O fenômeno Trump não é a história de um louco que teria capturado o poder de surpresa. Esse fenômeno expressa a verdade desta época, a entrada em uma era política desconhecida.
Christian Salmon, A terra é redonda, 9 de janeiro de 2021
Em reação às imagens dos apoiadores de Donald Trump invadindo o Capitólio, Joe Biden insistiu longamente: esta não é a verdadeira face da América. Mas, se tais imagens se propagaram tão rapidamente, não seria, ao contrário, porque elas revelam a face oculta do véu democrático? Está provado, o fenômeno Trump não é a história de um louco que capturou o poder de surpresa, ele afirma a verdade desta época, a entrada em uma era política desconhecida na qual o grotesco, os bufões, o carnaval, irão subverter e disputar o poder.
“Todos vocês viram o que eu vi”, declarou Joe Biden após da ocupação do Capitólio no dia 6 de janeiro por amotinadores trumpistas, “as cenas de caos no Capitólio não refletem a verdadeira América, não representam o que nós somos”.
Nós vimos a mesma coisa que Joe Biden nas imagens da ocupação do Capitólio por grupos de manifestantes desordeiros pró-Trump? Nada é menos certo. Porque essas imagens espantosas, imagens delirantes, onde o burlesco cruza com o trágico e a vulgaridade imita o histórico, representavam bem uma certa América com a qual o novo presidente eleito irá, rapidamente, confrontar-se. Se elas se disseminaram tão rapidamente pelas redes sociais, não é porque não se assemelhavam com a América mas, muito pelo contrário, porque elas revelavam sua face oculta.
Tais imagens não apenas comprometiam as leis e as práticas democráticas, elas profanavam uma certa ordem simbólica, a imagem que a América tem de si mesma, um imaginário democrático constantemente retrabalhado. Elas profanavam seus ritos e seus hábitos em uma cena de carnaval endiabrado, burlesco, realizado por palhaços disfarçados de animais. E o impacto dessas imagens era tão destruidor quanto uma tentativa abortada de golpe de Estado, ele desacreditava as instituições e os procedimentos seculares, aqueles que dirigem a transição democrática, que legitimam a credibilidade das eleições, os processos de verificação e de recontagem, a certificação do candidato eleito.
Essa profanação simbólica está no centro da estratégia trumpista.
Com Trump, não se trata mais de governar no interior de um quadro democrático, segundo as leis, suas normas, seus rituais, mas de especular na baixa sobre seu descrédito. Sua aposta paradoxal consiste em assentar a credibilidade de seu “discurso” sobre o descrédito do “sistema”, em especular na baixa sobre o descrédito geral e em agravar seus efeitos. Desde sua eleição, Trump não parou de estar em campanha. A vida política sob Trump transformou-se em uma sequência de provocações e de choques sob a forma de decretos, de declarações ou de simples tweets: muslim ban, defesa de supremacistas brancos na sequência dos acontecimentos em Charlottesville, guerra de tweets com a Coréia do Norte, tentativa de criminalizar o movimento de protesto que surgiu após a morte do Afro Americano George Floyd…
Durante sua campanha, Trump se dirigiu, via Twitter e Facebook, a esta parcela cindida da sociedade e conseguiu, em quatro anos, congregar em uma massa eufórica estes descontentamentos dispersos. Trump tinha orquestrado seu ressentimento, despertando os antigos demônios sexistas e xenófobos, oferecido um rosto e uma voz, uma visibilidade, a uma América rebaixada tanto pela demografia e pela sociologia quanto pela crise econômica. Ele libertou uma potência selvagem e indistinta que apenas esperava chance de agir livremente. E ele o fez à sua maneira, cínica e caricatural. Ele se entregou a estas massas invadidas pelo desejo de vingança, e as excitou. Trump lançou um desafio ao sistema, não para reformá-lo ou transformá-lo, mas para ridicularizá-lo. Missão cumprida na tarde de 6 de janeiro.
Os democratas não souberam nem um pouco como se opor a cada provocação de Trump, a não ser com sua indignação moral, o que sempre é um sinal de cegueira face a um fenômeno político novo. Eles podem muito bem abrir seus olhos agora, o fenômeno Trump não desapareceu. Ele se beneficia do apoio da camada mais mobilizada de seus eleitores que, longe de estarem desencorajados por seus excessos verbais e seus clamores à violência, encontram nisso sua própria fúria. O que unifica a massa de seus apoiadores é o poder de dizer não às verdades estabelecidas. A incredulidade é erigida como crença absoluta. Nenhuma autoridade é poupada, nem as autoridades políticas, nem as mídias, nem os intelectuais e os pesquisadores. Todas estão condenadas à fogueira trumpista.
São os conservadores anti-Trump que falam o melhor sobre Trump. Segundo George Will, um editorialista neoconservador, as provocações do presidente, desde sua eleição, amplificadas pelas “tecnologias modernas de comunicação”, “encorajaram uma escalada no debate público de uma tal violência que o limiar da passagem ao ato se encontrou reduzido para indivíduos tão perturbados como ele”. Donald Trump “dá o tom à sociedade americana que é, infelizmente, uma cera maleável sobre a qual os presidentes deixam suas marcas”. E Will conclui: “Este rei Lear de baixo nível provou que a expressão ‘bufão maléfico’ não é um oximoro”.
Se a palhaçada surge frequentemente do registro da comédia e da farsa sem intenção maléfica, Trump utilizou os recursos do grotesco para orquestrar o ressentimento das massas, acordar seus antigos demônios sexistas, racistas e antissemitas.
“Bufão maléfico”: associando estes dois termos, o editorialista conservador colocava em evidência o caráter cindido do poder de Trump sobre o qual a crítica de seus opositores constantemente encalhou. Por quatro anos, a reação dos democratas e das principais mídias nos Estados Unidos é de uma incompreensão dos mecanismos deste novo poder hegemônico encarnado por Trump. O que eles não compreenderam é a centralidade deste personagem extravagante, a modernidade e a ressonância de sua mensagem na sociedade e na história da América. Sua onipresença no Twitter é aquela de um rei de carnaval que se arroga do direito de dizer de tudo e de desacreditar todas as formas de poder.
O fenômeno Trump não é a história de um louco que teria capturado o poder de surpresa… Muito pelo contrário, esse fenômeno expressa a verdade desta época, a entrada em uma era política desconhecida.
Em seu curso no Collège de France, em 1975-76, Michel Foucault forjou a expressão “poder grotesco”; não se trata, para ele, de usar de forma polêmica a palavra “grotesco” com o objetivo de desqualificar os estadistas que assim seriam definidos, mas de tentar compreender, ao contrário, a racionalidade deste poder grotesco, uma racionalidade paradoxal porque se manifesta pela irracionalidade de seus discursos e de suas decisões. “A soberania grotesca opera não apesar das incompetências daquele que a exerce, mas justamente em razão desta incompetência e dos efeitos grotescos que derivam dela […] eu chamo de grotesco o fato de que em razão de seu estatuto, um discurso ou um indivíduo poder ter efeitos de poder que suas qualidades intrínsecas deveriam desqualificar.”
Segundo Foucault, o poder grotesco é a expressão de sua potência extrema, de seu caráter necessário. “O detentor da majestas, deste excedente de poder em relação a todo poder que seja, é, ao mesmo tempo, em sua própria pessoa, em seu personagem, em sua realidade física, em seus costumes, em seus gestos, em seu corpo, em sua sexualidade, em sua forma de ser, um personagem infame, grotesco, ridículo […] O grotesco é uma das precondições essenciais da soberania arbitrária. A indignidade do poder não elimina seus efeitos, que são, ao contrário, tão mais violentos e arrasadores quanto mais o poder for grotesco.”
“Mostrando explicitamente o poder como abjeto, infame, grotesco ou simplesmente ridículo, manifesta-se de maneira evidente o caráter incontornável, a inevitabilidade do poder, que pode funcionar precisamente em todo o seu rigor e ao ponto extremo de sua racionalidade violenta, mesmo quando ele está nas mãos de alguém que se mostra efetivamente desqualificado”.
Michel Foucault nos alertava com uma previsão notável contra a ilusão compartilhada há quatro anos nos Estados Unidos pela mídia e pelos democratas, que consiste em ver no poder grotesco “um acidente na história do poder”, “uma falha no mecanismo”, enquanto ele é “uma das engrenagens que são parte inerente dos mecanismos do poder”.
O poder grotesco é a continuação, por outros meios, da política desacreditada. Como incarnar um poder político baseado no descrédito a não ser colocando em cena um poder sem limites, desenfreado, que transborda dos atributos de sua função e dos rituais de legitimação.
“É um palhaço – literalmente, ele poderia ter um lugar no circo”, declarou certo dia Noam Chomsky. Em um circo ou no meio do carnaval que se transformou a política mundial. Longe de se fazer presidente, uma vez eleito, como era de se esperar, ele ridicularizou a função presidencial com seus caprichos, suas variações de humor, suas posturas grotescas. No fim de seu mandato, ele lançou seus apoiadores ao assalto do Capitólio, prometendo até mesmo os acompanhar. Um presidente insurrecionista, é algo jamais visto! Mas, isso surpreende?
Frances Fox Piven e Deepak Bhargava escreviam, no mês de agosto de 2020, em um artigo do The Intercept, “Nós devemos, agora, nos preparar para responder, psicologicamente e estrategicamente, a qualquer coisa que possa aparentar um golpe de Estado. Trata-se dos cenários sombrios mais plausíveis, e seria melhor os enfrentar, em vez de evitá-los.”
Desde sua campanha de 2016, Donald Trump não surfou nessa onda de descrédito na opinião pública que lhe rendeu o voto de mais de 70 milhões de eleitores? O dia 6 de janeiro foi sua festa e sua consagração. Eles ocuparam o Capitólio, mesmo que brevemente, mesmo que simbolicamente. As imagens serão, por bastante tempo, testemunhas, eclipsando as imagens da transição do dia 20 de janeiro como seu contraponto, lado a lado, como Crédito e Descrédito. Elas provavelmente não refletem a verdadeira América, segundo Joe Biden, mas elas são sua face obscura, subitamente revelada. A tirania dos bufões apenas começou.
*Christian Salmon é escritor e membro do Centre de recherche sur les arts et le langage (CNRS)
Tradução: Daniel Pavan.
Publicado originalmente no portal AOC.