de destamponar totalmente nascentes e rios, é possível, ao menos, buscar formas de ressignificar a relação dos habitantes com esses corpos d’água que, embora degradados e escondidos, continuam existindo no território.
A realidade brasileira pode se tornar ainda mais complexa quando se considera a vulnerabilidade social e ambiental, caracterizada pela ocupação irregular das áreas periféricas da cidade e uma vasta degradação ambiental sem a devida fiscalização. Nestes casos não basta se pensar em soluções inovadoras e criativas de infraestrutura verde. É necessário enxergar o problema a partir de um olhar intersetorial e reconhecer que existem múltiplas causas, cujas respostas exigem planejamento, inclusão social e vontade política para se pensar em soluções que não apenas desaceleram a degradação ambiental, mas geram mudanças sociais. Um caminho, por exemplo, é criar áreas de lazer e verde em lugares degradados e abandonados, a partir do engajamento comunitário. A cocriação das soluções envolvendo diferentes atores, inclusive a comunidade do entorno, é uma medida que visa ao estabelecimento de uma conexão íntima com as propostas de restauração dos ecossistemas, garantindo assim a própria sustentabilidade destas intervenções no futuro.
Como afirma Luciana Martins Schenk, professora do IAU/USP e ABAP, a paisagem é uma questão política que traz a ansiedade e o desejo do cidadão de construir a sua própria cidade. Nesse sentido, é necessário uma revolução cultural, além de maior comprometimento dos diferentes atores.
O exemplo da cidade de São Carlos, no interior paulista, inspira alguns passos para uma ação bottom-up, a partir dos interesses e ações coletivas. O diálogo durante a revisão do Plano Diretor da cidade resultou em uma alteração de diretrizes urbanísticas, com aumento da faixa de preservação ou non aedificandi na bacia do Rio Monjolinho.
Em Lages, o projeto Criaticidade, uma parceria entre a iniciativa pública e privada desenvolvido pela Glóbulo, empresa de Florianópolis, e com a Humanitat, no planejamento da aceleração criativa do território, visou ao desenvolvimento da cidade a partir da diminuição da desigualdade social e do aumento do potencial econômico por meio de soluções criativas; exemplo de estímulo ao engajamento comunitário na busca por soluções de planejamento urbano. O primeiro passo incluiu a realização de um diagnóstico socioeconômico da cidade e o mapeamento de potencialidades. A segunda fase envolveu a criação de metas, eixos e comitês para discutir e tratar de cada um dos temas prioritários elencados, como comenta a arquiteta Carolina Nunes, da Humanitat. Como parte desse processo, foi criado o movimento #NovosTropeiros.
Pensar em ações no território que fomentem uma cidade sustentável na qual a infraestrutura verde esteja integrada é um reconhecimento e valorização da natureza como espaço de patrimônio cultural, conforme defende Gabriel Gallarza, do Observatório de Interações no Ambiente (OIA) e Instituto de Documentação Socioambiental (Hügato). Ele traz esse enfoque em seu trabalho de inventários territoriais, em um processo de identificação e registro das características mais significativas das paisagens, vistas sob um enfoque cultural.
Outro exemplo desse tipo de abordagem é o projeto Retratos do Belém, feito em Curitiba (PR), na bacia do Rio Belém, um dos mais importantes da cidade. Foi feito um trabalho de resgate de material teórico e pesquisas de campo com varredura, percorrendo toda a extensão do rio (em 12 percursos que propiciaram a identificação de 120 elementos paisagísticos, incluindo manifestações culturais). Cada elemento foi inventariado em uma ficha com descrição e fotos. Com esse levantamento, é possível fazer uma interpretação da paisagem (com a identificação, por exemplo, da estrutura do leito do rio em cada trecho – natural, canalizado, submerso e retificado) e criar conjuntos paisagísticos que agrupam os elementos inventariados e propiciam material valioso para o planejamento urbano. O projeto resultou em vídeos e prêmios e o blog Retratos do Belém.
Nessa perspectiva de integração entre os espaços naturais e culturais e sua relação inerente com o espaço construído, o arquiteto e urbanista Newton Massafumi Yamato (Medialab/SP) apresenta um projeto inovador para o Parque do Bixiga, de autoria da equipe formada pelos arquitetos Bruno Rissardo, Carila Matzenbacher, Luiz Felipe Orlando, Marcelo X, Marília Gallmeister e Newton Massafumi Yamato, inspirado em ideias anteriores de Lina Bo Bardi e Edson Elito. A região, próxima ao centro de São Paulo e onde se localiza o Teatro Oficina, possui diversos bens materiais tombados, sendo composta de um conjunto de córregos, hoje tamponados, considerados pelo Código de Obras vigente como parte da galeria pluvial da cidade. Existe neste local uma disputa antiga entre o Grupo Silvio Santos, atual proprietário do terreno, e o Teatro Oficina, porta-voz dos movimentos e das demandas por mais espaços culturais e de lazer neste trecho da cidade, que apresenta carência de áreas verdes.
Assim, o projeto proposto visa a uma ressignificação dessa paisagem que inclui a reabertura de um pequeno trecho do Rio Bixiga, promovendo um contato inédito dos paulistanos com os rios urbanos, transformando-o num espaço público e valorizando sua centralidade ambiental e sociocultural [3].
O processo desse estudo envolveu uma integração com os artistas locais e o Teatro Oficina no reconhecimento da importância do sistema hídrico local, e contou com a participação dos idealizadores do projeto Rios e Ruas, o arquiteto José Bueno e o geógrafo Luiz de Campos.
Apesar de ser uma demanda defendida e apoiada por diversas entidades, universidades, conselhos e outros grupos como o Movimento Salve Saracura e o movimento Rede Social Bela Vista e ter seu projeto de Lei Nº 805/2017, de autoria do vereador Gilberto Natalini, aprovado em 2019 por duas vezes na Câmara Municipal com o apoio de parlamentares de variados partidos, a criação do Parque do Bixiga foi vetada pela Prefeitura de São Paulo.
A administração municipal alegou que o projeto não reúne condições de ser convertido em lei por “invadir” a competência do poder Executivo, já que é composto por terrenos particulares. E que a área não é definida como prioritária pelo Plano Diretor Estratégico, não havendo, no local, vegetação significativa nem remanescente de Mata Atlântica.
Apesar de existirem mecanismos como a Transferência do Potencial Construtivo – TPC no âmbito do Plano Diretor Estratégico para que o empreendedor possa ser ressarcido e aplique o potencial em outro local da cidade e do Bixiga ser um bairro carente de áreas verdes e que apresenta, de acordo com pesquisa recente do IEA, um ponto crítico da ilha de calor urbano, a questão permanece em aberto e na pauta dos movimentos pela ampliação dos espaços públicos e da infraestrutura verde e azul na cidade de São Paulo.
Conclusão
As experiências nacionais e internacionais aqui citadas apontam propostas de compatibilização dos aspectos físicos da infraestrutura verde e os rios urbanos, com o envolvimento da sociedade, em diferentes contextos e etapas de sua implementação. Na cidade global de São Paulo, além do caso do Parque Bixiga, outras movimentos da sociedade civil, como o do Coletivo Ocupe Abrace, na Praça das Nascentes, as iniciativas Rios e Ruas, Existe Água em São Paulo, Secura Humana e a ocupação Guarani pelo Centro Cultural Yari Ty, no Jaraguá, são evidências de que temos um vasto potencial para a construção de uma nova cultura de valorização dos rios urbanos.
No entanto, há grandes desafios a vencer para o fortalecimento das ações bottom-up que incorporem as propostas da sociedade civil e o engajamento comunitário na articulação de suas aspirações nas ações de planejamento urbano. Destaca-se a transformação cultural e o engajamento de todos os setores, e a gestão pública, numa governança integrada para florescer um paradigma inovador de valorização da paisagem urbana com seus rios e áreas verdes, respeitando os fluxos e processos naturais.
Amanda Carbone é pesquisadora do Instituto Siades e colaboradora do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, Deize Sbarai Sanches Ximenes, Ivan Carlos Maglio, Victor Kinjo são pesquisadores do programa Cidades Globais do IEA e Giuliano Locosselli é pesquisador do IEA e do Instituto de Botânica da USP.
Notas:
Este artigo também contou com a colaboração dos palestrantes no evento Rios Urbanos e Infraestrutura Verde promovido pelo Centro de Síntese Cidades Globais do IEA: Carolina Nunes (ONG Humanitat), Luciana Martins Schenk (professora do IAU/USP), Gabriel Gallarza (Observatório de Interações no Ambiente/OIA e Hügato) e Newton Massafumi Yamato (Medialab/SP).
[1] Os serviços ecossistêmicos compõem um conjunto de benefícios fornecidos pelo ambiente natural, ou seus elementos, para os seres humanos. Estes serviços podem ser divididos em quatro categorias: provisão, regulação, culturais e de suporte. Eles incluem a provisão de matérias-primas essenciais para as atividades humanas; promoção de regulação de funções dos ecossistemas como: sequestro de carbono; regulação climática; produção de água; redução da poluição do ar, água e solo, entre outros; além de todos os benefícios culturais advindos do contato das pessoas com elementos naturais. Hoje, são considerados elementos essenciais nas Soluções Baseadas na Natureza que incluem ações “inspiradas por, apoiadas por, ou copiadas da natureza” para propor iniciativas inovadoras para abordar questões sociais, ambientais e econômicas.
[2] O termo infraestrutura verde enfatiza a ideia de sistemas interconectados de áreas naturais, levando em conta múltiplas escalas que variam entre grandes áreas protegidas a pequenos jardins, a partir de uma perspectiva multifuncional. Também tem como premissas a interdisciplinaridade, a integração entre diferentes níveis de governo e o planejamento, desenho e implementação com envolvimento comunitário e participação social, pensando em diferentes estratégias que garantam infraestrutura verde e os serviços ecossistêmicos dela derivados.
[3] A renaturalização dos rios segue a mesma lógica da restauração dos ecossistemas, com o objetivo de trazer as condições naturais encontradas originalmente, antes da urbanização. A renaturalização dos rios prevê uma alteração na hidrologia local e regional com, por exemplo, áreas para represamento temporário das águas inspiradas nas várzeas, regulando principalmente a ocorrência de enchentes. O destamponamento dos rios ainda favorece os processos de umidificação e refrigeração do ambiente urbano aprimorando a habitabilidade das cidades. Por estimular também a restauração do traçado original, e da vegetação associada, os projetos de renaturalização ainda promovem a biodiversidade nas cidades ao criar nichos mais especializados para diferentes espécies animais e vegetais.