Stefano Pombarini, Esquerda.net, 3 de março de 2021
Mario Draghi, escolhido a partir de fora da arena política, acaba de ser nomeado chefe do novo governo italiano; poderá fazer assentar a sua ação numa larga maioria que vai desde a extrema-direita da Liga ao Partido Democrata, e mesmo a uma parte da Liberi e Uguali (LeU), uma reunião de pequenos movimentos que representam tudo o que resta da esquerda parlamentar. Qualquer pessoa que conheça a história política italiana recente sabe que tal situação não é inédita: nos últimos trinta anos, houve três precedentes. O primeiro governo de unidade nacional liderado por um tecnocrata foi o de Carlo Azeglio Ciampi (1993-94), seguido pelo governo Dini (1995-96) e, mais recentemente, pelo governo presidido por Mario Monti (2011-13).
Em todas estas experiências foram formadas coligações heterogéneas ao longo da legislatura e em resposta a uma grande crise política. Três dos quatro tecnocratas chamados a "salvar" um país que foi apresentado como estando à beira do colapso eram anteriormente banqueiros centrais, e o único que não ocupou tal posição, Monti, tinha laços estreitos ao universo da banca. A dimensão europeia das crises políticas que deram origem aos governos super partes é também uma característica recorrente. O apelo a Ciampi seguiu-se à saída da lira do Sistema Monetário Europeu no Outono de 1992. Monti substituiu Berlusconi que, em Outubro de 2011, tinha sido abertamente delegitimado numa conferência de imprensa por Merkel e Sarkozy, o que resultou num aumento das taxas da dívida italiana. Draghi chega com a tarefa principal de negociar os fundos do Plano de Recuperação que a União Europeia elaborou em resposta à queda de atividade determinada pela epidemia de Covid.
Tecnocratas não tão alheios à política italiana
O perfil do governo indica que a utilização de fundos europeus é a causa decisiva da reviravolta política. Na procura de um equilíbrio com as partes que o apoiam, Draghi atribuiu-lhes ministérios de peso: negócios estrangeiros, defesa, saúde. Dos vinte e três ministros, quinze são a expressão direta das forças políticas, apenas oito são independentes. Mas os três ministérios que terão uma palavra a dizer sobre as condições de obtenção e utilização dos fundos europeus foram atribuídos a homens em quem o presidente do conselho confia: Vittorio Colao será responsável pela inovação tecnológica e transição digital, Roberto Cingolani pela transição ecológica, e Daniele Franco, que passou a maior parte da sua carreira no Banco de Itália, pela Economia e Finanças. Estes três ministros não têm qualquer ligação a nenhuma formação política, e é sobre o nome do novo titular da Economia que vale a pena deter-nos, pois permite ligar o novo governo com o de Mario Monti.
Sabemos que a crise que, em 2011, terminou com a demissão de Berlusconi, foi aberta por uma carta do BCE assinada por Jean-Claude Trichet e… Mario Draghi. Nessa carta, o governador do Banco Central e o seu sucessor designado fizeram depender a recompra de títulos de dívida italianos de medidas de contenção fiscal e de uma série de reformas estruturais (liberalização dos serviços públicos, passagem de acordos salariais específicos da indústria para acordos salariais específicos da empresa, revisão das regras de despedimento, reforma do sistema de pensões). Uma verdadeira agenda governamental para a qual Berlusconi será finalmente considerado pouco fiável; Monti tomará o seu lugar, e fará da carta do BCE o seu roteiro.
Há um episódio menos conhecido nesta história, que foi contado num livro escrito em 2014 por Renato Brunetta [1], ministro de Berlusconi na altura e ministro de Draghi hoje. Três meses antes de se demitir, tendo sido informado da publicação iminente da carta, Berlusconi telefonou a Draghi, disse-lhe que tinha compreendido a mensagem (ele decidiria aumentar alguns impostos no decorrer do processo) e perguntou-lhe se podia ler a carta antes da sua divulgação pública. Draghi respondeu que Daniele Franco estava a trabalhar na carta no Banco de Itália, e foi o mesmo Franco, no dia seguinte, que levou um primeiro esboço ao primeiro-ministro.
O governo técnico de Monti, nascido para implementar as políticas "aconselhadas" pela carta do BCE, inaugurou em Itália uma experiência do tipo bloco burguês [2], baseada na ligação entre o compromisso europeu e as reformas neoliberais, que foi prolongada até 2018 pelos governos Letta, Renzi e Gentiloni. Para compreendermos totalmente a natureza paradoxal da situação atual, é necessário recordar que, de um ponto de vista eleitoral, esta experiência terminou catastroficamente para os seus protagonistas e de forma triunfal para os seus opositores.
O partido fundado por Monti, Scelta Civica, deixou de existir depois de ter obtido menos de 1% dos votos nas eleições legislativas de 2018, Renzi deixou o Partido Democrata depois de ter perdido o seu controlo, e o movimento por ele fundado, Italia Viva, é creditado com cerca de 3% dos votos nas urnas, Letta deixou a vida política, Gentiloni foi nomeado Comissário Europeu e distanciou-se assim da luta política italiana [3]. Na outra frente, a Liga e sobretudo o Movimento 5 estrelas (M5S), que entrou no parlamento em 2013 e se tornou o principal partido italiano cinco anos mais tarde, tornaram-se protagonistas chave na cena italiana: em 2018, os dois partidos que se tinham oposto frontalmente aos governos do bloco burguês, tinham em conjunto mais de 50% dos votos.
Dez anos após a emergência de um bloco burguês para o qual tanto Draghi como Franco contribuíram ativamente, três anos após o colapso eleitoral do mesmo bloco burguês, a Itália encontra-se com um governo liderado por Draghi, com Franco responsável pela Economia, que poderá contar com uma maioria parlamentar quase unânime sem uma nova eleição para alterar o resultado de 2018!
Uma narrativa keynesiana ao serviço das reformas neoliberais
No entanto, contrapõe a maioria dos meios de comunicação e políticos italianos, seria errado imaginar que o período que se avizinha, com Draghi a distribuir o dinheiro do Plano de Recuperação, se assemelhará de alguma forma à austeridade imposta por Monti. Esta objeção exige duas respostas distintas.
Em primeiro lugar, os montantes destinados à Itália pelo Plano de Recuperação devem ser relativizados. Os 209 mil milhões esperados como chuva salvadora que cairá do céu, são compostos por 127 mil milhões em empréstimos e 82 mil milhões em subvenções a distribuir ao longo de um período de seis anos. Para os empréstimos, que serão contraídos a uma taxa obviamente muito favorável, o que importa é a diferença com os juros que a Itália teria pago ao contrair empréstimos em seu nome. De acordo com os cálculos apresentados no Financial Times por Emiliano Brancaccio e Riccardo Realfonzo [4], a Itália poupará, nos próximos seis anos, na melhor das hipóteses, ou seja, fazendo previsões pessimistas sobre a evolução das taxas italianas, 24 mil milhões.
No que diz respeito à parte do subsídio, deve recordar-se que, na ausência de um novo improvável imposto europeu para financiar o Fundo, este será financiado pelos países da União de acordo com o seu PIB: a contribuição italiana será então de cerca de 40 mil milhões de euros, reduzindo o subsídio líquido para 42 mil milhões de euros. No conjunto, portanto, no melhor cenário italiano, chegamos a um total de 66 mil milhões em ajuda europeia durante seis anos, 11 mil milhões por ano, o que deve ser comparado com uma queda do PIB de cerca de 160 mil milhões só em 2020. Estamos, portanto, muito longe de uma recuperação massiva de teor keynesiano.
A segunda observação é de natureza mais geral e diz respeito ao papel da austeridade na estratégia do bloco burguês. O necessário controlo do défice público, o risco de uma dinâmica descontrolada da dívida, o fardo que isso colocaria às gerações futuras... são os elementos de linguagem com presença assídua no discurso dos decisores que são a referência para este bloco burguês. No entanto, o seu objetivo fundamental não é, nem nunca foi, a austeridade, que é instrumentalizada como um constrangimento ao serviço das reformas estruturais. O mesmo se poderia dizer do ideal europeu que, na estratégia destes decisores, nunca foi outra coisa senão um instrumento para facilitar a transição do capitalismo italiano para o modelo neoliberal.
O paralelo entre os governos Monti e Draghi é portanto bastante relevante; se o primeiro apresentou as reformas como indispensáveis para evitar a explosão da dívida, o segundo dirá que elas são necessárias para obter ajuda europeia. E foram efetivamente as reformas estruturais que reduziram a proteção social, enfraqueceram os serviços públicos, tornaram a relação salarial mais precária - pensemos, por exemplo, na Lei do Emprego de Renzi, que não incluía qualquer poupança orçamental - que levaram à forte reação da sociedade italiana aos governos do bloco burguês e produziram a completa convulsão no equilíbrio eleitoral, incluindo a ascensão da Liga e a irrupção do M5S no cenário político.
Partidos desprovidos de estratégia
Devemos por isso perguntar-nos por que estranhas razões os partidos políticos que cresceram opondo-se aos governos do bloco burguês (M5S e Liga), e os partidos que, devido ao seu apoio aos mesmos governos, perderam muitos eleitores (Partido Democrata e Forza Italia, formação de Berlusconi), se encontram todos juntos a apoiar, com diferentes graus de entusiasmo, Mario Draghi, cuja estratégia será mais uma vez a de um bloco burguês prestes a erguer-se das cinzas. É verdade que de momento só conhecemos as linhas gerais do programa do novo governo.
Mas não é surpresa que no seu primeiro discurso público como primeiro-ministro, a 17 de Fevereiro no Senado, Draghi tenha insistido na necessidade de reformas rápidas para reforçar a concorrência, simplificar o sistema fiscal, reduzir os impostos, tornar a administração pública mais eficiente, e encorajar a emergência de centros de excelência no sistema público de investigação. O quadro geral continua a ser o das políticas estruturais que facilitariam a inovação, o crescimento e, como exigido pelo Plano de Recuperação Europeu, a transição ecológica.
Neste sentido, o apoio às empresas em dificuldades devido à recessão económica será seletivo, e o contraponto ao aumento do desemprego será mais uma vez inteiramente entregue às políticas activas de emprego. No Senado, Draghi não teve uma única palavra a dizer sobre as formas contratuais, a negociação salarial que agora é feita essencialmente a nível de empresa, o salário mínimo que ainda falta à Itália, o nível de salários, embora tenha afirmado firmemente o compromisso europeu do seu governo, que terá de incluir mais transferências de soberania em matéria fiscal. Mesmo os elementos retóricos, com a exortação a não sacrificar o futuro das gerações mais jovens ao egoísmo das mais velhas, estão em perfeita continuidade com a era dos governos do bloco burguês.
Quais são, então, as razões para o apoio quase unânime ao novo governo? A resposta encontra-se, em parte, na dinâmica interna de cada partido: limitar-me-ei a uma breve análise da situação das três principais forças parlamentares, nomeadamente o M5S, o Partido Democrata e a Liga. Mas outra parte importante da resposta está ligada à reestruturação das clivagens políticas conduzidas pelo bloco burguês, que deixou uma marca profunda na configuração do conflito político e social italiano. Voltarei a este assunto na última parte deste artigo.
A espectacular viragem da Liga, que se tornou parte da maioria Draghi, tendo feito campanha durante muito tempo, até às eleições legislativas de 2018, para a saída da moeda única (que é, segundo Draghi no Senado, irreversível), é surpreendente apenas para aqueles que não estão familiarizados com o poder preponderante, dentro do partido, da sua componente tradicional, ligada essencialmente às pequenas e médias empresas do Veneto, Lombardia e Piemonte, ou seja, à parte mais rica e industrializada do país. Durante algum tempo, o projecto de Salvini era transformar a sua formação, que em 2017 ainda se chamava Liga Norte para a Independência da Padânia, num partido com vocação nacionalista, presente e forte em todo o território, capaz de se dirigir também às classes populares do centro e do sul, em grande parte sacrificadas por reformas estruturais e austeridade.
Contudo, o mundo produtivo do norte, e em particular do nordeste do país, que está muito integrado comercialmente e produtivamente com a Alemanha, considera qualquer perspetiva de ruptura com a UE, especialmente se for unilateral, como uma ameaça intolerável. Logo após o resultado das eleições de 2018 e a adesão ao poder em aliança com o M5S, Salvini foi rápido a declarar que tinha "mudado de ideias" sobre o euro [5]. Um ano mais tarde, o fim do primeiro governo Conte foi causado pela recusa do M5S em conceder uma forte autonomia fiscal às regiões que a Liga, sob o impulso dos governadores do Norte, considerava prioritárias. O partido nacional e nacionalista que Salvini queria construir tinha portanto duas almas; mas cada vez que era imposta uma escolha, era a velha Liga, representando o norte industrializado, que ditava a sua linha, sem procurar o mínimo compromisso com as expetativas do novo eleitorado, estreitamente ligado às classes populares do centro e do sul.
Uma escolha também teve de ser feita no momento de decidir se se opunha a Draghi ou integrava a sua maioria; e mais uma vez, foram determinantes as expetativas das classes ligadas ao mundo das pequenas e médias empresas. Este mundo não deseja um confronto com as instituições europeias, aceita muito bem e exige mesmo uma forte liberalização da relação salarial, e espera beneficiar de parte dos recursos do Plano de Recuperação. Não compreenderia, portanto, estar em oposição a Draghi. Além disso, Salvini declarou que tudo o que pede ao novo governo é que baixe o imposto sobre o rendimento, evite a introdução de uma taxa patrimonial e não aumente o imposto imobiliário[6].
É fácil ver a que interesses sociais correspondem tais objetivos, e é também compreensível que isto marque o fim do projeto nacional da Liga e o regresso às suas bases tradicionais. Deve também salientar-se que esta reorientação não implica necessariamente um enfraquecimento da coligação de direita; pois os Fratelli d'Italia, um partido neo-fascista aliado à Liga em todas as eleições e que se posicionou, sozinho, na oposição, está a visar precisamente o eleitorado que a Liga está a abandonar. A estratégia de Salvini é, portanto, perfeitamente clara: renuncia ao apoio popular que ganhou rapidamente no centro-sul, mas ao apoiar Draghi, pretende reforçar o papel da Liga como representante do mundo produtivo do norte.
As coisas são mais complicadas para o Partido Democrata e o M5S, que no Outono de 2019 se viram um pouco por acaso a governar em conjunto. Como já recordei, foi Salvini que, sob pressão dos governadores das regiões do Norte, decidiu pôr fim ao primeiro governo Conte; e foi sobretudo para evitar eleições antecipadas, cuja vitória estava garantida à direita, que os dois movimentos decidiram dar vida a um novo governo sem além mudar de primeiro-ministro. A característica da nova aliança, pelo menos inicialmente, era vermos os principais papéis a serem desempenhados pelos partidos em plena crise estratégica.
O Partido Democrata foi, de 2011 até 2018, o principal pilar do bloco burguês. Depois de apoiar Monti, nomeou também os três primeiros-ministros dos governos relativos a este bloco social (Letta, Renzi e Gentiloni). Mas as consequências eleitorais da experiência são irrevogáveis: depois de ter obtido 33% dos votos nas eleições de 2008, que tinha perdido, o partido caiu para 25% em 2013 e depois para 18% em 2018. Após esta retumbante derrota, a linha de Renzi, que coincide de forma quase caricatural com a do bloco burguês, foi derrotada; o mesmo Renzi acabou por abandonar o partido e fundar o seu próprio movimento (Italia Viva).
No entanto, e aqui está o grande problema, nunca houve um verdadeiro debate e confronto contraditório no seio do Partido Democrata entre diferentes linhas políticas. Renzi, por assim dizer, derrotou-se sozinho, deixando atrás de si uma formação sem bússola política. A consciência dos danos sociais e das desigualdades produzidas pelas "reformas necessárias" está amplamente disseminada no partido, mas o único ponto de unidade que lhe permite existir é a adesão forte e incondicional à construção europeia; e este ponto dificulta obviamente uma verdadeira análise crítica dos anos do bloco burguês, condição prévia necessária para a elaboração de um projeto político alternativo.
A situação é ainda mais confusa para o M5S, cuja trajetória parece ser mais determinada por imprevistos conjunturais do que por orientações políticas. Durante muito tempo, o M5S opôs-se à casta dos partidos e decidiu recusar qualquer aliança, mas depois de triunfar nas eleições de 2018 propôs ao Partido Democrata a formação de um governo; após a recusa de Renzi, que ainda estava no comando, o M5S coligou-se com a Liga; quando Salvini decidiu terminar a experiência, o M5S regressou ao Partido Democrata; e agora que Renzi, ao retirar o apoio da Italia Viva, terminou o segundo governo Conte, o M5S encontra-se aliado tanto com a Liga como com o Partido Democrata na nova maioria.
Este caminho tortuoso está, no entanto, organizado em torno de algumas diretrizes. O elevado resultado (33%) que o movimento conseguiu em 2018 pode ser explicado por uma oposição frontal ao bloco burguês estruturada em torno da defesa dos bens públicos, a denúncia dos privilégios dos muito ricos, e também pela atenção dada aos temas ecológicos, uma oposição acompanhada de uma deliberada falta de clareza sobre temas essenciais como a fiscalidade, a moeda única, e as relações com a União Europeia. Esta indefinição, à qual se juntaram posições muito diferentes sobre a gestão da imigração, permitiu ao M5S reunir os eleitores penalizados pelas ações do bloco burguês, tanto da direita como da esquerda.
O teor conflituoso da relação com a Liga durante o primeiro governo Conte, e depois a relação mais cooperativa com o Partido Democrata durante o segundo governo Conte, levou gradualmente o M5S a posicionar-se muito claramente a favor da tributação progressiva, contra a natureza precária da relação salarial, e também a favor de uma tentativa de modificar os tratados europeus através da negociação e sem grandes rupturas. Muito logicamente, o M5S perdeu assim a sua componente de direita, e encontra-se agora, segundo as sondagens, com cerca de metade dos votos que tinha obtido em 2018.
O segundo governo Conte baseou-se assim na aliança entre duas formações, o Partido Democrata e o M5S, que se encontravam numa crise estratégica, mas que, entre hesitações e conflitos internos, avançavam de certa maneira numa direção comum. Foi, aliás, para travar a perspetiva, ainda hipotética mas concreta, de um novo centro-esquerda, certamente condicionado por um europeísmo insuficientemente ponderado, mas atento às desigualdades sociais e aos problemas que a precariedade e a pobreza colocam em particular nas regiões centro e sul, e crítico para a flexibilização da relação salarial, que Renzi decidiu retirar a confiança dos seus parlamentares no Contexto e abrir a crise que levou à formação do governo Draghi.
A hegemonia do bloco burguês sobrevive ao seu declínio social
As vicissitudes dos principais protagonistas do cenário político italiano e o ressurgimento paradoxal de um governo que seguirá uma estratégia ligada ao bloco burguês podem ser reconduzidos a um quadro unitário. O bloco burguês não é simplesmente uma aliança social que reúne as classes média e alta da direita e da esquerda em torno de uma reforma neoliberal do capitalismo legitimada pelo processo de unificação europeia. É também um projeto ideológico que implica uma reestruturação completa das clivagens políticas. A derrocada eleitoral da versão Renzi do Partido Democrata e da formação de Berlusconi, ou seja, dos partidos que levaram a cabo este projeto, não apagaram as consequências da experiência do bloco burguês sobre a estruturação do conflito social e político.
Neste conflito, a clivagem direita/esquerda diminuiu nos últimos dez anos a favor de outras, que se opõem a Europa à nação, as elites ao povo, os cosmopolitas aos identitários, os globalistas aos soberanistas. O bloco burguês junta uma aliança em torno de um dos pólos destas clivagens; uma aliança que viu a sua superfície social diminuir gradualmente até se tornar completamente minoritária, mas que permanece compacta nos seus objetivos e no seu apoio à estratégia, europeísta e neoliberal, que a deixa existir.
O outro pólo destas clivagens congrega uma parte maioritária mas totalmente heterogénea da população. Uma heterogeneidade que, como vimos, mina decisivamente o projecto de uma Liga nacional levado a cabo por Salvini, e que está na origem das hesitações estratégicas e do enfraquecimento que se seguiu à afirmação do M5S em 2018. Do mesmo modo, a adesão incondicional à construção europeia, que o leva a desqualificar como populista qualquer posição verdadeiramente crítica da UE, corresponde a um posicionamento do Partido Democrata dentro das clivagens impulsionadas pelo bloco burguês, o que constitui um obstáculo a uma verdadeira mudança de linha política.
Há uma parte, mas apenas uma parte de verdade nos discursos dos media dominantes, que apontam a incapacidade do pessoal político de todos os quadrantes em propor um programa governamental sólido, e que por esta razão veem Draghi como o único capaz de tirar o país da sua crise. Na realidade, o problema não são as qualidades pessoais dos políticos, mas a hegemonia do bloco burguês que sobrevive ao seu declínio social.
Esta hegemonia tem o efeito direto de deixar à margem do conflito político questões tão essenciais como o futuro da proteção social, os serviços públicos, a relação salarial, e obriga os opositores do bloco burguês a definir-se com base nas clivagens que ele impôs. Na estruturação do conflito conduzido pelo bloco burguês, só há lugar para uma estratégia política coerente: a do bloco burguês. Isto explica porque, perante o imperativo de gerir uma crise económica sem precedentes no período do pós-guerra, uma grande maioria política se reuniu em apoio a um projecto socialmente minoritário.
Isso não impede que as consequências sociais da política Draghi sejam muito provavelmente da mesma ordem que as provocadas pela ação governamental no período 2011-2018. As classes sacrificadas pelas reformas do bloco burguês tinham procurado uma via eleitoral para expressar o seu descontentamento e sofrimento. E agora? Terão eles de novo a oportunidade e a persistência de fazer ouvir a sua voz democraticamente? Nada é mais incerto. Embora assistir ao regresso demasiado frequente das mesmas citações de um autor complexo como Gramsci corra o risco de caricaturar o seu pensamento, parece-me que não há conclusão mais relevante do que a sua para esta reflexão sobre a crise italiana: "A crise consiste precisamente no facto de que o velho está a morrer e o novo ainda não pode nascer. Nesse interregno, surge uma grande variedade de sintomas mórbidos".
18 fevereiro 2021
Stefano Pombarini é professor na Universidade Paris 8. Autor do livro “La rupture du compromis social italien. Un essai de macroéconomie politique” (CNRS Éditions) e co-autor, dos livros “L’Economie Politique Du Neoliberalisme” (Ed. Rue d’Ulm) e “L’Economie Politique N'Est Pas Une Science Morale” (ed. Raisons d’Agir). Artigo publicado no portal Contretemps e traduzido por Luís Branco para o esquerda.net.
Notas:
[1] R. Brunetta: Berlusconi deve cadere. Cronaca di un complotto, Editore Il Giornale, 2014
[2] B. Amable, E. Guillaud, S. Palombarini: L’Économie politique du néolibéralisme. Le cas de la France et de l’Italie, Editions Rue d’Ulm, Paris, 2012
[3] S. Palombarini: «L’Italie est malade du néolibéralisme (mais elle ne le sait pas)», Blog pessoal no Mediapart, 9 abril 2020
[4] E. Brancaccio, R. Realfonzo: «Draghi’s plan needs less Keynes, more Schumpeter», Financial Times, 12 fevereiro 2021
[5] «Italy has done a lot, maybe too much», entrevista de Salvini au Washington Post, 19 julho 2018.
[6] Déclaration de Salvini à l’émission « ½ ora in più», Rai 3, 14 fevereiro 2021.