Emerge, em novos países, apelo à irracionalidade diante da covid. Discurso se repete: cloroquina, “gripezinha”, ataque à quarentena e às máscaras. Políticos conservadores aderem — e agridem, para encobrir fracasso da direita na crise.
Jorge Fonseca, Público.es/Outras Palavras, 2 de setembro de 2020. Tradução de Simone Paz.
Multiplicam-se, agora em países como Espanha e Argentina, as manifestações de negacionistas da pandemia. Elas se opõem à quarentena, ao uso de máscaras e a outras medidas preventivas contra o contágio da covid-19. Fazem parte da estratégia que se baseia no ódio para deslegitimar e atacar governos progressistas — manipulando parte da população, que encara uma difícil situação sanitária, econômica e emocional.
A rejeição à quarentena, junto com a acusação de que seria uma medida autoritária dos governos progressistas, tem raízes no manifesto de abril de um batalhão internacional neoliberal de ultradireita. É comandado pelo escritor Mario Vargas Llosa (o “feiticeiro da tribo” que reconhece que adora “escrever mentiras que pareçam verdades”, como define por Atilio Borón). Reúne, além dos ex-presidentes Mauricio Macri (Argentina) e José Maria Aznar (Espanha), o ex-presidente colombiano Alvaro Uribe, acusado de terrorismo de Estado e agora em prisão domiciliar.
Não é por acaso que, recentemente, e com apenas um dia de diferença, foram convocadas manifestações em Madrid e Buenos Aires (além de outras cidades argentinas) com os mesmos slogans: o vírus é uma farsa, é como uma gripe, quarentena é privação de liberdade, não às vacinas, sim à cloroquina (na Argentina estão investigando se poderia ter sido a causa da morte de uma criança), não às máscaras. Em Madrid, poucos manifestantes (entre os dois mil presentes) usaram máscara — e um deles já está internado com covid-19.
Também, não é uma simples coincidência que no dia 27 de julho tenha ocorrido um encontro dos negacionistas da pandemia, em Madrid, sob o nome de “Médicos pela Verdade”, com discursos de extrema-direita e praticamente nada de medicina, com argumentos falsos sobre o vírus, seu tratamento ou o uso de máscaras. Três dos palestrantes eram argentinos: Ramiro Salazar afirmou que “estamos diante de um plano global para subjugar os povos do mundo”, enquanto Gastón Cornu, alinhado a Trump, apontou a China como criadora e manipuladora da epidemia. Chinda Brandolin (participante de um fórum filonazista) afirmou que “o objetivo final da falsa pandemia é impor à força um regime comunista… como já estamos vendo na Espanha ou na Argentina…” e acrescentou que na Argentina eles devem ter “feito acertos com muitas corporações médicas para parar o país”. Afirmou, ainda, que tal “manobra política generalizada… tenta quebrar as economias nacionais”, e defendeu o caminho do contágio para chegar à chamada “imunidade de rebanho”.
O massacre para imunizar o “rebanho”
Uma semana antes, Salazar encabeçava a lista de signatários (que incluía Cornu) de declaração dirigida ao presidente argentino Alberto Fernández. Nela, a quarentena era criticada e defendia-se a “imunidade inata” e “celular natural… dos anticorpos por contágio” ou a “imunidade de rebanho”. A lógica prioriza os benefícios privados em detrimento da população e está na base das estratégias de Trump nos EUA, Bolsonaro no Brasil e Boris Johnson no Reino Unido. Juntos, somam quase dez milhões de infectados e mais de 400 mil mortes por Covid-19.
A “imunidade de rebanho” é contestada pelos casos de reinfecção dos contagiados. Encerrar ou reduzir a quarentena não impede a recessão, como mostra a Inglaterra, que teve uma alta mortalidade e a tragédia econômica foi pior do que na Espanha, com uma queda de 20,4% do PIB no segundo trimestre. De qualquer modo, trata-se de um disparate, porque para os sobreviventes adquirirem uma suposta imunidade, seria necessário permitir que pelo menos 60% da população se infectasse. Na Espanha, isso significaria 28 milhões de infectados e mais de 2 milhões de mortes; e, na Argentina, mais de 27 milhões de infectados e mais de 500 mil mortes, considerando seus percentuais de mortalidade. Estaríamos diante de um genocídio.
A negação das provas de que a quarentena evitou uma tragédia
No encontro de Madrid, a espanhola Natalia Prego afirmou que a epidemia é uma farsa e que, se chegou a existir na Espanha, terminou em abril, considerando os dados de infecções e óbitos daquela data. Sua conclusão esconde um fato decisivo: que a redução de mortes e contágios, deve-se ao efeito da quarentena iniciada em março e às demais medidas que os negacionistas rejeitam, como o uso de máscaras e o distanciamento social. Sem elas, o número de infecções e mortes teria se multiplicado exponencialmente, como podemos deduzir a partir dos dados: as mortes por infecções ocorridas antes do período de isolamento concentraram-se na última semana de março e na primeira semana de abril, com aproximadamente mil óbitos diários (1.342, se nos basearmos no “adicional de mortes” em relação à média) por volta do dia 31 de março. Em seguida, estas ocorrências diminuíram como resultado da quarentena, para menos de 100 por dia em junho.
De março a junho houve um elevado “adicional de mortes” em muitos países: na Espanha o excesso foi de 56%; no Reino Unido, 45%; na Itália, 44%; e nos EUA, 23%. Mas o excesso foi ainda maior nas regiões mais afetadas de cada país (em Madrid, foi de 157%; e em Nova York, de 208%). Se não houvesse quarentena, as mortes, que na Espanha dobraram em uma semana ao final de março, teriam continuado a crescer exponencialmente — e em poucos meses teriam somado centenas de milhares, além de causar um enorme colapso sanitário, econômico e social. Mesmo supondo — de forma irracional — que sem a quarentena o número de infecções na Espanha não fosse crescer exponencialmente, e que as mortes diárias tivessem permanecido em torno das 1000-1300 de 31 de março, teríamos somado entre 30 mil e 40 mil mortes por mês, cifras que, na projeção anual, equivalem a 360 mil-480 mil óbitos somente por covid-19, o equivalente a 0,8% da população.
Que as mortes não interfiram nos lucros dos super-ricos
Seria arriscado extrapolar esse 0,8% para o nível global (equivaleria a 64 milhões de mortos por ano). Mas, pelos dados, podemos deduzir que sem a quarentena teríamos muitos milhões de mortes por covid no mundo. A situação já tinha sido antecipada pelo relatório da OMS de setembro de 2019, A World At Risk, que falava de 50 a 80 milhões de mortes numa possível pandemia.
Embora as doenças sempre tenham feito parte da experiência humana, uma combinação de tendências mundiais, que inclui falta de segurança e fenômenos meteorológicos extremos, aumentou os riscos… e avistamos no horizonte o espectro de uma perigosa crise sanitária mundial […] nos deparamos com a ameaça real de uma pandemia fulminante, altamente letal, provocada por um patógeno respiratório que poderia matar de 50 a 80 milhões de pessoas — e exterminar quase que 5% da economia mundial. Uma pandemia mundial dessas proporções seria catastrófica e desencadearia caos, instabilidade e insegurança generalizados. O mundo não está preparado. […] O mundo precisa estabelecer de forma proativa os sistemas e o compromisso necessários para detectar e controlar possíveis surtos epidemiológicos. […] Chegou a hora de agirmos… O mundo está em risco, mas, coletivamente, contamos com as ferramentas para salvar as populações e as economias. Precisamos de liderança e de boa vontade para atuar com firmeza e eficácia.
Não tivemos nem lideranças, nem vontade, nem preparo. Só interesse. Num mundo dominado pelas grandes potências, onde os Estados Unidos são o país hegemônico e o G7 virtual é o Conselho de Administração Global, era de se esperar que fossem eles a reivindicar a organização dos sistemas de prevenção diante da previsível pandemia. Mas o governo Trump estava apegado à teoria da conspiração de QAnon, o grupo de extrema direita que surgiu quando Steve Bannon era seu conselheiro e responsável pela estratégia que o levou à presidência. Essa estratégia mistura o neoliberalismo (redução de salários e direitos) com o chauvinismo corporativo (apoio às corporações “locais”), e inclui o uso sistemático de fake news e do lawfare [uma guerra midiática e judicial contra o adversário político, a fim de destruir a sua imagem]. Também, Trump se aferra a uma teoria da conspiração que apresenta Bill Gates e George Soros como parte de uma rede que busca dominar o mundo, agora, também, com o vírus. Como se esses milionários — e outros como Bezos ou Zuckerberg — e suas empresas Microsoft, Google, Apple, Facebook, Amazon ou BlackRock, já não tivessem um imenso poder de dominação global, que lhes permite usar a pandemia — inclusive na competição pela vacina – e o medo que ela provoca, para aumentar suas fortunas e poder.
Gerar ódio, e utilizá-lo
As políticas anti-direitos praticadas por Trump e seus imitadores provocam raiva e ódio entre os mais prejudicados. Bannon defendeu abertamente a ideia de que “o ódio e a raiva são motivadores”, é só saber aproveitá-los. Com essa filosofia aconselhou os dirigentes da ultra-direita na Europa (Salvini na Itália, Le Pen na França, Orban na Hungria, ideólogos da VOX da Espanha), e na América Latina (Bolsonaro e outros), construindo uma autêntica «internacional do ódio», que procura desestabilizar governos democráticos progressistas. Empregam campanhas de perseguição — incluindo o cerco pessoal e familiar aos seus membros, como está acontecendo na Espanha. Tentam acabar com as políticas sociais e impor uma ordem social global que combina o neoliberalismo com elementos clássicos do fascismo.
Seus “imãs” discursivos também atacam os movimentos igualitários que unem a humanidade ao redor do mundo contra o ódio: o feminismo, não só porque ele defende a igualdade de gênero, mas também porque ele coloca o cuidado, a equidade e os direitos humanos no centro da vida e da economia, articulando movimentos sociais que defendem os serviços públicos, a previdência ou a renda cidadã. O fascismo neoliberal ataca também o ambientalismo, porque ele une globalmente aqueles que lutam por um futuro da humanidade e da natureza, e isso prejudica os interesses das grandes corporações extrativistas. Atinge os movimentos anti-racistas, porque eles desmontam a pretensão supremacista de países hegemônicos em que predomina o fenótipo «caucasiano». Fustiga a cultura, porque ela representa o desfrute, o pensamento e a memória, o oposto de sua ordem baseada na opressão e no medo.
A “internacional do ódio” fez da pandemia uma arma neoliberal de destruição. Negá-la não só justifica a manutenção normal das atividades que geram lucros, mas também a violação da saúde e dos direitos dos trabalhadores expostos ao vírus; e o extermínio de parte da população “improdutiva” — os idosos — o que reduziria o gasto público com Previdência e Saúde, permitindo a redução dos impostos sobre o lucro do capital. Enquanto a pandemia se agrava e nos obrigam a discutir sobre o uso das máscaras, o ódio é cotado nos mercados e aumenta os benefícios dos mais ricos.