Governo britânico pretendia recuperar a normalidade plena em 21 de junho. Mas será mantido o limite de seis pessoas em reuniões em espaços internos e a recomendação de trabalhar de casa
Rafa de Miguel, El País Brasil, 14 de junho de 2021
Boris Johnson começa a se dar conta de que a liberdade, como ele a concebeu, ainda está muito longe. O primeiro-ministro britânico apareceu perante a mídia nesta segunda-feira, acompanhado por seus dois principais assessores médicos durante a pandemia, para anunciar o adiamento de até quatro semanas do Dia da Liberdade. No plano de reabertura gradual traçado por Downing Street, 21 de junho seria a última etapa, o momento em que os cidadãos recuperariam sua normalidade total e as restrições sociais seriam quase completamente removidas. A variante indiana (ou delta), que se espalhou pelo país a um ritmo preocupante nas últimas semanas, interrompeu os planos.
O Reino Unido registrou 7.742 novos casos e três mortes nesta segunda-feira. Em média, o número de novas infecções é 45% maior do que uma semana atrás. O ritmo de internações também está se acelerando, e já é 50% maior que nos dias anteriores. E afeta principalmente os menores de 40 anos. Na verdade, a incidência de 14 dias para cada 100.000 habitantes passou de cerca de 40 há um mês para mais de 130, de acordo com os dados mais recentes do site do Governo.
“Não podemos eliminar simplesmente a covid-19 de um modo definitivo. Temos que aprender a conviver com isso”, explicou Johnson. Com a nova variante, afirmou, “a ligação entre contágios e hospitalizações enfraqueceu, mas não foi interrompida de todo”. Agora será mantido o limite de seis pessoas em reuniões internas e a recomendação de se continuar trabalhando em casa. Johnson ofereceu o consolo de suspender o atual limite de 30 pessoas para casamentos, embora os lugares devam continuar aplicando as regras de distanciamento social e os bailes subsequentes estejam proibidos. Teatros, discotecas e festivais de música permanecerão proibidos.
As viagens internacionais serão afetadas pela decisão, mas Johnson não quis antecipar nenhuma mudança. Todos os países europeus, incluindo a Espanha, permanecem na “lista âmbar”. O Governo britânico recomenda não planejar férias para os destinos dessa lista e obriga quem retorna deles a uma quarentena de dez dias e três testes de PCR. “Vamos nos ater ao nosso sistema de listas verde, vermelha e âmbar. Não posso acrescentar muito mais quanto a isso”, resumiu Johnson, em resposta à crescente frustração na indústria do turismo.
O primeiro-ministro britânico enfrenta um duplo dilema, que levará algumas semanas a mais para ser resolvido. Os especialistas que o aconselham querem verificar a real eficácia das vacinas para impedir os casos de pacientes gravemente enfermos infectados pela nova variante. Apesar do sucesso da campanha de vacinação, os números ainda não alcançam uma barreira da tranquilidade. Um estudo publicado pela revista científica The Lancet concluiu, com dados coletados principalmente na Escócia, que o risco de hospitalização derivada da variante indiana, que já se tornou a predominante em todo o Reino Unido, é o dobro do da primeira variante, conhecida como britânica. A dose dupla de vacinas tem sido um pouco menos resistente à nova ameaça, mas ainda oferece muita esperança. Duas injeções do composto Pfizer oferecem 81% de proteção. No caso da AstraZeneca, a mais distribuída no Reino Unido, a proteção é de 60%.
O Governo britânico tem mais quatro semanas para acelerar o ritmo da vacinação e atingir um triplo objetivo: que todos os maiores de 50 anos tenham recebido as duas doses e que tenha decorrido o tempo necessário para que surtam efeito; aumentar a velocidade da campanha de vacinação para maiores de 40 anos; e, por fim, reduzir para todos eles o intervalo entre as doses de 12 para oito semanas. No total, 57% da população adulta do Reino Unido já recebeu ambas as injeções, em comparação com 79% que recebeu apenas a primeira. A cifra crucial seria de 70% com o tratamento integral até o final de julho, e essa é a meta de Downing Street. “Até 19 de julho teremos construído um muro de imunização para toda a população. Estou confiante de que nesse dia poderemos retomar a normalidade”, disse o primeiro-ministro.
Mas Johnson também enfrenta uma situação política complicada. Repetidas vezes, ele insistiu em que o retorno à normalidade, após submeter os cidadãos a uma montanha-russa de tensões com confinamentos que apareciam, desapareciam e reapareciam ainda mais severos, seria “irreversível”. Os dados científicos atuais não concluem que 19 de julho deve ser necessariamente o novo “dia da liberdade”. A incerteza pode prolongar-se ainda por muito tempo e a paciência dos britânicos acabará sendo testada com novas expectativas frustradas. Com essa tensão psicológica, há a revolta política.
Nesta segunda-feira, o presidente da Câmara dos Comuns, Lindsay Hoyle, qualificou como “completamente inaceitável” que Downing Street tivesse anunciado antes para a mídia a decisão que Johnson estava prestes a adotar, sem que os deputados tivessem algo a dizer. “Não aceito isso e estou em um estágio em que começo a considerar outras possibilidades, se o Governo não estiver disposto a tratar esta Câmara de uma forma mais séria”, disse Hoyle em um comunicado inflamado. O caso todo está mais para ofensa formal do que crise constitucional em gestação. É tradição que os anúncios relevantes do Governo britânico sejam feitos primeiro no Parlamento, embora há muitos anos os inquilinos de Downing Street vazem as grandes decisões antes para os jornalistas. Johnson, porém, superou em muito seus antecessores nessa prática. Nesta segunda-feira, o ministro da Saúde, Matt Hancock, deveria explicar em Westminster o que seu chefe já havia revelado três horas antes.
Variantes do coronavírus mais perigosas vão continuar surgindo?
James Gallagher, BBC News, 14 junho 2021
Já ficou claro que agora o mundo está lidando com uma nova versão do corona vírus que se espalha com muito mais facilidade — provavelmente com o dobro da facilidade — do que a versão que surgiu em Wuhan no final de 2019.
A variante Alpha, identificada pela primeira vez em Kent, no Reino Unido, já havia demonstrado que mutações podem ter uma capacidade bem maior de contágio. Agora a Delta, vista primeiro na Índia, mostrou isso em uma escala ainda maior.
Isso é a evolução na prática.
Então, estamos condenados a um desfile interminável de variantes novas e aprimoradas cada vez mais difíceis de conter? Ou existe um limite para o quão pior o coronavírus pode se tornar?
Vale a pena relembrar a jornada desse vírus. Ele passou de uma espécie completamente diferente — seus parentes mais próximos são os coronavírus encontrados em morcegos, embora não se saiba ainda qual animal seria seu hospedeiro original — para outra — nós, os humanos.
Fazendo uma analogia, o vírus é como se fosse você começando um novo emprego: você é competente, mas não é ainda um profissional completo. A primeira variante foi boa o suficiente para iniciar uma pandemia devastadora, mas ela agora está melhorando conforme ganha experiência.
Quando os vírus chegam aos humanos, é "muito raro que sejam perfeitos", diz a professora Wendy Barclay, virologista do Imperial College London, no Reino Unido.
Existem exemplos de vírus de pandemias de gripe a surtos de ebola que saltaram para humanos e, depois, suas mutações aceleraram.
Então, até onde isso pode chegar?
A melhor maneira de comparar o poder de propagação puro dos vírus é observar seu R0 (pronuncia-se R-zero). É o número médio de pessoas para as quais cada pessoa infectada passa um vírus se ninguém estiver imune e tomar precauções.
Esse número estava em torno de 2,5 quando a pandemia começou em Wuhan e pode chegar a 8,0 para a variante Delta, de acordo com o Imperial College.
"Este vírus nos surpreendeu muito. Está além de qualquer coisa que temíamos", disse Aris Katzourakis, que estuda a evolução viral na Universidade de Oxford. "O fato de ter acontecido duas vezes em 18 meses, duas linhagens (Alpha e Delta) cada uma 50% mais transmissível, é uma quantidade fenomenal de mudança."
É "tolice", ele pensa, tentar especular sobre o quão longe isso pode chegar, mas Katzourakis acredita que poderá facilmente haver mais saltos na capacidade de transmissão nos próximos dois anos. Outros vírus têm um R0 muito mais alto. O recordista deles, o do sarampo, pode provocar surtos explosivos.
"Ainda há espaço para aumentar", diz Barclay. "O [R0 do] sarampo está entre 14 e 30, dependendo de para quem você pergunta. Eu não sei o que vai acontecer."
Mas como as variantes fazem isso?
Existem muitos truques que o vírus pode usar para melhorar sua disseminação, tais como:
- melhorando a forma como abre a porta para as células do nosso corpo;
- sobrevivendo mais tempo no ar;
- aumentando a carga viral para que os pacientes respirem mais vírus;
- mudando quando, no curso de uma infecção, se espalha para outra pessoa.
Uma das maneiras pelas quais a variante Alfa se tornou mais transmissível foi melhorando sua capacidade de passar pelo alarme de intrusão do corpo — chamado de resposta do interferon — dentro das células do nosso corpo.
Mas isso não significa que, quando avançarmos no alfabeto grego que dá nome às variantes e chegarmos à Ômega (a última letra grega), teremos um vírus monstruoso e imparável
"Em última análise, há limites e não existe um vírus final que tenha todas as combinações nocivas de mutações", diz Katzourakis.
Há também o conceito de compensações evolutivas — para se tornar melhor em uma coisa, geralmente se piora em outra. O programa de vacinação mais rápido da história criou um obstáculo diferente ao vírus, que poderá acabar tendo que seguir uma outra direção evolutiva.
"É bem possível que mudanças no vírus que o tornam melhor em evitar vacinas possam acabar prejudicando sua capacidade de transmissão", diz Katzourakis.
Ele acha que a variante Beta (conhecida como sul-africana) — que tem uma mutação ajuda a evitar o sistema imunológico, mas não conseguiu decolar — é um exemplo disso. No entanto, a Delta tem mutações que a ajudam a se espalhar e a evitar parcialmente a imunidade.
Ainda é difícil de prever qual será a estratégia ideal para o coronavírus, porque cada vírus usa técnicas diferentes para continuar infectando.
O sarampo é explosivo, mas deixa para trás imunidade vitalícia, então, é preciso sempre encontrar alguém novo para infectar. A gripe tem um R0 muito mais baixo, pouco acima de 1, mas sofre mutação constante, evitando a imunidade
"Estamos em uma fase realmente interessante, intermediária e um tanto imprevisível", diz Barclay.
Em países ricos com boas campanhas de vacinação, espera-se que as próximas variantes não sejam capazes de representar um grande problema devido à imunidade generalizada.
Mas essas variantes progressivamente mais transmissíveis são um pesadelo para o resto do mundo, e está ficando cada vez mais difícil manter a covid-19 sob controle.