Sem condenar as ações militares da Rússia, Cuba distancia-se cada vez mais do apoio a Moscou.
Frank García Hernández, Esquerda.net, 29 de março de 2022
Quando Vladimir Putin anunciou o início da invasão da Ucrânia, o Presidente da Duma, a câmara baixa russa, Vyacheslav Volodin, não estava em Moscovo mas sim em Havana. Embora Volodin tivesse chegado a Cuba dois dias antes, numa visita oficial, é quase certo que o Governo cubano só soube da invasão da Ucrânia quando Putin o informou urbi et orbi. Segundo o próprio Fidel Castro, durante a Crise dos Mísseis - outubro de 1962 - os militares soviéticos restringiram fortemente a informação. Não havia necessidade de Volodin informar o Governo cubano sobre a invasão russa da Ucrânia. A simples presença do Presidente da câmara baixa da Rússia foi suficiente para que o Ministério dos Negócios Estrangeiros cubano, dois dias antes da invasão da Ucrânia, emitisse uma declaração alinhada com Moscovo.
No entanto, embora Volodin tenha deixado Cuba quase 24 horas após Putin ter anunciado o início da guerra, o Governo cubano ficou surpreendentemente silencioso em relação à invasão da Ucrânia. Dois dias após o início da "operação militar especial" de Putin contra a Ucrânia, a única declaração que se lia no sítio web do Ministério dos Negócios Estrangeiros cubano era a nota diplomática publicada a 22 de Fevereiro, ou seja, 48 horas antes do início do conflito. Se a posição de Fidel Castro sobre a invasão soviética da Checoslováquia em 1968 foi ambígua - condenando a violação do direito internacional, mas justificando-a politicamente - ainda mais ambígua foi a declaração publicada pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros cubano 48 horas após o início da invasão russa da Ucrânia.
A nota de 26 de Fevereiro sublinhava "uma solução diplomática", apontando insistentemente "a expansão progressiva da NATO para as fronteiras da Rússia" como a razão da guerra iniciada por Putin. Ao mesmo tempo, porém, o governo cubano distanciou-se da agressão militar russa, dizendo que "Cuba (...) opor-se-á ao uso ou ameaça de uso da força contra qualquer Estado". O Ministério dos Negócios Estrangeiros passou então a "lamentar profundamente a perda de vidas civis inocentes na Ucrânia", o que contrariava a posição oficial russa, que até 28 de Fevereiro negava as mortes de ucranianos não ligados ao exército.
A posição de Cuba foi mantida na ONU. Quando a condenação da invasão russa da Ucrânia foi promovida nas Nações Unidas, Cuba não se alinhou com o Kremlin, mas absteve-se discretamente. Sem condenar as ações militares ordenadas por Putin, Cuba tem-se distanciado cada vez mais do apoio a Moscovo. Após a derrota diplomática da Rússia na ONU, o Ministério dos Negócios Estrangeiros cubano publicou no seu Twitter que se opunha "sem ambiguidade ao uso (...) da força contra qualquer Estado".
A posição de Cuba pode ser compreendida se analisarmos a política externa cubana em relação à Rússia em pormenor. Cuba nunca reconheceu a independência da Ossétia do Sul e da Abecásia: dois Estados apenas aceites pela Rússia e aliados muito próximos. Além disso, a 13 de Janeiro, o Vice-Ministro dos Negócios Estrangeiros russo Serguei Riabkov declarou que se os Estados Unidos aumentassem a sua presença na Ucrânia, a Rússia poderia instalar "infra-estruturas militares" em Cuba. Em resposta a esta perigosa declaração, o governo cubano reagiu com total silêncio. Relativamente aos laços entre Moscovo e Havana, a única notícia que apareceu nos meios de comunicação cubanos foi a doação de telescópios astronómicos russos a Cuba.
A invasão russa da Ucrânia contra a economia cubana
Como os compromissos de Cuba com a Rússia são muito limitados, o Governo cubano ponderou evidentemente que, se apoiasse a invasão russa, receberia pesadas sanções económicas da União Europeia. Em pleno endurecimento do bloqueio dos EUA contra Cuba, o Clube de Paris tornou-se um dos principais credores do Governo cubano. A isto há que acrescentar o facto de a principal indústria de Cuba, o turismo, ser apoiada por empresas europeias como a Meliá e a NH. Aparentemente, o Governo cubano compreendeu que, mesmo que apoiasse fortemente a Rússia, Cuba não receberia ajuda económica do Kremlin: após a guerra, Putin só se ocupará de restaurar as perdas geradas pelo conflito bélico e as sanções estrangeiras.
Um alto funcionário do turismo cubano - que também preferiu manter o anonimato - relatou que, ao contrário de outros visitantes, "os turistas russos raramente permanecem em alojamentos privados. O turismo proveniente da Rússia passa longas estadias em hotéis do Estado cubano.
Contudo, segundo o funcionário, o que irá causar "problemas maiores do que a falta de turistas russos será o bloqueio da Rússia às transações SWIFT. Todas as operações financeiras russas com Cuba ficarão paralisadas".
A sociedade civil cubana tem uma palavra a dizer
Quatro dias após o início da invasão russa, um dissidente cubano, num gesto de solidariedade para com a Ucrânia, tentou levar flores à sede diplomática de Kiev em Havana. Ao mesmo tempo, a oposição cubana desencadeou uma campanha nas redes sociais exigindo a condenação oficial da invasão de Putin na Ucrânia. Tudo isto levou o Estado cubano a colocar um dispositivo de segurança em torno da sede diplomática de Kiev em Havana.
"A primeira vez que fui tirar uma fotografia à embaixada ucraniana, não o pude fazer. Na zona havia polícias vestidos de civis e militantes do Partido à procura de algo fora do comum", diz o jovem fotógrafo cubano Iván Alcaraz, que decidiu enviar ao CTXT algumas imagens da sede diplomática ucraniana em Havana. "Depois pensei em tirar algumas fotografias da embaixada russa, mas tive de o fazer à distância. Também estava mais guardada do que é habitual. Finalmente contratei um táxi que passou em frente à embaixada ucraniana e tirei as fotografias. Uma jornalista cubano freelancer já tinha fotografado a embaixada ucraniana, para estas pessoas até é melhor se forem detidas: ganham visibilidade. A mim teriam levado a minha máquina fotográfica e eu não posso comprar outra".
No entanto, o governo cubano não conseguiu impedir uma manifestação de mais de 300 pessoas a apenas 500 metros da sede diplomática ucraniana, mas esta teve lugar em frente à embaixada do Panamá em Cuba. O Ministério dos Negócios Estrangeiros do país centro-americano informou inesperadamente que os "cidadãos estrangeiros cubanos" precisam de um visto transitório se fizerem uma escala no Panamá. Desde Novembro de 2021, a Nicarágua informou que os cubanos não precisam de visto para visitar o seu país. A partir desse momento, começou uma onda migratória de cubanos que chegavam à Nicarágua para alcançar os Estados Unidos através da fronteira mexicana. A surpreendente exigência de visto transitório no Panamá fez com que os emigrantes cubanos incorressem noutra despesa considerável, uma vez que foram inesperadamente obrigados a comprar outro bilhete.
Mas a migração cubana não se faz apenas pela Nicarágua. Em plena invasão russa, nove cubanos estão presos num centro de detenção ucraniano por entrarem ilegalmente a partir da Rússia. Os nove cubanos pretendiam chegar à União Europeia por terra, atravessando a Ucrânia e prosseguindo para Espanha.
Quando o Presidente ucraniano Volodimir Zelenski declarou a Ucrânia um país livre de vistos para criar uma legião estrangeira, vários cubanos contactaram a representação de Kiev em Havana. A embaixada ucraniana esclareceu que os cidadãos cubanos dispostos a lutar na Ucrânia precisam de um visto Schengen porque as fronteiras aéreas não estão abertas. A isto, um utilizador cubano do Twitter respondeu que "só precisamos de transporte". Se o governo ucraniano o arranjar, terão milhares de cubanos na Ucrânia". Contudo, um dos cubanos que se candidatou ao combate na Ucrânia - e pediu para não ser identificado - disse ao CTXT que ele e vários dos seus amigos não tencionavam pegar em armas contra o exército russo, mas sim emigrar. "Se chegássemos à Ucrânia, atravessaríamos a fronteira para Espanha. Aqui em Havana caem-nos todos os dias mais mísseis do que os mísseis russos caem sobre a Ucrânia".
Em contraste com a tibieza de Havana em relação à invasão russa, foram tomadas posições mais radicais por parte da esquerda crítica cubana. A revista cubana Comunistas descreveu a invasão da Ucrânia como um "perigoso conflito inter-imperialista no qual a classe trabalhadora ucraniana e russa não tem nada a ganhar". Esta revista online também publicou declarações do conselheiro espanhol Pablo Cubero, condenando Putin e a NATO. Por seu lado, a coordenadora da conhecida página web La Joven Cuba, Alina Bárbara López, descreveu a postura do Governo cubano como "ambígua". Além disso, o antigo embaixador cubano na Bélgica e na União Europeia, Carlos Alzugaray, declarou num tweet que "as ações (...) das forças armadas russas em território ucraniano constituem formalmente uma violação dos princípios do direito internacional". (...). Embora a Rússia seja um aliado importante, esta guerra não traz nenhum benefício a Cuba".
No entanto, os cubanos comuns apoiam Putin. As décadas de laços estreitos de Cuba com a União Soviética levaram a que a Ucrânia fosse vista como parte da Rússia. O uso de símbolos soviéticos por Putin ajuda o presidente russo a ser visto como um continuador da URSS. Um exemplo disto é o ex-capitão militar reformado Jesús Moreira, que acredita que "Putin está a fazer o que está certo. Não levar a cabo a operação especial russa na Ucrânia seria esquecer os milhões de combatentes que morreram na Segunda Guerra Mundial em defesa da União Soviética".
Em Havana, basta atravessar a rua para os diplomatas russos irem dos seus gabinetes até à embaixada da Bielorrússia. A mais 200 metros de distância está o consulado ucraniano. A semiótica da política mostra que mesmo em Cuba, após a queda da União Soviética, a Rússia tentou continuar a controlar a Bielorrússia e a Ucrânia. Mas por agora, do edifício ao estilo do brutalismo soviético que era a sede diplomática do Kremlin vermelho em Havana e é agora a embaixada de Putin em Cuba, os diplomatas russos só podem resignar-se a ver uma enorme bandeira azul e amarela desfraldada no consulado ucraniano.
Frank García Hernández é sociólogo, historiador e jornalista, editor da revista Comunistas. Artigo publicado em CTXT e traduzido por Luís Branco para o Esquerda.net.