Das Filipinas ao México, do Líbano aos Estados Unidos, da Índia ao Brasil, são nossos corpos que estão morrendo. Os corpos de jovens negros no Brasil, chicanas, mulheres trans indianas e filipinas e das LGBTs de todo o Sul Global são os que mais sofrem os processos decorrentes da convergência entre capitalismo, colonialismo e patriarcado. Essa violência colonial atravessa nossos corpos internacionalmente, e os distintos processos de humanização e desumanização nos matam de maneiras distintas ao redor do globo.
Entre os dias 11 e 12 de julho ocorreu o VIII Seminário LGBTI da IV Internacional. A Insurgência, na condição de parte da seção brasileira, enviou uma representação, que assina esse texto. No dia 11, tivemos uma mesa sobre a experiência do Black Lives Matter e sua expressão na luta LGBTI. No domingo, aproximações entre a pandemia de HIV e a de COVID-19, ambas com consequências desastrosas para a comunidade LGBTI internacional. Esse texto apresenta nossa síntese e apreensão dos debates deste fim de semana.
Este ano, pela primeira vez, o Seminário LGBTI da IV Internacional discutiu como um dos seus temas centrais o anti-racismo. Este é um debate que vem permeando há muitos anos as elaborações coletivas da militância LGBTI da IV Internacional e que agora, no contexto do recente levante global contra o racismo, ganha a centralidade que merece. Enquanto estrutura fundamental para a manutenção do capitalismo desde o seu princípio, o racismo também tem definido o modo como as pessoas LGBTI sofrem com a opressão e a exploração capitalista ao redor do mundo. No Brasil, país campeão no número de assassinatos de pessoas LGBTI, são as pessoas trans negras, em primeiro lugar, e os homens gays negros, em segundo lugar, os que mais morrem por transfobia e homofobia, respectivamente. Em países do norte global, gays e lésbicas reconhecidos como “cidadãos nacionais” tem seus direitos garantidos, ao passo que pessoas LGBTI imigrantes e não brancas, especialmente pessoas trans, muitas das quais migram para escapar da violência LGBTIfóbica em seus países de origem, permanecem em situação de “ilegalidade” e expostas a todo o tipo de violência. O quadro se complexifica quando observamos que, historicamente, a LGBTIfobia nos países do Sul Global está diretamente relacionada com o legado do colonialismo europeu.
A interseccionalidade entre gênero, raça, sexualidade e classe foi bastante ressaltada na análise da exploração e opressão nos diferentes países. Não à toa, o movimento Black Lives Matter se constitui como um levante global de negros e negras que teve como estopim o assassinato de George Floyd por um um policial branco nos Estados Unidos, mas que cruzou o oceano Atlântico e agora se expressa na derrubada das estátuas de colonizadores e escravagistas na Inglaterra e na França. É a negritude trabalhadora o setor mais explorado e mais atacado pela política de morte colonial do capitalismo global. O racismo e os distintos níveis de desumanização são sentidos também entre os filipinos, indianos, libaneses, porto riquenhos, japoneses: trata-se de um regime global de opressão e exploração.
Para compreender esse fenômeno internacional, o conceito criado pelo cientista político camaronês Achille Mbembe de necropolítica foi bastante citado durante os dois dias de seminário. Necropolítica é o poder de ditar quem pode viver e quem pode morrer pelos soberanos. E a produção de vidas descartáveis, passíveis de extermínio, estão totalmente interligadas com raça, gênero e classe. No berço do movimento Black Lives Matter, a palavra de ordem Black Trans Lives Matter tem chamado atenção para esse fato de que as LGBTIs, em especial as pessoas trans, estão mais sujeitas ainda a essa política de morte, entre a população negra. Nas Filipinas, Rodrigo Duterte aumenta a militarização da vida, espalha fake news contra a população LGBTI e produz o extermínio das vidas de LGBTIs, da ilha de Mindanao. E é também o movimento LGBTI uma das expressões da resistência contra a necropolítica de Duterte. No Brasil, a descontinuação das políticas de saúde para população que vive com hiv, significa, em particular, permitir que estas pessoas tenham suas vidas ceifadas.
A pandemia de COVID-19 tem sido cruel com as LGBTIs nos mais diferentes países. Na Hungria, Viktor Orban aproveita a pandemia de COVID-19 para obter poderes extraordinários frente ao Poder Legislativo do país. Uma das primeiras medidas de Orban neste período foi justamente a aprovação de uma lei de caráter transfóbico que impede a alteração do gênero e nome nos documentos oficiais daquele país. No Brasil, Bolsonaro expressa sua face necropolítica ao incentivar que as pessoas saiam às ruas em meio a mais de 80 mil mortes por covid-19 que se acumulam no país. “E daí” é a expressão máxima do descarte de vidas.
Em todo o mundo, as casas são reconhecidas como espaços de violência contra LGBTIs e o “Fique em casa” - campanha difundida internacionalmente para o combate ao novo coronavírus - tem efeitos perversos para quem precisa conviver com a violência LGBTIfóbica no próprio lar. Não por acaso, vimos durante os primeiros meses de confinamento inúmeros casos de suicídio de jovens LGBTI devido a quadros acentuados de depressão, especialmente jovens trans. A elevada mortalidade de pessoas trans pelo novo coronavírus também demonstra quem são os corpos mais vulneráveis quando a única política de saúde possível é “ficar em casa” (quem tem casa e quem condições dignas de moradia?) e “ficar seguro” (quem tem condições de estar seguro quando nem o próprio lar é um espaço de segurança?).
A pandemia revela ainda o impacto do colonialismo em nossas vidas: vemos países imperialistas do norte global agindo como piratas e interceptando insumos e equipamentos de proteção individual ou hospitalares como se as vidas do lado de cá do mundo não importassem. Ao mesmo tempo, os EUA doaram 2 milhões de comprimidos de hidroxicloroquina ao Brasil, mesmo sabendo que este medicamento não tem eficiência cientificamente comprovada e pode inclusive matar o nosso povo. O crescente desmatamento na Amazônia, que está diretamente relacionado com interesses políticos e econômicos internacionais, acelera o genocídio dos povos indígenas no Brasil. É tarefa das LGBTI revolucionárias resistir a estes ataques imperialistas e coloniais!
Espaços de discussão como o Seminário LGBTI da IV trazem a compreensão de que os processos de dominação que se impõem sobre os sobre nossos corpos são parte dos processos globais de atualização do colonialismo, patriarcado e do capitalismo. Nossas lutas ultrapassam fronteiras nacionais e se conectam através dos mecanismos mundializados de opressão e exploração. A minoria dominante no quer em posição periférica, assim como os os negros, imigrantes e os trabalhadores mais pobres subalternizados e com o aprofundamento das políticas neoliberais. Por isso, as lutas LGBTI pelo mundo são parte importante das lutas anticapitalistas. Devemos seguir nos organizando para a derrubada do patriarcado, colonialismo e capitalismo!
* Rodrigo, Nadja, Gustavo e César, delegação da Insurgência ao VIII Seminário LGBTI da IV Internacional.